Folha Letras - A mais antiga baixada do Rio de Janeiro (I)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 10/07/2024 16:06
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Arthur Soffiati*

Entre o sistema hídrico Ururaí, que inclui este rio, a lagoa Feia e o canal da Flecha, e o rio Macaé, estende-se um território distinto no conjunto do estado do Rio Janeiro. Hildebrando de Araújo Gois o integrou totalmente, do sopé da Serra do Mar à linha de costa atlântica, na Baixada dos Goitacazes (GÓES, Hildebrando de Araujo. “Saneamento da Baixada Fluminense”. Rio de Janeiro: Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, 1934). Para fins de drenagem, ele podia, em seu conjunto, ser considerado uma baixada, mas examinado mais de perto, trata-se de um território constituído de terrenos com idades diferentes e distantes entre si quanto à composição. Na parte mais interna, estende-se um terreno muito antigo e, por isso mesmo, muito desgastado pela ação das intempéries.

Ele conta com ondulações bem mais acentuadas que a Formação Barreiras. Nele, encontram-se colinas e vales. Em algumas colinas, ainda despontam picos pedregosos, como no maciço do Itaoca. No geral, esses picos parecem argilosos e passíveis de erosão mais acentuada que a Serra do Mar, por exemplo. Renato da Silveira Ramos, em seu clássico “Paisagens culturais da Baixada Fluminense” (São Paulo: USP, 1950), também considera a área como integrante da Formação Barreiras, sugerindo uma continuidade até o rio Itabapoana com o rio Paraíba do Sul correndo no centro.

É um bom indício. Ele sugere a hipótese de continuidade entre a pequena unidade da Formação Barreiras de Quissamã com a grande unidade dela entre os rios Paraíba do Sul e Itapemirim. Os vales dessa antiquíssima área não são muito profundos, formando-se no interior deles terras alagadas com vegetação típica de brejo. As águas vertem das partes altas para as baixas e ficam aprisionadas. Apenas dois rios mais conhecidos drenam o território: o Macabu e o Urubu. Ambos formam planícies aluviais em seus vales no interior dessa unidade geológica muito antiga. O Macabu deságua na lagoa Feia, enquanto que o Urubu, com um curso já muito modificado pela ação humana, desemboca na lagoa de Cima. Trata-se de um território denominado pelos geólogos como Colinas e Maciços Costeiros. Ele se estende pela margem esquerda do rio Paraíba do Sul, mas não é tão característico como no trecho entre os rios Ururaí e Macaé.

Logo abaixo dele, encontra-se uma inegável porção da Formação Barreiras (tabuleiros). Em visão panorâmica apresentada em mapa elaborado por Alberto Ribeiro Lamego em 1954, fica a forte impressão de haver uma continuidade entre esse remanescente de tabuleiros e a unidade dessa mesma formação entre a margem esquerda do rio Paraíba do Sul e a margem direita do rio Itapemirim (LAMEGO, Alberto Ribeiro. “Carta geológica do Brasil”, escala 1:100.000, folhas Campos (2708), Cabo de São Tomé (2709), Lagoa Feia (2744) e Xexé (2745). Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Departamento Nacional da Produção Mineral/Divisão de Geologia e Mineralogia, 1954). De fato, pela interpretação recente de quatro geólogos, existiu um continente antes da formação da planície fluviomarinha dos Goitacazes. Os geólogos não informam sobre a composição geológica desse antigo continente, mas ele devia integrar a Formação Barreira. Ele era cortado pelo rio Paraíba do Sul. Dizem apenas que ele avançava mais no mar que o atual. Colando a porção de tabuleiros à margem esquerda do Paraíba do Sul a essa, à margem direita da lagoa Feia, percebe-se claramente que o quebra-cabeça se completa (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José M. L.; e FLEXOR, Jean-Marie. “Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo”. Belo Horizonte: CPRM, 1997).
Levanta-se como hipótese que essa grande unidade de tabuleiros que se estendia da atual Quissamã ao rio Itapemirim, avançando no mar mais que hoje, foi erodida a partir de 10 mil anos antes do presente, com a elevação do nível oceânico. Houve um processo de transgressão marinha (avanço) pelo vale do rio Paraíba do Sul que chegou às cercanias da lagoa de Cima. O máximo desse avanço foi registrado em 5.100 anos antes do presente. A partir de então, o mar foi recuando (regressão), enquanto o rio Paraíba do Sul e outros rios menores foram transportando sedimentos das áreas altas (serra e tabuleiros) e formando uma planície aluvial que foi arrematada pela areia transportada pelo mar.

