Como identificar os extremos
Ronaldo Junior 19/10/2024 14:01 - Atualizado em 19/10/2024 14:03
Imagem gerada por inteligência artificial.
Na sala de espera de uma clínica, dentre todos os lugares disponíveis para sentar e aguardar, resolvi escolher o assento mais distante, não apenas para evitar interações indesejadas, mas também para conviver com a ansiedade pré-consulta que teima em aparecer nesses momentos.

Meu pai me acompanhava nessa desagradável empreitada, e nós conversávamos para ocupar o tempo falando sobre qualquer assunto que não tivesse relação com exames ou consultas médicas.

Sem que eu me desse conta, sentou ao nosso lado um senhor distinto – camisa verde, maço de cigarro apoiado sobre a pasta de exames cardiológicos -, mas um tanto inconveniente.

Eu comentava com meu pai sobre as eleições municipais na capital paulista, especificamente sobre a notícia que atribuía o segundo lugar do candidato Guilherme Boulos a uma confusão de seus eleitores quanto ao número de seu partido, fazendo com que ele perdesse cerca de cinquenta mil votos.

Foi nesse momento que me dei conta da presença do paciente que poderia, dentre diversos assentos ociosos, não ter escolhido justo aquele ao nosso lado.

Ele resolveu interagir, primeiro questionando o que eu achava sobre o Boulos. Depois, querendo saber o que eu achava sobre o presidente Lula. Terminada a sabatina, ele já tinha uma conclusão. Olhou fixamente para mim e disse algo que, em todos esses anos, eu curiosamente não tinha ouvido – apesar de estar ciente da recorrência do termo:

-Então você é comunista!

Envaidecido diante da ignorância gritante dessa alcunha inédita para mim, resolvi usar meu direito de fazer ao menos uma pergunta:

-E o que é comunismo pra você?

Diante do que ouvi, de pronto, qual resposta decorada:

-É tudo isso que está aí.

Tentei, me esforcei, para considerar essa conceituação tosca, mas não suportei continuar a conversa com a pessoa que, em seguida, disse que a fonte do comunismo era a universidade pública.

Olhando para a memória desse momento, penso que o velhinho de aparência simpática, prestes a levar um esporro do médico pelo uso excessivo de cigarros, poderia ter me poupado de identificá-lo no extremo de sua ideologia cristalizada em meio àquela pequena multidão.
Isso serviu para identificar um extremo. Quanto ao outro, só fui ver quando, já em casa, me olhei no espelho e, pela primeira vez, lembrei que viram em mim um comunista. Logo eu, tão avesso aos extremos. Tudo culpa da universidade pública.
*Ronaldo Junior tem 28 anos, é carioca, bacharel em Direito, licenciado em Letras e escritor membro da Academia Campista de Letras, instituição da qual é o atual presidente.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Ronaldo Junior

    [email protected]

    Professor e membro da Academia Campista de Letras. Neste blog: Entre as ideias que se extraviam pelos dias, as palavras são um retrato do cotidiano.