Carlos Pereira: 'É provável que polarização nacional não se reproduza nos municípios'
Edmundo Siqueira, Claúdio Nogueira e Gabriel Torres 24/08/2024 08:17 - Atualizado em 24/08/2024 08:16
Carlos Pereira, professor da FGV e Colunista do Estadão
Carlos Pereira, professor da FGV e Colunista do Estadão / Reprodução
“É muito provável que essa polarização que a gente identifica na esfera nacional, não se reproduza na esfera municipal”. A declaração foi feita pelo cientista político Carlos Pereira, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista do Estadão. Ele participou nessa sexta-feira (23) do programa Folha no Ar, da rádio Folha FM 98,3, onde avaliou a relação conflituosa entre os poderes no Brasil, as características do presidencialismo brasileiro, a estabilidade da democracia no país e a influência da política nacional nas eleições municipais deste ano. Carlos Pereira trouxe abordagens de seu livro lançado recentemente pela Companhia das Letras, “Porque a Democracia Brasileira Não Morreu”. O cientista também destacou que, em levantamento feito com os próprios legisladores, a maioria dos parlamentares preferiu um Supremo Tribunal Federal (STF) menos ativo. Carlos afirmou, ainda, que não há um modelo de sistema ideal a ser seguido, pois cada sociedade vive sua particularidade. No caso do Brasil, ele vê um sistema político estável e que tem gerado equilíbrio macroeconômico. O cientista político analisa, ainda, que “uma democracia para funcionar na sua plenitude, não necessariamente precisa de democratas, porque as próprias regras do jogo e as próprias rotinas e procedimentos democráticos, elas geram um equilíbrio perpétuo não eficiente, mas que, de certa forma, consegue se equilibrar ao longo da sua história”.
Interferência do nacional no municipal — “As eleições municipais no Brasil têm uma característica muito específica, em que a política nacional interfere relativamente baixa nessas eleições municipais, por vários motivos. Partidos, por exemplo, não lançam candidatos a prefeito, priorizam uma trajetória legislativa. Ou não lançam candidatos a presidente, priorizam uma candidata legislativa, mas lançam candidato a prefeito. Em partidos que lançam candidato a prefeito e que tem um desempenho pífio em vários municípios, tem, por exemplo, um desempenho excelente nos seus candidatos a presidente nas eleições subsequentes. É o caso, por exemplo, do PT. O PT não lançou o candidato a prefeito nas eleições anteriores, ou mesmo quando lançou teve um desempenho muito ruim, mas Lula venceu em 2022 nesses municípios que não tinham candidato a prefeito. E vice-versa. Então, a correlação é muito baixa entre o desempenho eleitoral nas prefeituras e o desempenho eleitoral na Presidência da República. É muito provável que essa polarização que a gente identifica na esfera federal, na esfera nacional, não se reproduza na esfera municipal, nem mesmo nos municípios grandes”.

Relação entre poderes — “É muito comum, em regimes presidencialistas, que existam dificuldades, existam relações conflituosas entre esses poderes pelas naturezas distintas desses poderes. Esse conflito, no caso de presidências livres multipartidárias, é ainda potencializado, porque no caso brasileiro, no caso da América Latina praticamente como um todo, você tem essa combinação de presidencialismo com multipartidarismo. O presidente eleito sai das urnas quase que necessariamente na condição de minoria. Rarissimamente o presidente sai bancado com a maioria de cadeiras pertencentes ao seu partido. Atualmente, por exemplo, o presidente Lula só desfruta de 13% de cadeiras. O Partido dos Trabalhadores do PT só tem 13% de cadeiras. Então, esse presidente é obrigado, para governar, a construir coalizões pós-eleitorais, coalizões essas muitas vezes formadas por partidos que não têm uma ideologia comum, uma agenda comum, uma plataforma comum, visões de mundo distintas. Então, o custo de coordenação dessa coalizão é muito alto, você tem problemas de toda sorte. Eu vejo que conflitos entre o executivo e legislativo como natural da própria natureza, do DNA do sistema político brasileiro”.

“Por que tanto conflito?” — “Porque a gente tem, além do presidente e do legislativo, que tem legitimidades duais, inclusive, porque são eleitos de forma independente, você também tem um outro conjunto de atores políticos não eleitos, que tem capacidade também de interferir nesse jogo. Entretanto, ao invés de perceber isso como uma crise ou como algo disfuncional, eu interpreto esse jogo como fazendo parte dessa escolha do legislador constituinte. No momento em que o Judiciário se percebeu poderoso, especialmente a partir de casos enigmáticos, como por exemplo o julgamento do caso do Mensalão, durante o escândalo do Petrolão e o desdobramento da Lava Jato, e vários casos de políticos com foro privilegiado, porque a Suprema Corte Brasileira não é apenas uma corte constitucional, ela também é uma corte revisora, uma corte que também tem poderes de criminais, de impor penas criminais a políticos e pessoas que foram privilegiadas. É uma corte muito poderosa. Quando essa corte foi chamada para exercer esse poder, ela tem exercido na sua plenitude. Isso tem gerado a sensação de exagero, tem gerado a sensação, a percepção de que a corte cruzou o sinal, interfere demais na política, mas a interpretação que eu e o Marcos fazemos no nosso livro é que isso fez parte do desejo do legislador constituinte. O legislador constituinte, quando delegou esses poderes para a Suprema Corte, ele não fez uma cartilha onde a Suprema Corte poderia e não poderia atuar, mas deu uma superdelegação meio que em branco para que a interpretação desses poderes fosse dada pelos próprios juízes, pelos próprios ministros. Então, essa superdelegação, em algum momento, foi útil para os políticos, porque, em última instância, quando a corte estabelece esse papel de controlador, que originalmente deveria ser do legislador, o legislador fica feliz com isso. Mas quando, de certa forma, a Corte começa a cruzar um suposto sinal de interesse do legislador, ele se incomoda com isso e, de certa forma, quer sinalizar que esse judiciário se autocontenha. Então, é dessa forma que eu tento entender esse jogo”.

