Arthur Soffiati - Uma viagem desconhecida
* Arthur Soffiati - Atualizado em 04/10/2023 09:14
Mário de Andrade não foi um grande viajante. Ele só saiu do Brasil em duas ocasiões, mesmo assim em seus arredores. Subindo o rio Amazonas em 1927, ele visitou rapidamente Iquitos, no Peru, e uma cidadezinha na Bolívia. Seus amigos modernistas viviam na Europa. Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Sérgio Milliet viviam no exterior, principalmente na Europa, onde chegavam a passar anos.
Mário limitou-se ao Brasil. Andava nos arredores da cidade de São Paulo e no interior do estado de mesmo nome fazendo coletas para seus estudos de folclore, principalmente. Quase todos reunidos nos livros “Aspectos do folclore brasileiro” e “Danças dramáticas do Brasil”. Ele foi a Minas Gerais quatro vezes. Em nenhuma oportunidade, foi gratuitamente. Na primeira, em 1919, visitou o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens e colheu informações para a série de conferências sobre arte religiosa do Brasil, reunidas muito depois de sua morte no livrinho “A arte religiosa no Brasil”. A segunda, em 1924, foi empreendida em companhia de vários intelectuais para visitar, juntamente com o escritor francês Blaise Cendrars, as cidades históricas de Minas Gerais. Foi quando conheceu Carlos Drummond de Andrade pessoalmente. A terceira foi em 1939, e a quarta, em 1944, pouco antes de sua morte. Ao Rio de Janeiro, fez muitas viagens, inclusive morando na cidade entre 1938 e 1941.
As mais famosas viagens de Mário foram feitas à Amazônia, em 1927, e ao Nordeste, em 1928. Ele fez o registro de ambas no livro “O turista aprendiz”, também póstumo. Trata-se de um relato distinto de outros tantos naturalistas e escritores. Euclides da Cunha viu a Amazônia em sua dimensão natural. Mário também, mas colocou poesia em sua viagem. No Nordeste, ele colheu muito material para seus estudos e para sua concepção de cultura brasileira, distinta da cultura portuguesa.
Ele esteve uma vez em Campos, deixando seu rastro num artigo que escreveu sobre Alberto Frederico de Morais Lamego, de quem veio comprar sua coleção de documentos para a Universidade de São Paulo, em 1935. Sobre essa viagem, organizei, em 1992, o livro “Mário de Andrade e(m) Campos dos Goytacazes – 1935-1938”, reunindo as cartas de Mário para Lamego. Agora, que o arquivo de Mário está franqueado a pesquisas, penso em lançar a segunda edição do livro incluindo as cartas de Lamego a Mário.
o ser afastado do Departamento de Cultura do município de São Paulo, Mário de Andrade mergulhou em profunda depressão. Ele havia se empenhado na criação e na consolidação de um organismo municipal de cultura que chegou a ter projeção nacional, contando com colaboradores do nível de Claude Lévi-Strauss e sua mulher, Dina. Os getulistas tomaram o Departamento de assalto, atacando Mário de maneira torpe e tentando demolir sua obra.
Enquanto o Estado Novo atacava Mário no plano municipal, no plano nacional, o ministro Gustavo Capanema e seu amigo Rodrigo Franco Melo de Andrade convidaram-no a morar no Rio de Janeiro. Ele começou a trabalhar como professor na recém-criada Universidade do Distrito Federal. Ela durou pouco. Mário ficou meio perdido no Rio de Janeiro, onde viveu entre 1938 e 1941. Trabalhou na organização da Enciclopédia Brasileira e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Morou na Glória e em Santa Teresa. Mesmo abatido, Mário frequentou uma roda de escritores e artistas jovens, geralmente em noitadas de bebida. Mário pontificava entre eles. Eram discussões acaloradas. O intelectual paulistano gostava de conhecer as novas tendências e ideias desses jovens.
Um deles foi Murilo Miranda, que já travara contato com ele quando morava em São Paulo, solicitando-lhe que escrevesse um artigo para a Revista Acadêmica. Consta que foi o correspondente que mais enviou cartas a Mário. Até agora, só as cartas de Mário a Murilo foram publicadas. O jovem intelectual era casado com Yeda Miranda, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim. Ela relatou por escrito um contato que teve com Mário de Andrade. Ele então morava na rua Santo Amaro n° 5, na Glória. Ela bateu em seu apartamento. O escritor estava trabalhando. Ele a recebeu de pijama com um robe sobre ele. Ofereceu-lhe um chá e encontrou um jeito elegante de mandá-la embora. Não ficava bem, naquele tempo, uma mulher casada — ainda mais com um amigo — visitar um homem solteiro. Esse relato foi incluído num livro que folheei e acabei perdendo.
