A intransparência política da classe trabalhadora atual
Roberto Dutra 01/05/2024 12:57 - Atualizado em 01/05/2024 14:02
Grande parte da crise de legitimidade de democracias como a brasileira tem a ver com o fracasso dos partidos políticos – de esquerda, direita e centro – em representar e construir políticas públicas para o que ainda hoje podemos chamar de classe trabalhadora. A falta de legitimidade, entre os próprios trabalhadores, das propostas de regulação jurídica das relações de trabalho de motoristas e entregadores com as mega empresas de aplicados é uma clara evidência desta grande dificuldade política. A existência inequívoca de uma classe trabalhadora, apesar da diversidade de ocupações e situações de vida, pode ser atestada pelo fato de que uma grande maioria de pessoas precisa vender sua força de trabalho para empresas que controlam o capital e com isso o poder de definição do preço do trabalho. Isto significa que a classe trabalhadora existe enquanto um agrupamento estatístico definido por condições de vida comuns. Em resumo, é inegável a existência da classe trabalhadora enquanto “situação de classe” (Max Weber) ou “classe em si” (Karl Marx).
E a existência política da classe trabalhadora atual? Tão inegável quanto sua existência econômica “objetiva” enquanto “situação de classe” e “classe em si” é a incógnita sobre sua existência política enquanto “formação de classe”(Max Weber) e “classe para si”(Karl Marx). O problema clássico da teoria marxista das classes continua atual e aberto: como construir a ação política coletiva de classes a partir da situação econômica de classe? A situação econômica do que hoje podemos chamar de classe trabalhadora é bem distinta de outras variantes históricas, especialmente da classe trabalhadora fabril, mas o problema é o mesmo: a mobilização política da classe nunca foi e nem será uma consequência necessária de sua posição no sistema econômico. Para que a classe enquanto agrupamento estatístico (o que Bourdieu chama de “classe no papel”), construído por uma observação externa, se torne um grupo político real é preciso um processo contingente de autodefinição prática da classe enquanto coletividade identificável e imputável politicamente. A “classe para si” é uma construção política contingente que não emerge diretamente da “classe em si”.
A organização fabril do trabalho facilitava enormemente este processo de autodefinição prática da classe enquanto coletividade real. A observação mútua dos operários no local de trabalho permitia a identificação subjetiva com base na mesma condição objetiva, dando a impressão de que o processo de construção política da classe poderia ocorrer espontaneamente a partir da vida econômica e laboral. Mas esta impressão sempre foi enganosa, pois a mesma situação objetiva sempre ensejou caminhos muito diversos em termos de mobilização política e sindical. Sempre houve uma intransparência política relativa sobre como articular interesses e narrativas capazes de agregar politicamente os trabalhadores em uma coletividade real. No final de sua vida, Friedrich Engels, o verdadeiro conhecedor empírico da classe na dupla marxista, cogitou que a social-democracia alemã pudesse ser um alternativa mais promissora que o comunismo revolucionário; esta dúvida exprime bem a contingência e a intransparência da política de classes.
A construção política da classe trabalhadora é intransparente e contingente porque a política não pode observar nem definir de forma direta e “analógica” (ou seja, com base em traços imediatamente visíveis) os interesses e aspirações de nenhum agrupamento populacional observável de modo “digital” em termos estatísticos, ou seja, com base em dados não imediatamente visíveis como posição econômica relativa. Do mesmo modo que a classe em sentido econômico sempre foi uma construção “digital” com base em observações externas sem correspondência necessária com identidades e situações de vida concretas, a classe na política precisa também ser construída pela recombinação de elementos simbólicos e culturais capazes de agregar o que se acha desagregado. A mobilização política da classe trabalhadora já era “digital” e intransparente para o operário de fábrica, embora o local de trabalho comum desse a impressão de uma construção espontânea e “analógica”. Esta intransparência da classe trabalhadora é um traço geral da política de classes moderna. O que vemos hoje é o aumento exponencial desta intransparência, ditado pela fragmentação da percepção da posição econômica e pela pluralização crescente de estilos de vida, orientações de valores e visões de mundo. O grande desafio atual da política de classes é encontrar formas políticas “digitais” capazes de identificar e observar padrões latentes de conduta e expectativas sociais compartilhados, e tratá-los como matéria-prima para construir coletividades políticas abrangentes e poderosas. Estes padrões latentes de conduta podem e costumam ser invisíveis também para os próprios “membros” em potencial da classe, mas que, ao serem acionados discursivamente, podem criar o novo: ou seja, uma nova autodefinição de “classe para si” capaz de sustentar e orientar não só a luta política, mas também a construção de políticas públicas afinadas com os interesses e visões de mundo com potencial de generalização e agregação.
Observar padrões latentes sempre foi a grande tarefa “digital” da sociologia (Nassehi, 2019). Mesmo antes das tecnologias digitais (algoritmos acoplados a massas de dados) que hoje conhecemos, já havia na sociedade problemas de ação coletiva que só poderiam ser resolvidos de forma “digital”, ou seja, pela observação e tematização de padrões latentes de conduta capazes de reduzir a complexidade das situações e aspirações de vida em torno de formas políticas agregadoras. A mobilização política de classe sempre dependeu de uma boa sociologia “digital” capaz de lidar com a contingência das estruturas sociais, tomando os padrões latentes como matéria-prima para construir grupos políticos reais. As novas tecnologias digitais operam de modo proto-sociológico (Nassehi, 2019), pois vivem basicamente de identificar padrões latentes a partir da recombinação de dados discretos sobre a conduta de pessoas para diversos fins. Precisamos de uma política bem orientada sociológicamente para construir novas formas de mobilização política da classe trabalhadora. Em resumo: precisamos de uma política de classes inteligente.

Referências:
Nassehi, Armin. Muster. Theorie der digitalen Gesellschaft. Verlag C.H.Beck oHG, München 2019

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