Arthur Soffiati - Iniciantes
* Arthur Soffiati - Atualizado em 18/10/2023 13:06
Gosto de conhecer o trabalho de iniciantes na literatura. Há escritores que começam de forma modesta e se afirmam aos poucos. Machado de Assis não conquistaria a posição de maior escritor do Brasil com seus quatro primeiros romances (“Ressurreição”, “A mão e a luva”, “Helena” e “Iaiá Garcia”). A virada veio com “Memórias póstumas de Brás Cubas” e, a posteriori, com seus contos. Já Clarice Lispector revelou-se uma grande escritora com “Perto do coração selvagem”, seu livro de estreia.
Há escritores que marcam um determinado momento e depois ficam presos a seu tempo. Quem se lembra de Darcy Azambuja, Roque Callage, Waldomiro Silveira e Viriato Corrêa? Seus livros foram admirados em sua época. Contos seus foram considerados os melhores nas listas de escritores. Hoje, foram esquecidos. Mas, atentemos para as palavras de Mário de Andrade: “A segunda classe é a maior força de uma literatura, os novos, os medíocres. Os grandes não só se apoiam nela, mas são produzidos por ela e se alimentam dela”. Edgar Morin diria que se trata da dialética quantidade x qualidade. De uma multidão de livros escritos e publicados, emergem um autor e uma obra (ou mais) consistentes.
Sou apenas um leitor empenhado. Não tenho formação em letras para exercer uma crítica ou uma análise competente. Mais uma vez, em minha defesa de comentar livros de poesia e ficção, acompanho Mário de Andrade: “’Pra’ mim, a crítica é arte. ‘Pra’ mim, a crítica não tem que exercer a imparcialidade e nem mesmo a justiça, mas a liberdade de julgar que não é a mesma coisa. ‘Pra’ mim, a crítica é ato de amor, de Charitas, no total sentido”. (“Cartas de Mário de Andrade e Álvaro Lins”. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1983).
Creio que o Modernismo está intimamente ligado à literatura atual produzida no Brasil, mesmo que o autor não tenha o mínimo conhecimento do que os modernistas produziram ou que detestem o movimento. Alguns fatores mais ajudam a compreender a literatura atualmente produzida no Brasil. Um deles é a televisão. A expectativa de muitos escritores é ver seu romance transformado em novela ou seriado de TV. Alguns até escrevem seus livros facilitando a adaptação para a TV. Outros fatores são a urbanização e a globalização. Tem-se a errônea impressão de que a ficção ambientada em meio urbano só começou com o Modernismo. Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida não arredam pé da cidade, para só mencionar alguns exemplos. Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa, por outro lado, não arredam pé do sertão nordestino e do cerrado.
Mas, nos dias que correm, a maioria dos romances e dos contos é ambientada em meio urbano. Outro fator ainda é a globalização, que permite ao autor movimentar seus personagens num mundo ocidentalizado. Por fim, mas não por último, a disseminação das redes sociais está impondo, progressivamente, um ritmo novo à literatura: textos curtos que podem ser lidos sem compromisso com a perenidade. Textos que são “consumidos” e esquecidos. Alguns têm valor artístico e se perenizam. A maioria é esquecida, como aconteceu com muitos autores que deixaram livros escritos em papel e que gozaram de notoriedade por algum tempo.
Registro alguns nomes que estrearam na literatura de ficção nesse objeto que, para uns, tornou-se obsoleto, mas que, para outros, continua atualíssimo: o livro em papel. Uma delas é Lívia Machado, com o livro de contos “Uma estrada toda sua” (Rio de Janeiro, 7Letras, 2022). O título do primeiro conto é o do livro. Contos médios e curtos. Lívia lançou seu primeiro livro com 33 anos. Natural que estreantes revelem imaturidade. Ela é bastante infantil em sua escrita. “’Poltergeist’ foi o filme mais horripilante que eu já vi em toda minha vida”. “’Gravidez’ nem se fala: o próprio nome já diz o quanto é grave” (trocadilho meio infame). “Me deixa!”, “Que saco!”. Exclamações adolescentes que tornam sua prosa imatura. A autora se revela ingênua e inconsistente, por mais que cite autores. Aborda sua infância e juventude. Outras formas de vida, como a perceber o diferente. Ela transita pelo intimismo, neorregionalismo, alteridade, urbano, memorialístico.
Outro é Mateus Baldi, com o livro “Formigas no paraíso” (São Paulo: Faria e Silva, 2022), com 11 contos. Baldi é bem expressão do nosso tempo. Seus contos são ambientados na atualidade, no meio urbano, nos Estados Unidos da América e no Brasil. Seus textos me pareceram imaturos e superficiais. Registrei um exemplo: “Nunca para/não para/nunca/de Cair/a chuva”. Colocadas na vertical, as palavras parecem formar um poema concreto, em que a forma sugere o evento (a chuva que cai). Num conto narrado por mulher: “Os homens nunca leem a gente. Nunca entendem a gente”. Enfim, o autor escreve de forma superficial e dispersiva. É errático. Sua prosa é frouxa e imatura. Ele nasceu 1994, no Rio de Janeiro, e era mestrando em Letras na PUC-Rio quando lançou o livro. Com frequência escreve resenhas publicadas em “O Globo”. Já colaborou com “Piauí”, “Folha de São Paulo” e “Época”. Fiquemos atentos ao seu futuro.