Em 1940, Murilo Miranda, percebendo o abatimento em que Mário se encontrava, convidou-o a passar alguns dias na Fazenda Floresta, no sul do Espírito Santo, pertencente à família de Yeda. Mário aceitou o convite. Tomou um trem no Rio de Janeiro e desceu em Cachoeiro do Itapemirim. Da estação, foi num automóvel antigo para a fazenda em estrada de terra. Chegou empoeirado. A viagem de Mário deve ter ocorrido entre março e novembro de 1940, porque ele a menciona em carta escrita em São Paulo a Murilo, datada de 19 de novembro. Embora residindo no Rio, Mário voltava a sua cidade com frequência para rever a família (sobretudo sua mãe), os amigos e o ambiente urbano.
A paisagem deslumbrou Mário. A fazenda ficava num vale cercado de floresta. Daí o nome da fazenda. Junto ao casarão-sede, corria um ribeirão de águas límpidas, provavelmente o ribeirão Floresta. O paulista sabia andar a cavalo, como mostram fotos suas na fazenda de seu tio Pio em Araraquara. Mas, então, Mário era moço e alegre. Foi numa de suas férias em Araraquara que ele redigiu a primeira versão de “Macunaíma”, publicado em 1928. Na fazenda floresta, ele e Murilo fizeram uma visita a Burarama a cavalo. Na carta de 19 de dezembro de 1940 que escreve a Murilo, ele está em São Paulo. Já havia voltado da viagem. Ele comenta que chegou a São Paulo bem doente. Ao fim da carta, escreve: “Guardo recordações admiráveis da fazenda Floresta, em que fui gentilmente recebido por Yeda, você e a família dela. Que dias maravilhosos em meio àquelas florestas viçosas e ao lado daquele ribeirão murmuroso e de águas cristalinas. A cavalgada até Burarama me fez recordar minhas férias de juventude passadas em Araraquara. O pequeno lugar, com sua gente hospitaleira, recordou-me o interior de São Paulo. Ainda existem lugares como Burarama por aqui, mas é sempre bom um citadino como eu visitar o interior, respirara ar puro e travar contato com gente pacata que nem sabe o que é a vida agitada da cidade grande.
Agradeço você e Yeda por essa semana maravilhosa. Um beijo para as mãos dela e um sempre fraterno abraço para você. Mário”.
Mário de Andrade não foi um grande viajante. Ele só saiu do Brasil em duas ocasiões, mesmo assim em seus arredores. Subindo o rio Amazonas em 1927, ele visitou rapidamente Iquitos, no Peru, e uma cidadezinha na Bolívia. Seus amigos modernistas viviam na Europa. Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Sérgio Milliet viviam no exterior, principalmente na Europa, onde chegavam a passar anos.
Mário limitou-se ao Brasil. Andava nos arredores da cidade de São Paulo e no interior do estado de mesmo nome fazendo coletas para seus estudos de folclore, principalmente. Quase todos reunidos nos livros “Aspectos do folclore brasileiro” e “Danças dramáticas do Brasil”. Ele foi a Minas Gerais quatro vezes. Em nenhuma oportunidade, foi gratuitamente. Na primeira, em 1919, visitou o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens e colheu informações para a série de conferências sobre arte religiosa do Brasil, reunidas muito depois de sua morte no livrinho “A arte religiosa no Brasil”. A segunda, em 1924, foi empreendida em companhia de vários intelectuais para visitar, juntamente com o escritor francês Blaise Cendrars, as cidades históricas de Minas Gerais. Foi quando conheceu Carlos Drummond de Andrade pessoalmente. A terceira foi em 1939, e a quarta, em 1944, pouco antes de sua morte. Ao Rio de Janeiro, fez muitas viagens, inclusive morando na cidade entre 1938 e 1941.
As mais famosas viagens de Mário foram feitas à Amazônia, em 1927, e ao Nordeste, em 1928. Ele fez o registro de ambas no livro “O turista aprendiz”, também póstumo. Trata-se de um relato distinto de outros tantos naturalistas e escritores. Euclides da Cunha viu a Amazônia em sua dimensão natural. Mário também, mas colocou poesia em sua viagem. No Nordeste, ele colheu muito material para seus estudos e para sua concepção de cultura brasileira, distinta da cultura portuguesa.
Ele esteve uma vez em Campos, deixando seu rastro num artigo que escreveu sobre Alberto Frederico de Morais Lamego, de quem veio comprar sua coleção de documentos para a Universidade de São Paulo, em 1935. Sobre essa viagem, organizei, em 1992, o livro “Mário de Andrade e(m) Campos dos Goytacazes – 1935-1938”, reunindo as cartas de Mário para Lamego. Agora, que o arquivo de Mário está franqueado a pesquisas, penso em lançar a segunda edição do livro incluindo as cartas de Lamego a Mário.
