Arthur Soffiati - O retorno de García Márquez
* Arthur Soffiati - Atualizado em 14/03/2024 16:04
Na sua crônica semanal publicada em “O Globo” sábado passado (9), o escritor angolano José Eduardo Agualusa anunciou o lançamento do romance póstumo do famoso escritor colombiano Gabriel García Márquez, com o título de “Em agosto nos vemos” (Record: Rio de Janeiro/São Paulo, 2024). Agualusa escreveu que, tão logo terminasse de escrever a crônica, começaria a leitura do novo romance. Ao ler a crônica, eu já tinha lido o novo livro do Prêmio Nobel de Literatura, um dos poucos merecidos. Trata-se de um romance curto. Li-o em um dia.
A preferência de Agualusa recai sobre “O amor nos tempos do cólera” e “O outono do patriarca”. Coincidentemente, estes são também os meus prediletos. Existem duas dúvidas externas ao texto do romance póstumo do escritor colombiano. A primeira é que se trata de um livro inacabado. Há fortes evidências de que o autor o concluiu. A segunda se refere à concordância do autor em que fosse publicado. Os filhos confirmaram que ele aquiesceu com sua publicação ao fim da vida. Se não tivesse concordado, nem sempre se deve respeitar a vontade do morto. Agualusa lembrou bem o caso de Kafka, que teve seu desejo desrespeitado por seu amigo Max Brod. Esse desrespeito permitiu que conhecêssemos um dos maiores gênios da literatura mundial.
O romance de Márquez se passa numa família de músicos. A figura central é a esposa, cujo nome é Ana Magdalena Bach, a filha compositora do grande Bach. Ela se aproxima dos 50 anos, mas é uma mulher ainda com encantos juvenis. Anualmente, em agosto, ela visita uma ilha (não nominada) para depositar flores na sepultura humilde da mãe num cemitério pobre. Ela vai sozinha, deixando o marido e o casal de filhos na cidade. A ilha tornou-se um atrativo turístico. Existem hotéis simples do passado e hotéis de luxo do presente. Ela costuma se hospedar por apenas um dia, visitar o túmulo da mãe e retornar para casa.
Nas três últimas visitas focalizadas no romance, acontece algo inesperado, mas talvez desejado, a Ana Magdalena. Ela bebe um pouco mais no bar do hotel ao lado de um desconhecido. Depois de um tempo, os dois vão para o apartamento dela e um envolvimento sexual ocorre entre ambos. O escritor o descreve o encontro de forma discreta, mas carregando as tintas no sensualismo. Ao acordar, ela encontra uma nota de 20 dólares. Ana Magdalena se dá conta do que aconteceu. Era ou não seu desejo?
O sentimento de culpa não é tão forte para uma mulher da sua idade, casada e mãe. Afinal, ela sabia que seu marido também vivia muitas aventuras. Era um homem de meia idade, charmoso e professor do conservatório de música. Ela tinha ciúme dele. De certa forma, dá-se o direito de também viver um romance.
No ano seguinte, ela chega à ilha aberta para uma nova aventura. Encontra um homem vigarista e acostumado e se aproveitar de mulheres. Tratava-se de um sedutor ridículo. Mas Ana Magdalena se permite a aventura. Em agosto do ano seguinte, ela encontra um velho amigo da família que nunca escondeu o desejo por ela. Dessa vez, nada acontece. Ana beira os cinquenta anos no fim do romance. Parece que sua motivação principal deixou de ser visitar a sepultura de sua mãe e passou a ser o encontro de alguém com quem viva uma aventura amorosa de apenas uma noite. O marido desconfia das mudanças que se operaram nela, mas não há elementos que a incriminem.
Tendo se criado num mundo machista, García Márquez está dando voz a uma mulher que se dedicou ao marido, à música e à leitura de bons livros. Ana Magdalena tem amigas casadas que se permitem aventuras. Na sua última visita à ilha, aparecem elementos que a levam a suspeitar da sua mãe. Talvez ela também tivesse vivido aventuras amorosas. Mas Ana Magdalena se lamenta pela “desgraça de ser mulher num mundo de homens”.
Não sou formado em letras, mas tenho lido muita ficção e poesia, sobretudo de jovens autores. Confesso minha insatisfação. De vez em quando, encontro algum autor que, a meu ver, traz alguma promessa, como Fabiane Guimarães e Bethânia Pires Amaro. “Em agosto nos vemos” não é o melhor livro de García Márquez, mas conserva sua marca de bom escritor. Mesmo escrevendo um pequeno e despretensioso romance, Márquez encanta pelo enredo e pela ambientação. Esse romance póstumo é luminoso como todos os outros. A paisagem não merece muita atenção, mas o pouco que o autor fala dela mostra um ambiente solar. A cidade em que a família de Ana Magdalena vive não merece olhares atentos. Contudo, a travessia de barco para a ilha — ida e volta —, o mar, o sol, a ilha, as árvores inserem-se num clima caribenho de muita luminosidade. E, como em “Memória de minhas putas tristes”, Márquez tematiza o amor sexual em pessoas maduras. Aqui, o caso de uma mulher de meia idade, com um marido e um filho músicos e com uma filha freira.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS