Arthur Soffiati - Construindo o precipício da atualidade
* Arthur Soffiati - Atualizado em 09/06/2024 12:58
A maioria dos seres humanos não pensa na e não se importa com a crise ambiental da atualidade por não ter informação, por não ter interesse ou por não acreditar nela. A maioria vive o dia a dia, o aqui e o agora. Quando eles sofrem algum revide da natureza, como no Rio Grande do Sul, o nível de consciência continua o mesmo ou muda pouco. É comum pensar-se em castigo de Deus ou algo simplório.

Mas as atitudes sobre a crise ambiental, sobretudo acerca das mudanças climáticas, vêm mudando entre as autoridades governamentais. Elas não acreditaram no primeiro momento. Até as negaram, tanto na direita quanto na esquerda. A direita radical continua negando. A questão não mereceu atenção na Conferência de Estocolmo, em 1972, embora viesse se avolumando sorrateiramente nos últimos 500 anos. Entende-se. Faltavam estudos e manifestações eloquentes. Como pode acontecer com uma pessoa que aparece com um quisto cancerígeno na pele. Ela não acredita no primeiro momento. Nega no segundo. E pode ver o câncer generalizar-se na forma de metástese.

A metástese ambiental da atualidade começou no século XV, com as grandes nave-gações europeias. Aqueles tripulantes e viajantes não se arriscaram para levar sua religião a outros povos nem para conhecer o mundo. Eles estavam a serviço de países que queriam ganhar dinheiro. E eles ganharam derrubando florestas, caçando animais, matando nativos e escravizando pessoas. Entre os séculos XV e XVIII, a Europa começou a escavar um precipício sem saber. As riquezas obtidas dirigiam os olhares para o “progresso” e para a crença na felicidade geral. Esta segunda nunca veio.

Com a revolução industrial, no fim do século XVIII, e sua propagação a partir do século XIX, o precipício tornou-se mais largo e mais fundo. Acreditava-se que ele era obra da natureza. Seria fácil superá-lo com a tecnologia ocidental. Havia como transpô-lo com pontes, túneis submarinos, navios possantes, aviões modernos. Os navios do século XV se modernizaram. O vapor moveu locomotivas e automóveis. Mas tudo se tornou mais rápido com o carvão mineral, o petróleo e o gás natural. A humanidade estava liberta dos constrangimentos da natureza.

Mas o desmatamento em larga escala e a queima de combustíveis fósseis lançou gases na atmosfera, desequilibrando-a. Aquela atmosfera criada pela natureza há 10 mil anos passados estava sendo modificada por atividades humanas, embora se negasse a possibilidade da civilização em mudar o clima. A extinção de espécies trouxe problemas para a economia e para a saúde humana. Mas acreditava-se que a ciência tinha solução para tudo. As cidades se agigantaram em todo o mundo. Nos países pobres, de forma desigual. Mas em todo o mundo ignorando os limites da natureza.

De cima abaixo, no âmbito da humanidade, propagou-se a concepção de que a natu-reza é ilimitada. Que podemos tirar dela o que desejarmos. De jogar nela todos os resíduos do nosso consumo. Ensinou-se a ser consumista, imediatista, individualista, egoísta. “Consumam e sejam felizes. Não pensem no dia de ontem nem se incomodem com o dia de amanhã. Se hoje você não é feliz, amanhã o será.” E o precipício foi se aprofundando.

Erguemos pontes, mas elas ruíram, como muitas no Rio Grande do Sul. Mas não acreditamos. Não deixaremos nossos carros movidos a combustíveis fósseis. Queremos veículos cada vez mais potentes, que desenvolvam altas velocidades. Existem pessoas advertindo que as pontes caíram e que nós devemos reduzir a velocidade dos nossos maravilhosos veículos. Elas apresentam dados. São uns chatos, mentirosos e antiprogresso. Continuemos a correr. Nada de frear repentinamente. Podemos capotar e morrer. Essa, sim, é a realidade. Reduzir a velocidade e mudar de rumo? Nada disso. Esse é o rumo da felicidade.

Mas, de fato, o precipício está aberto a nossos pés. As pontes caíram. As embarcações não conseguem atravessar a correnteza. As pistas dos aeroportos foram alagadas. Não apenas nossos veículos foram arrastados pela correnteza. Nossas casas foram inundadas. Perdemos tudo. Nossos cultivos e pastos ficaram embaixo d’água. Tivemos prejuízos incalculáveis. Mas tudo será reconstruído tim-tim por tim-tim como era antes. Os governos destinarão recursos financeiros para isso. Designarão uma autoridade central para coordenar os trabalhos. Aproveitaremos a catástrofe para desviar um dinheirinho para nosso bolso.

Como? Construir nossas casas e nossas cidades de outra forma? Não há outra forma. Tudo será como antes. Deus é mais. Enchentes, ventos fortes, secas severas não vão mais acontecer. Esse negócio de casas e cidades adaptadas ao novo padrão climático é coisa de ecologista. É tudo um bando de agitadores e comunistas com ideias malucas. Cidades resilientes? O que é isso? Queremos que tudo volte ao normal. E nós sabemos que o normal é como antes.

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