A entrevista teria acontecido por ocasião da disputa pela indicação democrata às eleições presidenciais americanas. Depois dela, seu marido, Barack Obama, não apenas foi indicado como venceu as eleições, se tornando o primeiro presidente negro dos EUA.
Perguntada, na mesma entrevista, sobre o que significaria a eleição do marido para ela, a resposta já demonstrava que Michelle não estaria limitada a um lugar simbólico: “Que importante plataforma eu terei, potencialmente, para falar de todo um conjunto de questões que afetam o país”.
No Brasil, três primeiras-damas exerceram um papel de maior destaque. Darcy Vargas, esposa do ex-presidente Getúlio, e Sarah Kubitschek, esposa de Juscelino, tiveram atuação forte, principalmente na área social e de caridade. Na Nova República, a antropóloga Ruth Cardoso, que tinha uma carreira brilhante na academia, teve um papel efetivo no combate à desigualdade.
De acordo com a legislação brasileira, a primeira-dama não tem cargo definido na estrutura de governo, não possui caráter representativo (pois não é eleita), e não tem nenhuma função administrativa. O Brasil seguiu o modelo americano de republicanismo, onde não há nenhuma atividade definida pela Constituição para cônjuges dos mandatários.
As atividades que uma primeira-dama venha a exercer são voluntárias e, portanto, sem remuneração. Ser uma primeira-dama representa, na letra fria da lei, um status meramente simbólico.
Machismo, Janja e uma primeira-dama política
A falta de uma definição legal para o “cargo” de primeira-dama não se dá apenas por uma questão meramente jurídica. Não seria possível estabelecer que uma mulher tenha uma posição específica apenas por ser casada com alguém. Ou obrigar que um vínculo emocional e amoroso seja convertido em uma obrigação legal.
Na prática — e em princípio — a primeira-dama é livre para ser e ocupar os lugares que ela quiser. Não há uma mulher “por trás de um grande homem”. O que existe é um casamento e uma vida pessoal que não se confunde com o governo.
Porém, assim como não há imposições ou designações legais para uma primeira-dama, também não há representação institucional. Os cargos eletivos são e devem ser ocupados por titular escolhido pelo eleitorado para exercer funções político-constitucionais. A escolha de ministros, por exemplo, é prerrogativa exclusiva do mandatário federal.
O Brasil nunca experimentou uma primeira-dama com vida política intensa. Até este ano. A socióloga Rosângela da Silva, a Janja, mulher do presidente eleito Lula, pretende ressignificar o que representa a primeira-dama clássica.
“Não tem princesa aqui. Só mulher de luta”, disse Janja em um comício de Lula na Baixada Fluminense, na pré-campanha. Seria um aviso do que ela seria, caso o marido fosse eleito, mas também uma resposta ao então pré-candidato Jair Bolsonaro, que havia pedido aos apoiadores que comparassem as duas mulheres (Janja e Michelle Bolsonaro), e que eles procurassem uma “princesa” para casar.
Filiada ao PT desde os 17 anos, conheceu Lula na década de 1990. Participou ativamente no acampamento de militantes que pedia a soltura de Lula quando estava preso em Curitiba. Casaram-se em meio à pré-campanha.
Janja teve papel central na campanha. Ajudou o marido a calibrar o discurso em temas como direitos das mulheres, diversidade e proteção animal, e aproximou artistas, influenciadores e celebridades para se engajarem no segundo turno. Para a posse, daqui a poucos dias, a futura primeira-dama também exerce grande liderança.
Mas a atuação de Janja tem causado atrito em alas do PT, em partidos aliados e tem sido um prato cheio para a oposição. Na escolha da cantora baiana Margareth Menezes como ministra da Cultura, a influência direta da primeira-dama causou desconforto e foi alvo de críticas de quem entende que seria uma extrapolação da sua parte.