A terceira feição geológica em antiguidade da área entre os rios Macaé e Ururaí é uma extensa restinga com idade estimada em 123.000 anos. Ela era mais elevada e não foi invadida pelo avanço do mar até 5.100 anos A.P. Ela é cortada longitudinalmente por córregos com foz permanente ou temporária no mar. Hoje, transformaram-se em lagoas. As principais são Preta, Paulista, Carapebus (a maior de todas), Comprida e Jurubatiba. Quase todas têm nascentes nos tabuleiros. Essa restinga sofreu um processo natural de rebaixamento (subsidência) que permitiu ao mar acrescer a ela uma faixa de areia. Formaram-se, então, lagoas arredondas junto à costa, como Ubatuba, do Pires, do Visgueiro, das Garças, Amarra-boi etc.

Por fim, associou-se ao conjunto de formações geológicas desse território, a planície fluvial construída a partir de 5.100 anos antes do presente. A lagoa Feia faz parte dela. Ao sul desta lagoa, uma estreita faixa de areia com 28 km, a separa do mar e liga a restinga de Jurubatiba (antiga) à de Paraíba do Sul (com menos de 5.100 anos). Quem passa de uma a outra, mesmo sendo leigo, pode perceber que as duas restingas apresentam idades distintas. Deve acrescer-se também que a restinga de Jurubatiba exerceu pressão sobre o rio Macaé, exigindo que suas águas se lançassem ao mar por uma apertada foz entre a restinga e formações pedregosas. Os mapas mostram claramente que a planície aluvial do rio Macaé, formada nos últimos 5.100 anos antes do presente está imprensada entre formações cristalinas e a restinga de Jurubatiba. Mas, Hildebrando de Araujo Góis (Op. cit.) reuniu essas formações todas, de diferentes idades, na Baixada dos Goytacazes. Esse território exige mais estudos.
Quanto à vegetação nativa, a Mata Atlântica na sua feição estacional semidecidual predomina na área de Colinas e Maciços Costeiros e nos tabuleiros. Esse tipo de vegetação é a mesma Mata Atlântica adaptada a condições mais secas que a área montanhosa da Serra do Mar, em sua retaguarda. Por isso, a floresta
perde de 20% a 50% de suas folhas na estação seca, voltando ao verdor pujante na estação das chuvas. A restinga foi colonizada por essa mata, mas o substrato arenoso e a influência do mar (ventos e salinidade) selecionaram espécies e criaram a vegetação de restinga, que Henrique Pimenta Veloso, Antonio Lourenço Rosa Rangel Filho e Jorge Carlos Alves Lima (“Classificação da vegetação brasileira, adaptada a um sistema universal”. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1991) classificam como vegetação pioneira de influência marinha. Os manguezais não se desenvolveram nessa área costeira a não ser nas extremidades dela, em Barra do Furado e no rio Macaé. Na planície aluvial, a umidade excessiva induziu ao desenvolvimento de formações pioneiras de influência fluvial, como as poucas matas higrófilas de várzea e a vegetação de pequeno porte adaptada à água doce. Sobressai-se a espécie caxeta (Tabebuia cassinoides), que adquire porte arbóreo mesmo limitada pela grande umidade. A fauna nativa circulava em todas essas formações com espécies ocorrendo com mais frequência em cada um tipo de vegetação.

A ocupação humana de toda essa área foi efetuada por grupos da nação linguística macro-jê: goitacazes, puris e coropós, principalmente. Esses povos desenvolveram economia de subsistência. Eles conheciam a agricultura e a cerâmica. Por uma classificação europeia, estariam na fase neolítica da história humana. No entanto, essa fase não pode ser aplicada a esses povos sem discussão. Embora conhecedores da agricultura, seu uso era mínimo ou nenhum, visto que a natureza terrestre e marinha oferecia recursos em abundância, não havendo necessidade desses povos explorar a natureza além das suas necessidades de sobrevivência. Assim, pelas categorias europeias, eles estariam entre o paleolítico e o neolítico, por
terem um modo de vida seminômade.

Como bem salientou Everardo Backheuseur, as baixadas foram os “pontos de ancoragem da civilização europeia” no Brasil e em outras partes do mundo (“Da trilha ao trilho”. Anais do IX Congresso Brasileiro de Geografia IV. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1944). Não foi esse o caso da ancoragem portuguesa entre os rios Itapemirim e Macaé. A planície aluvial foi examinada por Pero de Gois, donatário da Capitania de São Tomé, que navegou o trecho final do rio Paraíba do Sul à procura de um local para se instalar, mas sua escolha recaiu na foz do rio Itabapoana, em área de tabuleiros. Quase todos os autores incluem os tabuleiros regionais na planície, embora, a rigor, não seja.
*Historiador, professor, ambientalista, escritor e membro da Academia Campista de Letras

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