Cinema - Amor cheio de dedos
Existe uma cidade de nome Macau no Rio Grande do Norte. No sul da China também, na margem direita da foz do rio das Pérolas, em frente a Hong-Kong. Na bacia do mesmo rio, mais acima, ergueu-se Cantão. Todas elas integram hoje a mais urbanizada área do mundo, conhecida como Grande Baía.
A Macau da China foi uma colônia portuguesa fundada em 1557. Na verdade, a China permitiu que Portugal estabelecesse esse porto. Em 1999, ele foi devolvido à República Popular da China e transformado na Região Administrativa Especial de Macau. Até hoje, o português é falado em Macau, mas perde, dia a dia, espaço para o cantonês. A marca portuguesa, porém, ainda é perceptível. Uma literatura considerável floresceu em Macau usando a língua portuguesa, que deu origem a uma fala crioula, também usada na literatura.
O poeta simbolista português Camilo Pessanha (1867-1926) viveu grande parte de sua vida em Macau e lá escreveu poemas. Mas, há escritores nascidos em Macau ou vindos de outros lugares que escreveram num português de Portugal. Henrique de Senna Fernandes é considerado o maior deles. Nascido na própria Macau, em 1923, no seio de família aristocrata, ele morreu em 2010, aos 86 anos. Completaria cem anos em 15 de outubro de 2023. Seus principais livros são “Amor de dedinhos de pé”, “A trança feiticeira” e “Nam Van”.
O esquema de suas tramas é clássico: o princípio é sempre feliz; no meio, tudo degringola; no final, o equilíbrio é retomado com maturidade. Fernandes prima pela história bem contada. É um épico. Como nas novelas de televisão, por exemplo. Poder-se-ia dizer que é um português escrevendo em Macau. Contudo, a presença chinesa é grande na sua literatura, ora aparecendo em locais de pobreza, ora ingressando na “civilização” por meio do casamento. Parece que sua ficção acompanhou sua vida pessoal, pois o autor se casou com uma chinesa.
Se escritos no Brasil, “Amor e dedinhos de pé” (título não muito feliz) e “Trança feiticeira” seriam considerados excessivamente dramáticos. No primeiro, um homem rico e playboy curte a vida adoidado. Perde tudo e acaba num bairro chinês pobre. Contrai uma doença que lhe afeta os pés. Vai ao fundo do poço até relacionar-se com uma moça sem dotes físicos, mas que trata sua doença e o cura. Ela se casa com ele. Além de Fernandes, citam-se também Maria Ondina Braga e Rodrigo Leal de Carvalho.
“Amor de dedinhos de pé” mereceu um belo filme, dirigido por Luís Filipe Rocha, em 1991. A história se passa na Macau com todo seu charme. A famosa Praia Grande é mostrada em toda sua beleza. A reconstituição de época é excelente. O roteiro é bem estruturado. A fotografia é primorosa em sua tendência para o claro-escuro e o sépia. O diretor evita cair na armadilha do exotismo. O passado é refeito de forma sóbria e convincente. O playboy Francisco Frontaria é representado por Joaquim de Almeida e Victorina por Ana Torrent.
Luís Filipe Rocha dirigiu “Cerromaior” (1981), “Camarate” (2001), “A Passagem da Noite” (2003). É um nome conceituado do cinema português. “Amor e dedinhos de pé” tem 125 minutos de duração. Roteirista e diretor evitam o famoso “final feliz” de Henrique de Senna Fernandes no livro, que originou o filme. Trata-se de um produção franco-luso-espanhola. Com dificuldade, o interessado encontra o filme na internet, assim como “A trança feiticeira” (1997), a ser comentado proximamente.