Preferência por um STF menos ativo — “Eu acabei de fazer uma pesquisa com um aluno de doutorado da Fundação Getúlio Vargas, André Medeiros, em que a gente perguntou aos próprios legisladores, nós fizemos um survey (enquete) com os legisladores. Em torno de 150 parlamentares responderam a esse survey, e perguntamos justamente se ele preferiria uma Suprema Corte muito ativa ou uma Suprema Corte menos ativa, certo? E na média, a maioria dos parlamentares que nos responderam, a maioria dos nossos respondentes, de fato, preferiu uma Suprema Corte menos ativa. Mas aí a gente pergunta ‘por que esse legislador, que supostamente preferiria uma Suprema Corte menos ativa, não tomava iniciativas que, de certa forma, estabelecessem regras para que essa Corte pudesse atuar de forma menos ativa de acordo com a preferência deles?’. E a gente fez cenários em que o legislador preferiria uma corte menos ativa ou mais ativa em várias políticas comportamentais como por exemplo, aborto, casamento de pessoas do mesmo gênero, ou mesmo quando a corte interfere nas regras eleitorais, ou interfere nas emendas dos parlamentares, como você se referiu na sua pergunta inicial. E é interessante que a única área em que existe uma diferença estatística entre aqueles que defendem uma corte menos ativa para uma corte mais ativa, é justamente quando o judiciário mexe nas emendas individuais. Nenhuma outra área de política é crível à ameaça do legislativo, de certa forma, impor algum limite na Suprema Corte”.

Presidencialismo — “Na realidade, o sistema político brasileiro é presidencialista. Existem, inclusive, outras combinações de legislativos muito mais fortes, por exemplo, no caso americano, o presidente é constitucionalmente muito fraco no sistema presidencialista bipartidário, em que, particularmente na questão orçamentária. Toda a peça orçamentária é elaborada e decidida pelo Congresso e o presidente não tem nenhuma liberdade para executar o orçamento diferente do que foi decidido no parlamento. Você tem a maior democracia do mundo, presidencialista, em que o Congresso tenha a totalidade discricionária de elaborar a peça orçamentária e decidir a peça orçamentária sem a interferência do presidente. E mesmo assim, nós não chamamos o presidencialismo americano de parlamentarismo. Ou seja, o presidente é constitucionalmente muito mais fraco do que o nosso, o parlamento é muito mais forte do que o nosso, e mesmo assim, nós não confundimos o presidencialismo americano com o parlamentarismo. O parlamentarismo dispõe de mecanismos muito eficazes que dotam o sistema de flexibilidade que o presidencialismo não tem, como o voto de confiança ou voto de desconfiança. (...) Eu não vejo o sistema político brasileiro como um sistema parlamentarista, um sistema em que o próprio parlamento doutora o presidente de alguns poderes, mas que esses poderes não podem ser interpretados como camisa de força. (...) O mais importante é saber se esse desenho institucional gera, primeiro de tudo, estabilidade democrática. Acho que o nosso sistema tem gerado isso, tem dado demonstrações efetivas de que a democracia é autossustentável, está em equilíbrio nesse sentido. Qualquer alternativa fora da democracia não é preferida pela maioria dos atores políticos e agentes econômicos. Nesse sentido, a democracia está em equilíbrio”.

Ameaças à democracia — “Essas interpretações que identificavam que a democracia brasileira estava em ameaça, na nossa opinião, partem do pressuposto equivocado de interpretar esse jogo apenas sobre a lógica do agressor. Ou seja, do populista eleito, um perfil autocrata, que uma vez no poder iria de forma insidiosa concentrar mais poderes e enfraquecer os controles, e isso a gente mostrou que não existiu no Brasil. Mesmo diante de governos com perfil claramente populista e alguns deles autocráticos, o jogo democrático tem sobrevivido, tem dado respostas, tem imposto limites aos governos de plantão. E mais do que tudo, temos uma sucessão de episódios eleitorais justos, competitivos, limpos, sem fraude, onde o vencedor leva o jogo. O perdedor, mesmo não reconhecendo a derrota, coloca o rabo entre as pernas, começa a jogar o jogo de novo, esperando ser vencedor no futuro. Existe muita incerteza e muita competição. Existe um calendário eleitoral muito estável no Brasil”.

“Existe sistema ideal?” — “A pergunta que eu lançaria é se existe algum sistema ideal a ser seguido? Existe algum modelo que seria supostamente superior a esse jogo? A resposta é que não. É que cada sociedade vai escolhendo, aqui ou acolá, nas entranças e saliências das disputas políticas, desenhos que, de certa forma, contemplem os interesses que estão em jogo e ofereçam soluções a esses conflitos de forma não violenta. Nesse sentido, o Brasil tem dado mostras de que o sistema político é estável e não só isso, tem gerado, por exemplo, equilíbrio macroeconômico, desde o plano real, tem dado respostas eficazes. Governos que desviam disso são politicamente e eleitoralmente punidos ou são colocados fora do jogo através de impeachment. Isso é uma outra coisa. (...) Então, necessariamente, uma democracia para funcionar na sua plenitude, não necessariamente precisa de democratas, porque as próprias regras do jogo e as próprias rotinas e procedimentos democráticos, elas geram um equilíbrio perpétuo não eficiente, mas que, de certa forma, consegue se equilibrar ao longo da sua história”.

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