Tito Leite estreia com “Dilúvio das almas” (São Paulo: Todavia, 2022). Ele nasceu em 1980, no Ceará. É monge beneditino. Já publicou dois livros de poesia. “Dilúvio das almas” é seu primeiro romance. O personagem central volta à sua terra natal, no interior. A trama se passa numa pequena cidade. Insere-se na linha de retorno ao regional, encontrando muitas mudanças provocadas pela invasão do urbano, mas ainda guardando ranços do sertão. As reflexões feitas pelo narrador/personagem são muito elaboradas em consideração à sua escolaridade e vivência. Trata-se de uma narrativa ingênua e fraca. O autor escolheu o personagem principal para narrar. Ele não pode demonstrar conhecimento, pois não teve formação cultural para tanto. Seria melhor um narrador universal. Ele descreve o sertão de forma caricata, copiando a realidade política do Brasil, como o funcionário fantasma. Narrativa postiça, com muitos estereótipos. O herói faz reflexões e demonstra conhecimentos que não poderia ter. Aborda a realidade de forma irreal. Afinal, quem narra: o autor ou o personagem? Aos 42 anos de idade, Tito lança um romance sofrível, cheio de polaridades. Cria um herói vitorioso ao fim. Um herói vitorioso, embora não parecido com Jerônimo, o herói do sertão. Não há nuances entre o bom e o mau, entre o bem e o mal. É difícil ver futuro luminoso para o autor, mas nunca se sabe...
Nascido em Andradas/MG em 1992, Leonardo Piana, aos 30 anos, lança “Sismógrafo” (Juiz de Fora: Macondo, 2022), seu primeiro romance. Eduardo, personagem que narra, volta a Andradas, sua cidade natal, onde viveu infância e adolescência. Ele tinha uma amiga. Seus pais se separaram. Sua mãe teve vários romances. Eduardo se descobre homossexual e vive um amor tórrido com um colega de ginásio. Em Andradas, começa a recordar sua história, intercalando capítulos sobre o presente com capítulos sobre o passado. O interior mudou. Não é mais como na literatura regionalista. Eduardo pouco aparece no ambiente. A narrativa podia ser ambientada na cidade grande porque se encaminha para o intimismo. A alternância entre passado e presente vai, pouco a pouco, tornando-se monótona. Andradas aparece muito pouco: “... é a mesma cidade, sim, mas tão diferente. Encontro uma Andradas decadente...”; “... a cidade está crescendo, e o que existe ao redor é devastado pelas construtoras contratadas em processos de licitação forjados, pelas autoridades cúmplices da especulação imobiliárias. Arrancaram nossas melhores árvores”.
O livro segue um esquema fácil, que empobrece a narrativa. Eduardo-Tomás-Clara. Parece não existir mais ninguém. “... meu rosto de menino enfim se despedindo de um afeto pela cidade que não tinha se afeiçoado a mim, um afeto nunca concretizado, submerso na narrativa do lugar que eu tinha criado: um afeto, este também, clandestino. Andradas é o que resta quando preciso sair de São Paulo”.
A foto de uma mulher com uma criança no fim parece ser a da mãe com seu filho. O romance parece ser autobiográfico, o que facilita a imaginação, pois a vida pessoal é o roteiro.
“Tilikum” (São Paulo: Melhoramentos, 2022), livro de estreia de Manuela Dias, enquadra-se no que Maria Esther Maciel (“Animalidades”, São Paulo: Instante, 2023) chama de zooliteratura, expressão fácil como ecocrítica e antropoceno. A academia se deleita com conceitos, transformando-os não em mediação entre o analista e a realidade, mas na própria realidade. Manuela Dias começa a dolorosa história de uma baleia caçada bebê para entretenimento de humanos, dando pistas de quem se trata. Pistas tão evidentes que, logo no início, sabe-se tratar-se de um cetáceo. Essa baleia nasceu livre, em 1981, e morreu em cativeiro, em 2017. Ela matou alguns tratadores e se rebelou contra seu cativeiro. O animal adquire traços humanos. O esforço de Manuela para convencer o leitor de que se trata de um animal não logra resultado.
Dos autores que estrearam em 2022, destaco apenas Everton Behenck com “Entre o céu e o sal” (São Paulo: Nacional, 2022). Trata-se de uma distopia cujo título sugere que se ambienta entre o mar e a montanha. O nível dos oceanos subiu com o aquecimento global e invadiu as áreas baixas do Rio de Janeiro. Tudo se inverteu. As áreas nobres da cidade, nas terras baixas, foram invadidas pelo mar. Os edifícios de luxo foram abandonados. Os ricos subiram os morros e ocuparam áreas antes dominadas por favelas. Agora, pobres, traficantes e milicianos moram nos prédios e ricos moram em casas construídas no alto dos morros. As igrejas evangélicas assumiram o controle. Elas dominam uma droga de alto valor, que leva as pessoas a terem visões seráficas. A vida humana vale pouco. Bandido, mocinho e líderes religiosos se confundem. O autor é publicitário e músico, tendo já lançado dois livros de poesia. As mudanças que ele narra no livro se concentram apenas no Rio de Janeiro, mas é claro que elas ocorreram em todo o mundo. Seria pedir muito que a distopia concebida por um iniciante tivesse a abrangência de “Não verás país nenhum”, a melhor distopia concebida no Brasil. Escrita por Ignácio de Loyola Brandão, ela foi lançada em 1980.
No geral, a literatura brasileira atual não anda bem. Os estreantes e os veteranos parece atravessarem uma crise de criatividade. Esses veteranos também merecerão atenção em breve.

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