Engodo, Ódio e Ressentimento
Edmundo Siqueira 18/09/2022 23:34 - Atualizado em 18/09/2022 23:35
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França.
General Bonaparte no Conselho dos Quinhentos, por François Bouchot. Paris, França. / Reprodução

Estavam marcadas as eleições presidenciais na República de Pindorama. Três candidatos estavam à frente das pesquisas: Engodo, Ódio e Ressentimento.

A população de Pindorama parecia estar mais decidida que nunca; um dos dois primeiros colocados ganharia a eleição. Engodo tinha uma relativa vantagem, era dono de um carisma nuca antes visto na história do país. Ódio vinha crescendo, mas parecia ter um problema em furar a bolha eleitoral que o apoiava, e teria atingido seu teto.

Ressentimento era o mais preparado, com um projeto consistente para Pindorama. Mas não conseguia convencer o número de eleitores suficientes para ganhar. Com uma linguagem tecnicista — com “t” de tapioca — e conceitos rebuscados, não ganhava a simpatia do votante.

Muito se discutia em Pindorama sobre o risco que representava a reeleição de Ódio. Havia razão de ser. Enquanto estava à frente do país, aprofundou-se na sociedade o desprezo pela vida humana e pela democracia. Cultura e educação estavam sofrendo ataques severos, com cortes no orçamento e desconstruções diversas. Milhões de pessoas em Pindorama estavam na miséria e episódios de violência estavam cada vez mais frequentes.

Mas apesar de ter muita rejeição, Ódio sabia como poucos instigar sua claque. Usava a estrutura do governo para fazer eventos de todos os tipos, onde sempre aparecia como alguém predestinado a estar ali e usava os inimigos coletivos imaginários do povo a seu favor.

Engodo, por outro lado, sabia que parcela ainda mais numerosa da população de Pindorama estava conseguindo ver os absurdos impostos por Ódio. E também usava isso a seu favor. Vendia-se como a única solução para aquela crise e operava politicamente no medo. Sua militância, também aguerrida, atacava Ressentimento e tentava a todo custo lhe impor a pecha de auxiliar de Ódio. Engodo já falava em regular a imprensa e se negava a apresentar propostas concretas.

Alguns analistas tentavam alertar que aquele, apesar de grave, não era o momento mais perigoso de Pindorama. O país já tinha atravessado um período de repressão sangrenta. Revoluções nos anos 1930, com um presidente havia cometendo suicídio duas décadas depois, atos institucionais extremamente repressivos, e ainda dois governantes máximos da República haviam sido depostos por processos dramáticos depois que o país foi redemocratizados. O alerta era de que certamente um processo eleitoral apenas não iria resolver aquela situação.

Era preciso mais política, não menos. Era preciso mais conscientização e não processos despolitizantes que queriam impor o voto por constrangimento ou medo. Mas a população de Pindorama não ouvia os analistas, não escutava quem ponderava, e o jogo havia se tornado essencialmente uma escolha de torcidas. E como todas, cegas.

No dia marcado as eleições aconteceram. Não sem traumas e atos violentos. Ódio tentava a todo custo desacreditar o sistema que ele próprio havia sido eleito, Engodo usava e abusava de sua flauta política para o encantamento de serpentes e Ressentimento destilava arrogância e altivez despropositada. Mas a votação aconteceu.

A apuração começou e a população de Pindorama estava ansiosa para o resultado. Quase todos em suas casas aguardando o anúncio final. A disputa estava favorável para Engodo e a claque de Ódio estava pronta para usar de violência, se aquilo se concretizasse como parecia. Ressentimento já falava em se abster e sua equipe de marketing se arrependia profundamente de ter usado uma charge em vídeo onde ele aparecia como o “Mestre dos Magos”, um personagem que sempre desapareceria em momentos cruciais.

Um pouco antes do anúncio derradeiro, um jovem anarquista black bloc pichava a parede do Tribunal Eleitoral: “Deus tenha misericórdia dessa nação”. A frase, oportuna para aquele momento, não era dele. Alguns anos antes o presidente da Câmara, Deputado Maracutaia, a havia dito.

Pindorama estava condenada a ver encenações de sua história se repetirem. As primeiras como tragédias; as segundas como farsas.

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