Naquele dia, de madrugadinha, caía um chuvarél na cidade. Fazia tempo que Benício não via, da janela da sala, tantos raios assim. Já estava sozinho, teimando com a insônia. Procurava um filme; o livro já havia terminado. Mas, o barulho dos pingos no vidro, que já entoava sua sinfonia junto aos relâmpagos, acabou por fazê-lo desistir da programação solitária, ali no sofá. Desligou o aparelho de som ambiente que tocava Miles Davis, deixou o copo ainda com algum uísque na pia da cozinha e tomou água. No quarto, não quis acordar a esposa e deitou-se devagar. Puxou o lençol até a altura do torso, fechou os olhos e adormeceu, usando a chuva como canção.
Longe dali, a mesma chuva não tinha toda essa poesia. O barulho que acordou Dona Marta não era lá muito musical. O barraco estava gotejando desde a última ventania. Chuva significava problema. Naquelas horas da madrugada ela já dormia há tempos, logo depois de dar janta aos meninos e coloca-los na cama. Precisava acordar às cinco no outro dia — Martinha, como é conhecida na comunidade, uma quituteira de mão-cheia, cria os filhos sozinha desde que o marido foi morto. Acordada pelos trovões, culpava-se em silêncio por não ter percebido que iria chover. Tirou alguma peça de roupa do varal, conferiu se as crianças não estavam se molhando, protegeu com um pano as panelas e espalhou umas tigelas onde tinha goteira. De volta para sua cama, fechou os olhos e rezou para nossa senhora proteger sua família.
As terras de Seu Joaquim ficavam alguns quilômetros da cidade, mas a mesma chuva também caiu por lá, algumas horas depois. Umas quatro e pouco da manhã ele já se aprontava na copa, quando os primeiros pingos faziam barulho furando o chão ao cair do telhado. Lembrou-se de olhar para a imagem de Nossa Senhora que tinha na parede e agradecer. Já fazia algumas semanas que o sol esturricava a plantação, e queimava a ponta do capim no pasto das vacas. Uma chuva caía bem. Satisfeito, mudou a vestimenta, incluindo uma capa. Antes de sair para o curral beijou a testa da filha e, mesmo antecipadamente e com a preocupação de não tirar dela mais alguns minutos de sono, lhe desejou bons estudos.
A mesma chuva caiu em diversas outras realidades da cidade. Desprovida de qualquer preconceito, ela molhou sonhos, embalou sonos, permitiu a vida, provocou acidentes...a mesma chuva, vinda das mesmas formações de nuvens, que se afunilam em pingos retilíneos. Sim, ela é sentida de maneira diferente em cada um que alcança. Alguns a renegam, outros agradecem aos céus. Mas ela sempre cai sobre nossas cabeças, quer queiramos ou não, quer estejamos preparados ou não.
A chuva pode, simbolicamente, assumir representações diferentes para Benício, Marta ou Joaquim. Mas ela sempre nos lembra de que somos parte de um sistema natural, e não estamos acima dele. E que ele é cíclico. A água da chuva vem e volta do mesmo lugar, repetidas vezes, sempre indispensáveis, a cada novo ciclo. Viveríamos sem água? De certo que não. Assim como não é possível fugir dos ciclos. Ah chuva, venha como vier, mas venha. E se não for pedir muito, escorra um pouco da desigualdade, sordidez e covardia. Nem que trovões precisem nos acordar de madrugada.