Uma quarta-feira odiosa
Edmundo Siqueira 13/09/2022 20:22 - Atualizado em 13/09/2022 20:29
Reprodução/IstoE Independente
As quartas-feiras dona Ilza ficava com o coração em paz; pelo menos haveria comida para colocar na mesa, dela e de seus três filhos. A vida nunca foi fácil para Ilza Ramos Rodrigues. Já aos oito anos trabalhava para ajudar a família, fazia serviços no campo, na área rural perto de Itapeva, interior de São Paulo.

Ilza foi morar na periferia urbana. Vivia de bicos; era diarista. Seus filhos tentavam ter um destino diferente da mãe, e estudavam como podiam. “Educação física ou agronomia”, sonhava o caçula, para ser o primeiro da família a fazer faculdade. As únicas opções de trabalho que os meninos teriam ali se resumiam às funções de “cabeleireiro, servente ou motoboy” — nas palavras de um deles. Dignas, mas eles queriam mais e sonhavam com dias melhores.

Eles não estavam naquela situação por falta de esforço ou por querer ficar “nas costas do governo”. Não havia oportunidade, levaram uma vida de muitas privações, inclusive de direitos básicos como a alimentação. 

Mas estava se aproximando uma nova quarta-feira e dona Ilza sabia que no início da noite chegariam algumas quentinhas. Quem as trazia era Cássio Cenali, homem de meia idade, branco, olhos azuis e ar de bonachão. Ilza, uma mulher franzina, com marcas da idade e da vida, estava risonha. Era um dia de tranquilidade, sabia que poderia alimentar seus filhos.

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Cássio chegou a casa de Ilza como sempre fazia, às quartas. Ela o recebeu na porta e, não sem algum constrangimento, recebeu uma caixa de papelão onde estaria o alimento esperado. Mas Cássio estava decidido a brincar com Ilza naquela quarta. Uma brincadeira humilhante.


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Enquanto entregava a caixa, perguntou a senhora em quem ela iria votar nas próximas eleições. A resposta de Ilza foi “em Lula”. Cássio é apoiador do atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, Ilza pretendia votar no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez pela memória afetiva do governo que viveu e onde pôde ter uma vida melhor, ou por simpatia, apenas, ao Lula, dona Ilza inocentemente declara seu voto.


A reação do homem à sua frente, que sempre trazia quentinhas às quartas, foi tão aterradora que Ilza achou que era uma brincadeira, realmente. “Essa é a última quentinha que a senhora recebe, a próxima a senhora vai pedir ao Lula”. Se não bastasse o constrangimento de condicionar uma doação para uma família faminta ao voto, Cássio filmava com seu celular e dizia com orgulho para a câmera, em uma ironia covarde e sádica, que não mais ajudaria a senhora por ela pensar diferente dele.

A gravação teria sido para um grupo de Whatsapp que Cássio participava. Por lá, certamente receberia apoio pelo ato, e outros que debochassem da senhora que se constrangia diante do vídeo e sorria envergonhadamente, como se não soubesse o que fazer, tentando acreditar que se tratava de alguma piada.

Não era. Por duas quartas-feiras Ilza e seus filhos ficaram sem receber as quentinhas. Cássio falava sério e a declaração de voto dela havia feito o homem cessar o apoio.

Mas algo estava reservado para dona Ilza e Cássio. O vídeo da covardia explícita foi divulgado, possivelmente por algum dos integrantes do grupo de Whatsapp que sentiu que deveria fazer alguma coisa. Rapidamente a filmagem se espalhou, como um vírus. Os veículos de comunicação de abrangência nacional começaram a divulgar o caso e foram atrás de Cássio e Ilza. 

Para quem tivesse o menor resquício de humanidade dentro de si, o vídeo foi uma paulada. Cássio começou a receber todo tipo de repúdio e foi às redes sociais pedir desculpas. Se dizia envergonhado e chamou o ato de “infeliz”.

Embora o arrependimento não tenha sido eficaz — evidentemente mais pela repercussão do que pela conscientização do ato de humilhação que provocou —, dona Ilza recebeu apoio de muita gente. O Movimento Sem Terra (MST) passou a fornecer alimentos para ela e seus vizinhos. O apresentador Luciano Huck, da Rede Globo, iniciou uma campanha para receber doações em dinheiro que repassaria a dona Ilza. 

O feitiço virou contra o feiticeiro. A “brincadeira” serviu como campanha contrária ao presidente que Cássio apoia, e dona Ilza recebeu muito mais apoio. Mas o triste episódio expõe uma faceta perversa sobre a sociedade brasileira.

Pessoas como Cássio Cenali não agem assim por impulso ou por ideologia. O episódio é o oposto do conservadorismo ou do liberalismo, não se contrapondo ideologicamente ao socialismo ou outra vertente que busca igualdade.
Um conservador é alguém que entende que a ordem social é como ela é por segurança, e que as mudanças devem ser graduais. Nessa forma de ver o mundo, a situação de dona Ilza mudará com o amadurecimento das instituições e com evolução gradual da sociedade, sem atos revolucionários. Para um liberal o ato é ainda mais ultrajante. A liberdade de alguém é justamente o fato de que todos devem possuir igualdades de oportunidades e de direitos. Depender de alguém para que possa lhe dar o que comer é antiliberal.

Para alguém como Cássio, o poder deve ser exercido pela força, pelo constrangimento, pelo dinheiro, pelas armas ou pelo medo. Em essência, é uma aderência aos preceitos de um grupo que chegou ao poder e entende que a democracia só funciona se houver poder absoluto de um grupo. Como pode, na cabeça dessas pessoas, existir um órgão como o STF que diga o que pode ou não pode fazer? Por que não se pode, na cabeça dessas pessoas, agir na imposição de um voto pela fome?

Estamos em uma encruzilhada. E ela não foi bifurcada de agora. Há pouco mais de 134 anos ainda havia seres humanos escravizados no Brasil, quando muitos países já haviam abolido. Isso deixa marcas. Pessoas eram tratadas como objetos, como bens. Era normalizado que muitos morressem de fome ou açoitados em paus de arara. E em alguma medida, ainda é.

Estamos em uma encruzilhada. E não é em quem se vota em outubro que dirá qual caminho seguiremos. Pessoas como Cássio não mudarão pelo resultado eleitoral. Caso decidamos, enquanto sociedade, seguir um caminho menos covarde, sádico e odioso nas nossas relações, precisaremos mais que cidadania e educação. Precisaremos de humanidade.
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