Onde é que há gente no mundo?
Edmundo Siqueira - Atualizado em 12/06/2022 23:04
A Brazilian family in Rio de Janeiro by Jean-Baptiste Debret - 1839
Álvaro estava farto daquela festa. Onde já se viu festejar-se em pleno domingo a felicidade alheia? Ora, os domingos, principalmente de noite, servem para a melancolia — ou então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Pensou. Não disse, pensou; e calou-se com um salgadinho. A bodas de pérola de seus pais caíra justamente no dia dos namorados, e fizeram questão de comemorar com uma festa. Toda a gente da família resolveu comparecer, mesmo sendo domingo.
Apesar de amar seus pais e ter ficado feliz por eles comemorarem uma data tão simbólica e balzaquiana, Álvaro se sentia cansado de estar ali. Por sorte, a mesa que conseguiu estava ocupada por primos e primas que gostava. Mas, mesmo as boas lembranças da infância pareciam enfadonhas naquela noite.
“Talvez por ser domingo”. Tentava encontrar uma desculpa.
Mas não era o início da semana que o incomodava. A festa era belíssima, finamente decorada, convidados bem vestidos, músicos de blues mantinham o ambiente sempre agradável e a comida era de primeira. Não, definitivamente não era nada material que atrapalhava. Mas Álvaro sentia falta de voz humana.
Todos que vinham falar com ele nunca tiveram um ato ridículo. Nunca haviam sofrido um enxovalho. Nunca teriam sido senão príncipes — todos eles príncipes — na vida. Ninguém confessava um pecado, uma infâmia, uma cobardia. Era tudo falso e artificial. Não se falava de política, não se comentava sobre os relacionamentos dos outros e evitava-se assuntos de dinheiro.
Por um lado, era bom. Não haveria maiores contratempos na festa de seus pais. Tudo transcorreria na mais perfeita ordem, como eles mereciam, de fato. Mas o mundo não estava bem. Não, as coisas lá fora não transcorriam na mais perfeita ordem.
Havia fome e guerra. As pessoas estavam morrendo por violência urbana, por disputas políticas, por desentendimentos pequenos. As pessoas estavam com ódio, sem saber conviver com as diferenças. Ainda ontem, morriam sufocadas em leitos sem oxigênio, agonizavam por imunizantes que nunca chegavam, morriam amarradas em um poste e em câmaras de gás improvisadas.
Certamente ali na festa não era hora de falar sobre esses assuntos. Mas eles estavam debaixo dos cascos daqueles barcos seguros. Submersos, os assuntos. Mesmo que em nível muito elevado, continuavam assim pela densidade das embarcações luxuosas.
Ó príncipes, meus irmãos. Tens medo do ridículo de esse preocupar com o próximo? Por acaso temem - aqui com razão - que ao confessar predileções eleitorais estarão saindo de armários cheios de ressentimento? Ou é do ridículo da compaixão que temem? Da empatia? Se sentiriam fracos diante de sentimentos mais puros e ingênuos?
Ei, tios com copos de uísque na mão, envelhecidos em barris de carvalho, poderão as mulheres não os terem amado, ou poderão ter sido traídos, — mas ridículos nunca?
Saibam, ó príncipes, que ridículos estão sendo nessa festa chata e alijada de qualquer realidade. Aos olhos da história, ah como estão sendo ridículos. Se ainda teimam em fazer concessões morais para apoiar o funesto, temendo o julgamento de outros ainda mais nefastos que o apoiam, estarão sendo verdadeiramente inumanos — e verdadeiramente ridículso.
Argh! Estou farto de semideuses; Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?
Álvaro, ridiculamente, calava-se com outro canapé que sequer gostava.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Sobre o autor

    Edmundo Siqueira

    [email protected]