Ao ser afastado do Departamento de Cultura do município de São Paulo, Mário de Andrade mergulhou em profunda depressão. Ele havia se empenhado na criação e na consolidação de um organismo municipal de cultura que chegou a ter projeção nacional, contando com colaboradores do nível de Claude Lévi-Strauss e sua mulher, Dina. Os getulistas tomaram o Departamento de assalto, atacando Mário de maneira torpe e tentando demolir sua obra.
Enquanto o Estado Novo atacava Mário no plano municipal, no plano nacional, o ministro Gustavo Capanema e seu amigo Rodrigo Franco Melo de Andrade convidaram-no a morar no Rio de Janeiro. Ele começou a trabalhar como professor na recém-criada Universidade do Distrito Federal. Ela durou pouco. Mário ficou meio perdido no Rio de Janeiro, onde viveu entre 1938 e 1941. Trabalhou na organização da Enciclopédia Brasileira e no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Morou na Glória e em Santa Teresa. Mesmo abatido, Mário frequentou uma roda de escritores e artistas jovens, geralmente em noitadas de bebida. Mário pontificava entre eles. Eram discussões acaloradas. O intelectual paulistano gostava de conhecer as novas tendências e ideias desses jovens.
Um deles foi Murilo Miranda, que já travara contato com ele quando morava em São Paulo, solicitando-lhe que escrevesse um artigo para a Revista Acadêmica. Consta que foi o correspondente que mais enviou cartas a Mário. Até agora, só as cartas de Mário a Murilo foram publicadas. O jovem intelectual era casado com Yeda Miranda, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim. Ela relatou por escrito um contato que teve com Mário de Andrade. Ele então morava na rua Santo Amaro n° 5, na Glória. Ela bateu em seu apartamento. O escritor estava trabalhando. Ele a recebeu de pijama com um robe sobre ele. Ofereceu-lhe um chá e encontrou um jeito elegante de mandá-la embora. Não ficava bem, naquele tempo, uma mulher casada — ainda mais com um amigo — visitar um homem solteiro. Esse relato foi incluído num livro que folheei e acabei perdendo.
Em 1940, Murilo Miranda, percebendo o abatimento em que Mário se encontrava, convidou-o a passar alguns dias na Fazenda Floresta, no sul do Espírito Santo, pertencente à família de Yeda. Mário aceitou o convite. Tomou um trem no Rio de Janeiro e desceu em Cachoeiro do Itapemirim. Da estação, foi num automóvel antigo para a fazenda em estrada de terra. Chegou empoeirado. A viagem de Mário deve ter ocorrido entre março e novembro de 1940, porque ele a menciona em carta escrita em São Paulo a Murilo, datada de 19 de novembro. Embora residindo no Rio, Mário voltava a sua cidade com frequência para rever a família (sobretudo sua mãe), os amigos e o ambiente urbano.
A paisagem deslumbrou Mário. A fazenda ficava num vale cercado de floresta. Daí o nome da fazenda. Junto ao casarão-sede, corria um ribeirão de águas límpidas, provavelmente o ribeirão Floresta. O paulista sabia andar a cavalo, como mostram fotos suas na fazenda de seu tio Pio em Araraquara. Mas, então, Mário era moço e alegre. Foi numa de suas férias em Araraquara que ele redigiu a primeira versão de “Macunaíma”, publicado em 1928. Na fazenda floresta, ele e Murilo fizeram uma visita a Burarama a cavalo. Na carta de 19 de dezembro de 1940 que escreve a Murilo, ele está em São Paulo. Já havia voltado da viagem. Ele comenta que chegou a São Paulo bem doente. Ao fim da carta, escreve: “Guardo recordações admiráveis da fazenda Floresta, em que fui gentilmente recebido por Yeda, você e a família dela. Que dias maravilhosos em meio àquelas florestas viçosas e ao lado daquele ribeirão murmuroso e de águas cristalinas. A cavalgada até Burarama me fez recordar minhas férias de juventude passadas em Araraquara. O pequeno lugar, com sua gente hospitaleira, recordou-me o interior de São Paulo. Ainda existem lugares como Burarama por aqui, mas é sempre bom um citadino como eu visitar o interior, respirara ar puro e travar contato com gente pacata que nem sabe o que é a vida agitada da cidade grande.
Agradeço você e Yeda por essa semana maravilhosa. Um beijo para as mãos dela e um sempre fraterno abraço para você. Mário”.
Meu neto mais novo nasceu em Burarama e comemorou seu primeiro aniversário lá. A família toda foi abraçá-lo. Ficamos hospedados numa casa cuja dona tem muitos números da “Revista de Burarama”. Foi lendo uma crônica nela que lembrei dessa viagem quase esquecida do grande animador e organizador do modernismo no Brasil.
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