1º de maio: O problema da história é a história do problema
Edmundo Siqueira 01/05/2022 19:03 - Atualizado em 01/05/2022 19:14
Praça Haymarket, Chicago, EUA. 1886.
Praça Haymarket, Chicago, EUA. 1886. / Reprodução
Chicago, Illinois, Estados Unidos. 1886. Quem passava pela Praça Haymarket podia ver uma manifestação pacífica de um grupo de trabalhadores, pedindo uma condição e jornada laboral que fosse humanamente possível. A praça, que ficava no centro de Chicago, enchia-se cada vez mais, desde que o movimento havia começado, no dia 1º de maio; até a violência eclodir.
Operários e policiais iniciaram um conflito violento quatro dias depois que as manifestações começaram. Com baixas dos dois lados. Oito trabalhadores de Chicago foram considerados anarquistas, e condenados à morte. O evento trágico na Praça Haymarket é o símbolo histórico que determina as comemorações do Dia do Trabalhador.
Exatos 136 anos depois daquele 1º de maio, os mártires de Chicago, três jornalistas, dois tipógrafos, um operário da indústria têxtil, um carpinteiro e um vendedor, continuariam tendo que lutar — talvez pelas mesmas causas.
Vale lembrar que nos EUA, a lei que determinava a jornada de 8 horas — no governo Andrew Johnson — foi promulgada 18 anos antes dos movimentos da Praça Haymarket. Os empresários negavam-se a cumpri-la, impondo 16, 18 horas de trabalho.
No Brasil, quando a reforma trabalhista foi proposta e aprovada em 2017, no governo Bolsonaro, com pouca resistência de trabalhadores e sindicatos, estávamos vivenciando uma contrarrevolução, onde o Brasil flexibilizava direitos trabalhistas e criava impedimentos para organização coletiva dos trabalhadores — regredindo as relações de trabalho, ao invés de moderniza-las.
HEGEL E BOLSONARO
O problema da história é a história do problema. Essa formulação de Friedrich Hegel, filósofo alemão, trata da necessidade de entendermos os movimentos em seus contextos históricos. Os fenômenos e relações sociais contemporâneas não são isolados; vierem de e por algum lugar.
A chagada de Bolsonaro ao poder tampouco tem motivações isoladas. A formação social brasileira de hoje vem de uma realidade rural, agrária, que determinou as relações econômicas e de acumulação de capital. Os núcleos verdadeiramente urbanos, com realidades fabris, que demandavam serviços públicos complexos e onde as lutas de classe eram mais evidentes, são extremamente recentes no tempo histórico.
A luta contra a expropriação, que uma definição simplista é privar alguém de seus direitos ou bens, começa com a existência da classe operaria industrial. Trabalhadores submetidos ao mesmo sistema de exploração, em um mesmo ambiente, foram levados ao engajamento.
Voltando ao Brasil de hoje —  que é governado por alguém como Bolsonaro —, passou a ocupar um lugar de destaque na economia mundial e depurou suas relações econômicas e sociais, porém a despeito da preparação de sua classe trabalhadora. Grande parte do trabalhador de São Paulo, por exemplo, vem de uma onda migratória interna — de outras regiões e das zonas rurais — que se adaptou a uma suposta melhora de sua condição de vida e trabalho. Acostumado a situações de exploração e pobreza, um “melhorismo” proposital oferecia a esse trabalhador uma ilusão esperançosa.
CAPITALISMO, TRANSIÇÃO DO MUNDO DO TRABLAHO E INCAPACIDADE DAS ESQUERDAS
Rosa Luxemburgo, filósofa e economista marxista polaco-alemã, em sua obra A Acumulação do Capital, trouxe um dos melhores estudos sobre os limites do capitalismo e as consequências da extrema acumulação de renda e capital.
A expansão do rentismo e da acumulação de capital tem, por óbvio, um limite. Mas o capitalismo consegue criar um movimento de ondas concêntricas, que ao baterem na borda, recomeçam de outro ponto (como na analogia da pedra no lago). Assim, criando uma forma de não impor limites; sempre há crises, mas sempre devem haver recomeços.
As revoluções burguesas na França e nos EUA, buscaram a criação de um “novo homem”, um indivíduo livre, que pudesse fazer escolhas próprias e não vivesse sob os mandos de um Estado tirânico ou monárquico, onde uma pessoa, o Rei, personificava o poder. Foram revoluções que originaram muito dos conceitos dualísticos que servem de base para os conflitos atuais: esquerda, direita, proletariado, mercantilização de pessoas, exploração laboral, e outros tantos, vieram após a decapitação de reis, ou do próprio Estado.
O liberalismo clássico foi a base da Revolução Francesa, assim como da Guerra Civil Americana, que teve causa principal a escravização de pessoas negras. Apesar de toda deturpação que a ideologia liberal sofreu ao longo do tempo, ignora-la como conceito fundamental das relações sociais é um erro que parte da esquerda costuma cometer.
Uma dessas deturpações foi chamada de “neoliberalismo”, onde se acreditava ser preciso privatizar serviços públicos essenciais, inclusive saúde e educação. Uma UBS privatizada e professores pejotizados dando aulas em várias escolas particulares interessam ao neoliberalismo. O professor seria um “empreendedor da educação”, na visão neoliberal. O Estado garantiria apenas a propriedade privada.
O que boa parte das esquerdas não compreende é que a ideia liberal, ou mesmo neoliberal, não precisa se impor em um país com a realidade que o Brasil apresenta. A concentração de riquezas e o controle total dos meios de produção determinou a criação de uma elite que não é nobreza, não detém o poder sobre os indivíduos, mas controla seu meio de vida.
Em uma sociedade capitalista como a brasileira, a classe dominante aceita ser considerada igual política e juridicamente à classe dominada, mas com a certeza — quase absoluta — que a lei para na porta da fábrica, do latifúndio, ou do grande comércio varejista. Desigualdade em níveis estratosféricos e a mercantilização de tudo, determina a vida e as relações sociais.
Ao ponto de uma reforma trabalhista, aos moldes da imposta em 2017, fosse editada e autorizada sem a menor participação popular. Ao contrário, alijada dos atores que mais seriam (e estão sendo) afetadas por ela. Com a promessa de criar mais postos de trabalho (o que não aconteceu, temos um dos maiores índices de desemprego do planeta) aceitou-se a precarização ainda maior dos já existentes.
Em um mundo do trabalho em transição, o ex-lavrador nordestino que trabalha em São Paulo, terá que abrir um CNPJ e atuar como empreendedor entregando produtos de motocicleta.
‘POBRE DE DIREITA’ NAS RUAS
Hoje, 1º de maio de 2022, as ruas estão ocupadas. Mas não se assemelham à Praça Haymarket. Em sua maioria, quem está protestando, em várias capitais brasileiras, é o apoiador do presidente Bolsonaro, caracterizado por parte da classe média, da pequena burguesia, dos proprietários rurais e de conservadores travestidos de autoritários retrógrados.
  • Atos das centrais sindicais, 1º maio no Brasil.

