Folha Letras - Durvalino e o serial killer
Vitor Menezes*
Uma vida protegida no casulo da depressão. Anos a fio sem que nada de importante se desse. Um livreiro inerte, vencendo os dias sem nenhuma razão para isso. Uma existência inútil. E tamanha a vocação para o arrastar letárgico de décadas que não seria a ele, Durvalino, dado perceber quando algo realmente importante poderia acontecer.
Foi assim quando entrou no sebo um homem disposto a matá-lo. Na verdade, não a ele exatamente, mas a todos os livreiros, escritores, editores, revisores, toda sorte de gente envolvida com livros. Em rota de fuga, chegou à cidade e se informou sobre as livrarias do lugar. Eram poucas, e logo lhe fora dito sobre o velho sebo ao lado da escola pública.
Valdinei, o assistente do livreiro na loja, havia lido nos jornais sobre o caso. Se estivesse no sebo naquele momento, talvez até identificasse o homem, que teve publicado o seu retrato falado. Mas Durvalino, não. Durvalino não lia jornais. Durvalino não era de ler.
O assassino parecia ansioso, até entediado. Claro que um sebo daquela categoria não estava à altura das suas pretensões de imortalidade. O dono de um estabelecimento desse nível deve ser um ninguém tão absoluto que talvez a polícia sequer relacione a sua morte com a sequência misteriosa de assassinatos de gente do ramo. Jamais acreditariam que Durvalino tivera a honra de morrer pelas mãos do mesmo homem que vitimara figurões tão ilustres do mundo das letras.
Era uma espécie de treinamento. Ou uma necessidade incontrolável. E, como lhe fora reservado o infortúnio de estar naquela cidade às margens da uma rodovia que corta o país, que aproveitasse o tempo então. Era como um vampiro que, na sua versão morcego, se via diante da mazela de sangrar bois num pasto. Por isso, quando entrou no sebo, estava disposto a executar o serviço imediatamente. Não haveria tempo para qualquer requinte.
Mas até o desleixo tem seus limites. Um profissional zela por grafar a sua marca no que faz. Além disso, como todo serial killer, desejava ser descoberto. E para isso precisava deixar pistas sobre a sua relação com aquela morte.
Um dos seus sinais já estava preparado para a cena do crime. Era um recorte de livro com um trecho de uma poesia de Augusto dos Anjos. Costumava colocar poesias sobre os cadáveres, como a dizer: farte-se agora com estas letras, seu verme. Estava no bolso interno de uma surrada jaqueta de couro, onde também trazia o punhal Fairbarn-Sykes, que pertencera ao seu avô e, segundo contava, era um dos originais utilizados por tropas inglesas durante a Segunda Guerra Mundial.
Passou rápido pela porta e mergulhou na prateleira mais próxima à entrada. Durvalino se limitou a um leve mover de olhos, que voltaram imediatamente para o trabalho de enxergar as unhas que vinham sendo mordidas por um cortador cego e ordinário. O silêncio do sebo era tamanho que era possível ouvir os estalos dos choques entre as pequenas lâminas.
Tac!
E o homem olhou para Durvalino sentado no caixa, com a mão esquerda oferecendo os dedos ao cortador.
Tac!
Um olhar de longos segundos na observação da vítima. Seria ele o dono do sebo? Seria ele um outro alguém digno do seu punhal inglês?
Tac!
Pensar. Pensar. Profissionalismo requer sangue frio. Não poderia manchar a sua carreira com um reles atendente de um sebo do interior. Pelo menos, teria que se certificar de que se tratava do dono. Mas não queria perder tempo com aquilo. Pensar, pensar.
Tac!
Mais um pouco de simulação. Pegar um livro, isso, um livro. E agora o homem tem às mãos um exemplar de Pergunte ao pó. E faz que lê as suas primeiras páginas. E, no fazer que lê, já está lendo de verdade. E esqueceu Durvalino e o seu cortador de barulho irritante.
Tac!
O homem irrompe a porta do sebo e ganha as ruas convencido de que deveria se entregar a uma missão verdadeiramente nobre: matar Arturo Bandini, o escritor endividado de John Fante.
Durvalino nem mesmo notou que lhe fora roubado um livro. Só achou estranho que alguém entrasse, não falasse nada e saísse daquele jeito estabanado. Ainda abaixado, se convenceu de que a sua clientela, quando não era formada por estudantes onanistas, ávidos consumidores de revistas pornográficas, estava mesmo repleta de malucos. Desta vez, nem teve ânimo para mobilizar cordas vocais para bradar a sua solução final para tudo, mas voltou a pensar naquilo que virara até uma espécie de mantra: vou fechar essa merda!
* Jornalista, professor e escritor. Membro da Academia Campista de Letras.