Entrevista com Sana Gimenes
Para conversar sobre essas questões, o espaço ouviu a jurista e socióloga Sana Gimenes. Já na primeira resposta, ela avalia que a atuação de Janja “poderá contribuir, ainda que simbolicamente, para uma maior representatividade das mulheres na política e nos espaços de poder em geral”.
Sana faz uma avaliação lúcida sobre o ineditismo de ter no Brasil uma primeira-dama com atuação política intensa. Com mais de 15 anos de militância no movimento feminista, atuação na OAB Mulher e produção acadêmica nacional e internacional no tema, Sana diz que é “obviamente uma grande bobagem achar que a política só pode ser exercida a partir dos tradicionais códigos masculinos”.
Confira a entrevista:
Edmundo Siqueira - A próxima primeira-dama do Brasil, a socióloga Rosângela da Silva, conhecida como Janja, é filiada ao PT desde 1983, e diferente de suas antecessoras, possuía uma vida política ativa antes de se casar com o presidente. O papel da primeira-dama é historicamente associado a ações sociais ou educacionais, mas Janja exerce uma forte influência política na transição e na escolha de ministros, e promete ressignificar a forma de atuação de uma primeira-dama. Em uma sociedade ainda muito machista e patriarcal, a imagem da mulher como cuidadora do lar e relegada a papéis secundários pode ser reforçada quando se tenta controlar as ações de uma mulher que está casada com um presidente, mas que não se limita a isso. Por outro lado, a primeira-dama não foi eleita e não tem um papel definido pela lei, não possui um cargo formal, tampouco representação eleitoral. Uma atuação como a de Janja, independente e politicamente ativa, poderá ressignificar a posição de uma primeira-dama? A necessidade evidente do aumento da representatividade feminina, se aplica quando alguém sem cargo público interfere nos rumos do país?
Edmundo Siqueira - O Brasil teve três primeiras-damas que exerceram um papel de destaque. Darcy Vargas, esposa do ex-presidente Getúlio Vargas, e Sarah Kubitschek, esposa de Juscelino, tiveram atuação forte, principalmente na área social e de caridade. E na Nova República, a antropóloga Ruth Cardoso, que tinha uma carreira brilhante na academia, teve um papel importante na diferenciação entre assistencialismo social, para um trabalho efetivo no combate à desigualdade. As críticas que Janja recebe, principalmente na escolha de ministros de Estado, decorrem do fato dela extrapolar os limites institucionais como primeira-dama ou está embutido nela discriminação por ela ser mulher?
Sana Gimenes - Sempre que uma mulher se coloca de maneira mais firme, principalmente nos ambientes tradicionalmente masculinos, como é a política eleitoral, ela será alvo de discriminação. Isso decorre da estrutura de dominação masculina que ainda organiza nossa sociedade. Certa vez, quando ainda era ministra de Lula, a Dilma disse ironicamente que era uma mulher dura cercada de homens meigos. Ou seja, uma mulher que tem e que exerce o poder é vista de forma muito mais negativa. Claro que é preciso ter cuidado para que os limites institucionais sejam respeitados, mas creio que uma pessoa com a vivência política da Janja saberá ter esse equilíbrio.
Edmundo Siqueira - Em outros países, a representação masculina, o “primeiro-cavalheiro” em geral são discretos politicamente. No Brasil, não foi experimentado essa situação. Você acredita que seria diferente por aqui?
Sana Gimenes - Acredito que não seria diferente porque, em geral, as mulheres que ascendem ao poder precisam se provar o tempo todo e a discrição política de seus maridos é um fator importante para que elas tenham sua posição respeitada e não sejam vistas como frágeis e condicionadas. Obviamente é uma grande bobagem achar que a política só pode ser exercida a partir dos tradicionais códigos masculinos, mas, infelizmente, as mulheres que ocupam cargos públicos muitas vezes não têm outra opção que não seja a reprodução desses códigos. É por isso que mais do que apenas eleger mais mulheres precisamos repensar a própria forma de se fazer política no Brasil.