    Atos das centrais sindicais, 1º maio no Brasil.

  • Manifestações no 1º de maio, em apoio ao presidente Bolsonaro.

    Manifestações no 1º de maio, em apoio ao presidente Bolsonaro.

  • Praça Haymarket, Chicago, EUA. 1886.

    Praça Haymarket, Chicago, EUA. 1886.

Insuflados pelo inimigo da vez, o STF, tremulam bandeiras do país e vestem suas cores em um 1º de maio que em nada se assemelha a suas motivações primeiras e essenciais do Dia do Trabalhador. A extrema-direita chegou ao poder e aprendeu manejar as massas de forma muito exitosa. Com tendências americanizadas, já se preparam para não aceitar o resultado das eleições que se avizinham, caso a “malvada esquerda” reassuma o comando do país.
O fato de a direita ocupar as ruas no dia do trabalho é uma determinação da construção histórica contemporânea. Não é possível fugir da história; não podemos atuar como juízes do tempo, bem como ignorar o contexto histórico que vivemos. O distanciamento da esquerda da classe trabalhadora não é um fenômeno isolado. Em uma lógica liberal, boa parte da esquerda atua no identitarismo, achando que o indivíduo é soberano, que as identidades suplantam o materialismo histórico, como conceito marxista.
Uma esquerda Romero Brito, multicultural, colorida e cheia de empoderamento que não dialoga com a realidade da maioria esmagadora da classe trabalhadora. “Meu corpo, minhas regras”, serve apenas para hastags da pequena burguesia progressista usar em roupas da moda, e postagens de rede social, se não tiverem acompanhadas de formação crítica e entendimentos históricos. Acabar com todos homens “brancos cis héteros” resolveria o problema do capitalismo, na visão dessa esquerda colorida e cirandeira, ignorando que a acumulação de privilégios está ligada principalmente no acúmulo de capital e relações do trabalho.
Não adianta chamar quem está de verde-amarelo neste 1º de maio de “pobre de direita”. Além de não resolver o problema da falta de consciência social e laboral, é elitista e coloca o povo como um objeto de estudo, um animal que precisa ser estudado na selva que vive. Bolsonaristas, sejam pobres ou ricos, são parte do povo, e serão as mesmas pessoas que irão compor o país em caso de derrota do líder protofacista. Ou devemos isolá-los? Decapitá-los como solução definitiva?
As praças não estão cheias de trabalhadores. Os mártires de Chicago não existiram no Brasil de hoje, neste 1º de maio. Miseráveis, de direita e esquerda, que sequer sabem o que significam esses conceitos, continuam a roer ossos e vasculhar o lixo. O problema da história, é a história do problema. Um bom Dia do Trabalhador para 'todes'

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