Edmundo Siqueira
27/06/2022 11:35 - Atualizado em 27/06/2022 12:11
Existe um conceito que se baseia nos processos de colonização do Brasil e no conjunto de práticas e mentalidades que depois se tornaram comportamentos: o chamado “Brasil profundo”. É aquele Brasil que parou no tempo, que tem ojeriza a conhecimento, cultura e ciência. Um tipo de “homem da roça”, xucro, que fomos habituados a ver na televisão, nas novelas da Rede Globo com temática rural.
Esse representante do Brasil profundo não se confunde com o agronegócio que o país tem hoje. Nele, o conhecimento e a ciência são tão essenciais quanto a terra. O nível de sofisticação e profissionalização é um dos maiores do mundo no setor. A imagem do agricultor sujo, desleixado e que fala errado não é aceita por lá.
Mas o “brasileiro profundo” ainda é bastante presente.
A figura histórica responsável por boa parte desse imaginário popular são os Bandeirantes. Tidos como corajosos desbravadores da mata e colonizadores do Brasil, responsáveis pela produção de riqueza, principalmente paulista, e caracterizados em obras de arte nos Museus do país com roupas elegantes, eram bem diferentes da realidade.
Um bandeirante foi basicamente um pirata, um caçador de índios. Andavam com os pés descalços e falavam Tupi, basicamente. Eram, os bandeirantes, “gente que vivia do que roubava”, como definiu o Conselho Ultramarino português.
Algumas bandeiras — comitivas de exploração — eram compostas por um capitão mor (bandeirante chefe), 12 homens brancos, cerca de 400 mamelucos (filhos de mães indígenas e portugueses) e mais de 1000 indígenas escravizados.
Homens bárbaros como Domingos Jorge Velho, enviado para dizimar o Quilombo dos Palmares em Alagoas, ou como Anhanguera, apelido de Bartolomeu Bueno da Silva, o “diabo velho”. Caçadores, em essência, com a missão de atacar indígenas.
A história foi fabricada. São Paulo e Rio em concorrência — narrativa dos bandeirantes para os paulistas e do Instituto Histórico e Geográfico para os fluminenses.
Mas o caso de São Paulo é emblemático. Nossa principal metrópole é ligada a todas as regiões do país por rodovias enormes e essenciais para o desenvolvimento — Regis Bittencourt, Fernão Dias, Bandeirantes e Raposo Tavares, por exemplo. Todas em homenagens aos nossos bandeirantes desbravadores. Além da homenagem, essas rodovias tem outro traço em comum: originalmente, eram os caminhos percorridos pelos índios.
Os indígenas ensinaram aos bandeirantes a sobrevivência na mata, quais caminhos percorrer, a língua falada e outros tantos traços culturais. Sim, as bandeiras foram necessárias para que o Brasil produzisse riquezas, mas essas sempre para abastecer outros povos ou uma minoria bem reduzida de brasileiros. A lógica sempre foi que, quando a farinha era pouca, alguns garantiam o pirão primeiro.
Esse forte dito popular veio da farinha de mandioca, que era um dos alimentos que os bandeirantes costumavam levar durante suas viagens pelo interior do Brasil. Quando a comida ia acabando, os bandeirantes apelavam para um único prato: peixe com pirão. E quando mesmo esse prato era escasso, o capitão mor da comitiva tratava de garantir seu pirão.
O passado, impossível de ser dominado, produz elementos como história e memória. O primeiro é sempre campo de embates, de construção de narrativas e inconcluso. O segundo elemento trata das lembranças, construídas pela oralidade e vivências.
História e memória construíram o Brasil profundo, que deixou marcas igualmente densas até hoje. Com consequências eleitorais, inclusive. Mas principalmente culturais. Em um país onde mais de 30 milhões de pessoas estão sem ter o que comer muitos ainda pensam: “Farinha pouca? Meu pirão primeiro”.