Natália Soares: Sobre recursos públicos e projetos de cidade
Natália Soares 04/01/2025 08:33 - Atualizado em 04/01/2025 08:45
Natália Soares
Natália Soares / Genilson Pessanha
Na última quinta-feira, dia 2 de janeiro de 2025, um dia após as comemorações que brindam a chegada do ano novo, o prefeito Wladimir anuncia um pacote de maldades, chamado de “ajuste fiscal”, publicado no Diário Oficial do município. Tal ajuste tem graves rebatimentos para os trabalhadores, tanto àqueles que atuam em regime de RPA quanto os servidores efetivos, na medida em que as progressões, triênios, quinquênios ficarão impedidos, bem como as contratações e aumento de pessoal deverão ser submetidos à Secretaria de administração e Recursos Humanos. Além disso, vários recadastramentos e dispensa de pessoal serão realizados e autorizados a partir do Decreto (nº 403 de 30 de Dezembro de 2024). Mal dormimos com as notícias das alterações às regras da aposentadoria e pensão dos servidores no final do ano de 2024 — embora toda a luta do Siprosep, Sepe e movimentos populares — acordamos com mais ataques aos direitos trabalhistas.
Quando assistimos a esse cenário que, a grosso modo, nos parece devastador e de acentuada crise econômica, devemos sempre nos questionar: Por que da crise? Quem são os responsáveis pelo aprofundamento dela? Quem paga a conta e por que paga? Diga-se de passagem, o TAG (Termo de Ajuste de Gestão) a que se refere o decreto versa sobre a utilização de recursos provenientes de Royalties e Participações Especiais para pagamento de pessoal, ou seja, historicamente as gestões fizeram má utilização desses recursos, ‘venderam nosso futuro’ e ainda que Campos tenha tido uma arrecadação extraordinária isso nunca se traduziu em qualidade de vida para a população. Uma fartura que permitiu uma inércia fiscal, sem geração de empregos ou saúde de qualidade com ênfase na atenção primária, sem transformação estrutural da educação e da integração da cidade, com o caos da mobilidade urbana. Ou seja, quando “o bolo cresce” os louros não são repartidos, mas quando a conta chega quem paga sempre são os trabalhadores.
O que ocorre em Campos, por óbvio, não está descolado do movimento nacional de disputa dos recursos públicos, do fundo público. Um estudo do orçamento pode demonstrar quais as prioridades da gestão executiva, mas também do poder legislativo, sendo possível identificar quem mais ganha e quem perde numa cidade, ou até mesmo àqueles que são excluídos do orçamento.
A nível federal, a classe poderosa se organiza para manter os privilégios dentro do orçamento federal, se apropriando de gastos tributários injustificáveis, como a desoneração da folha de pagamento, bem como outros incentivos fiscais sem contrapartida real para a sociedade, ao mesmo tempo que cobra o fim dos mínimos constitucionais em saúde e educação, a desvinculação do BPC e das aposentadorias do valor do salário mínimo, o que fere o princípio da dignidade humana. Usam seus meios de comunicação para pressionar o governo a implementar medidas absurdas, autoritárias e contrárias aos direitos constitucionais. Dizem que a Constituição não cabe no orçamento, quando é o orçamento que deve se moldar pela Constituição.
Em outra frente, agora respaldados pela autonomia do Banco Central, lançam mão dos instrumentos financeiros para extorquir o Estado com juros reais absurdos em comparação ao resto do mundo, baseados simplesmente nas “expectativas” (nada objetivas e muito ideológicas) dos agentes financeiros que se manifestam no nada transparente Boletim Focus. Mas quando essa mesma classe, dominante, é confrontada com a possibilidade de pagar imposto de renda mínimo de 10%, muito abaixo do que existe nas melhores experiências internacionais, ela grita. Quando a elite do judiciário e do legislativo está ameaçada nos supersalários, ela grita, diz que precisa ficar de fora dos limites da regra fiscal.
Em Campos não é diferente, quando olhamos a gestão atual e as anteriores, a Câmara, recém empossada, não vemos projetos distintos de cidade. Falo aqui de um projeto popular que busque sanar questões relacionadas à alfabetização e educação pública de qualidade, com estrutura adequada e profissionais valorizados; a centralidade na prevenção em saúde em todos os territórios, como por exemplo a consolidação e expansão do Estratégia Saúde da Família; a promoção da dignidade humana, com valorização dos saberes tradicionais, sejam ligados à agricultura, à pesca, aos fazeres quilombolas, entre outros. Falo da possibilidade de uma reforma urbana popular que não mantenha estruturas agrárias arcaicas, que pense a habitação como prioridade e por isso mesmo busque implementar mecanismos de sustentação da função social das propriedades, combater a especulação imobiliária e garantir direitos sociais; que institua a Tarifa Zero para garantir acesso aos recursos da cidade. Recursos esses que são distribuídos de forma desigual.
Giancarlo Moreira Gama, mestre em Políticas Públicas pela universidade de Oxford acabou de defender a dissertação que apresenta que 90% das prefeituras que implementaram a tarifa zero gastam menos de 2% do orçamento com essa política, sem ter criado nem um novo imposto. Ou seja, é uma questão de prioridade dentro do orçamento, além disso, de coragem para fazer o enfrentamento aos grupos que dirigem, tradicionalmente, a Política de Transporte nas cidades. O transporte é uma política pública primária, porque confere a possibilidade de acesso a todas as demais e aos recursos da cidade, como saúde, educação, cultura, lazer, trabalho.
Em 2010, enquanto ainda era estudante de Serviço Social da UFF, apresentei, juntamente ao meu orientador Dr. Hernan Mamani (estudioso da Política de Transporte), as conclusões de um estudo da iniciação científica que apontava que a Política de transporte em Campos é controlada pelas empresas do transporte, não existe espaço para o controle social e, portanto, carece de democratização do acesso, mas também das decisões sobre ela. Na época evidenciávamos que mesmo as greves do transporte que ocorriam no município eram mecanismos de pressão dos “patrões” em relação aos subsídios da Prefeitura e a busca pelo lucro. Quinze anos se passaram e as alegações ainda são as mesmas: “a execução de uma política de transporte pela Prefeitura é utopia!” “As privatizações melhoram o funcionamento dos serviços!” “Tarifa zero nem se fale!”
O discurso dos quem têm poder nos faz considerar que eles são meros objetos da conjuntura política e social, mas são eles que têm forjado essas conjunturas. Eles são atores ativos que deliberam sobre aquilo que terá impacto nas nossas vidas. Considero que a frase da escritora Carolina Maria de Jesus resuma bem nossa situação: “Quem inventou a fome são os que comem”.
* Professora

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