Maestro Ethmar Filho - Um maestro sádico
*Maestro Ethmar Filho - Atualizado em 27/11/2024 15:48
 
Como maestro, o húngaro Fritz Reiner praticamente não tinha falhas, por mais falho que fosse pessoalmente. Seu repertório variou da música leve de Johann Strauss Jr. e do teatro musical Carousel de Richard Rogers, à gravidade de Das von der Erde de Mahler. Igualmente à vontade no repertório alemão, russo e francês, ele tocou música de Bach a Bartok e muito mais. Mas a estrada foi difícil para os músicos que se juntaram a ele em suas buscas artísticas: exigente se você estivesse do seu lado bom, ameaçando sua carreira se não estivesse.
De acordo com Gunther Schuller, que tocou trompa principal sob Reiner na Metropolitan Opera: “Ele claramente tinha uma veia sádica e realmente gostava de deixar os músicos desconfortáveis, fazê-los se contorcer, humilhá-los. Ele era o tipo que infligia suas gratificações sádicas particulares de uma maneira friamente clínica, perfeitamente controlada, um tipo que vimos muitas vezes em filmes caricaturando oficiais prussianos ou nazistas e coisas do tipo… Com Reiner, eu claramente sentia que ele estava obtendo um certo prazer emocional e intelectual ao torturar suas vítimas… Ele era uma pessoa que não apenas entregaria seu sarcasmo pungente em total calma calculada, mas também perseguiria sua vítima até que a pessoa quebrasse, sendo sintomático esse tipo de sádico verbal que pode facilmente sentir um fraco que é incapaz de resistir ao abuso; esse tipo de sádico caça sua presa até que a matança seja realizada.”
Reiner tinha uma capacidade dupla de infligir desconforto e criar momentos musicais surpreendentes, combinada à precisão cirúrgica de sua abordagem com os músicos. Por meio de seus movimentos e palavras, o maestro era capaz de inflectir a linha musical ou infligir dor pessoal conforme ele escolhesse. Reiner adotou uma abordagem minimalista ao uso de sua batuta, no que veio a ser chamado de “vest pocket beat” que em tradução livre quer dizer “bolso do colete batido” e que significa uma regência de gestos curtos e próximos ao corpo.
Como Philip Farkas (trompista principal durante a maior parte da gestão de Reiner na Chicago Synphony Orchestra) relembrou: Ele regia com tudo o que tinha, não apenas com as mãos. Lembro que ele olhava para os primeiros violinos, então só tínhamos um perfil. Uma grande entrada de metais entrava. Ele virava a cabeça de repente e, ainda direcionando as mãos para os violinos, olhava para nós e estufava as bochechas bem na batida, o que era uma demonstração real de quando as madeiras deveriam entrar. Então, se tivéssemos aquele ataque que ele nos dava com as bochechas, se ele quisesse um crescendo, suas sobrancelhas subiam lentamente. Enquanto ainda trabalhava com os primeiros violinos, ele podia chutar para trás e trazer as violas com o pé.
Claramente, Reiner conhecia o seu negócio e sabia o que poderia alcançar com talento e intimidação, como Farkas ilustrou ao relembrar o primeiro ensaio de Reiner com a CSO como seu novo Diretor Musical: Tivemos muitos anos de disciplina frouxa e muitos maestros convidados. Os homens eram bons, era uma boa orquestra, mas indisciplinada e longe de ser um grupo coeso. Então Reiner assumiu e desfez aquela orquestra. Em um ensaio de duas horas, ele nos separou e nos juntou novamente — literalmente — e no decorrer disso demitiu um dos homens. A reputação de Reiner o precedeu.
De fato, uma característica atribuída à sua musicalidade sádica era a capacidade de dar a cada músico a sensação de que ele e somente ele estava sendo observado pelo maestro a todo momento. Talvez tenha sido essa qualidade que explique a seguinte história da CSO, também envolvendo Royal Johnson.
Johnson estava sentado no palco — no corredor que levava à porta do palco. Em um ensaio inicial na gestão de Reiner, Johnson se levantou quando Reiner passou por ele em direção ao pódio e caminhou muito silenciosamente logo atrás do maestro, espiando por cima do ombro. O que ele observou foi uma aparente cicatriz cirúrgica que Reiner tinha na nuca, algo que outros músicos já haviam comentado. Johnson rapidamente retornou ao seu assento antes que Reiner notasse algo incomum. O violinista se virou para seu companheiro de palco e disse: "Sabe, essa não é a cabeça original dele!".
As pessoas tinham medo de Fritz Reiner. Pessoas talentosas, pessoas autoconfiantes, pessoas decentes. Ele era famoso por encontrar uma pequena rachadura na sua confiança e escancará-la. Mas ele também era conhecido por outra coisa. Fritz Reiner não era apenas um sádico, mas um gênio. Um dos maiores maestros de todos os tempos e o homem que levou a Chicago Symphony, de 1953 a 1962, e criou uma lenda.
De acordo com Igor Stravinsky, Reiner “fez da Chicago Symphony a orquestra mais precisa e flexível do mundo.” Para aqueles que querem que os indivíduos sejam nitidamente categorizados como todos bons ou todos maus, Reiner é confuso: um grande artista e um ser humano questionável. Ele traz à mente o comentário de Toscanini sobre o compositor Richard Strauss: “Para Strauss, o compositor, tiro meu chapéu; para Strauss, o homem, coloco-o de volta.”

Maestro Ethmar Filho – Mestre e Doutorando em Cognição e Linguagem pela Uenf, regente de corais e de orquestras sinfônicas há 25 anos.

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