Farinha pouca, meu pirão primeiro
Edmundo Siqueira 27/06/2022 11:35 - Atualizado em 27/06/2022 12:11
Marcos Müller/Estadão
Existe um conceito que se baseia nos processos de colonização do Brasil e no conjunto de práticas e mentalidades que depois se tornaram comportamentos: o chamado “Brasil profundo”. É aquele Brasil que parou no tempo, que tem ojeriza a conhecimento, cultura e ciência. Um tipo de “homem da roça”, xucro, que fomos habituados a ver na televisão, nas novelas da Rede Globo com temática rural.
Esse representante do Brasil profundo não se confunde com o agronegócio que o país tem hoje. Nele, o conhecimento e a ciência são tão essenciais quanto a terra. O nível de sofisticação e profissionalização é um dos maiores do mundo no setor. A imagem do agricultor sujo, desleixado e que fala errado não é aceita por lá.
Mas o “brasileiro profundo” ainda é bastante presente.
A figura histórica responsável por boa parte desse imaginário popular são os Bandeirantes. Tidos como corajosos desbravadores da mata e colonizadores do Brasil, responsáveis pela produção de riqueza, principalmente paulista, e caracterizados em obras de arte nos Museus do país com roupas elegantes, eram bem diferentes da realidade.
Bandeirantes estilizados: Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista. Pintura de Benedito Calixto, 1903.
Bandeirantes estilizados: Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista. Pintura de Benedito Calixto, 1903.
Um bandeirante foi basicamente um pirata, um caçador de índios. Andavam com os pés descalços e falavam Tupi, basicamente. Eram, os bandeirantes, “gente que vivia do que roubava”, como definiu o Conselho Ultramarino português.
Algumas bandeiras — comitivas de exploração — eram compostas por um capitão mor (bandeirante chefe), 12 homens brancos, cerca de 400 mamelucos (filhos de mães indígenas e portugueses) e mais de 1000 indígenas escravizados.
Homens bárbaros como Domingos Jorge Velho, enviado para dizimar o Quilombo dos Palmares em Alagoas, ou como Anhanguera, apelido de Bartolomeu Bueno da Silva, o “diabo velho”. Caçadores, em essência, com a missão de atacar indígenas.
A história foi fabricada. São Paulo e Rio em concorrência — narrativa dos bandeirantes para os paulistas e do Instituto Histórico e Geográfico para os fluminenses.
Mas o caso de São Paulo é emblemático. Nossa principal metrópole é ligada a todas as regiões do país por rodovias enormes e essenciais para o desenvolvimento — Regis Bittencourt, Fernão Dias, Bandeirantes e Raposo Tavares, por exemplo. Todas em homenagens aos nossos bandeirantes desbravadores. Além da homenagem, essas rodovias tem outro traço em comum: originalmente, eram os caminhos percorridos pelos índios.
Estátuas de SP receberam manifestações com crânios no final de 2020 — Foto: Grupo de Ação/Divulgação
Estátuas de SP receberam manifestações com crânios no final de 2020 — Foto: Grupo de Ação/Divulgação
Os indígenas ensinaram aos bandeirantes a sobrevivência na mata, quais caminhos percorrer, a língua falada e outros tantos traços culturais. Sim, as bandeiras foram necessárias para que o Brasil produzisse riquezas, mas essas sempre para abastecer outros povos ou uma minoria bem reduzida de brasileiros. A lógica sempre foi que, quando a farinha era pouca, alguns garantiam o pirão primeiro.
Esse forte dito popular veio da farinha de mandioca, que era um dos alimentos que os bandeirantes costumavam levar durante suas viagens pelo interior do Brasil. Quando a comida ia acabando, os bandeirantes apelavam para um único prato: peixe com pirão. E quando mesmo esse prato era escasso, o capitão mor da comitiva tratava de garantir seu pirão.
O passado, impossível de ser dominado, produz elementos como história e memória. O primeiro é sempre campo de embates, de construção de narrativas e inconcluso. O segundo elemento trata das lembranças, construídas pela oralidade e vivências.
História e memória construíram o Brasil profundo, que deixou marcas igualmente densas até hoje. Com consequências eleitorais, inclusive. Mas principalmente culturais. Em um país onde mais de 30 milhões de pessoas estão sem ter o que comer muitos ainda pensam: “Farinha pouca? Meu pirão primeiro”.

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