Arthur Soffiati - Presença de Mário
Arthur Soffiati - Atualizado em 23/08/2023 08:53
Autor comenta livro de Mauricio Trindade da Silva
Autor comenta livro de Mauricio Trindade da Silva / Foto: Divulgação
Creio que Mário de Andrade chega nítido aos dias presentes mais pelo seu papel organizador que por sua obra. Acho que minha afirmação foi precipitada. Ele chega pelas duas. Em 2023, “Macunaíma” (Estados Unidos: A New Directions Paperbook Original, 2023) e “O turista aprendiz” (Estados Unidos: Penguin Books, 2023) ganharam edição em inglês. “Macunaíma” é de difícil tradução para uma língua anglo-saxônica, mas já foi traduzido para o alemão. Ganhou também uma tradução em húngaro. “O turista aprendiz” já foi traduzido para o italiano e para o francês. Na tradução em inglês, apenas a parte relativa à Amazônia mereceu atenção. Creio que os rios e florestas do grande bioma representam para o europeu e norte-americano algo de exótico.
Também os três volumes de “Do Roraima ao Orinoco”, de Theodore Koch-Grünberg, ganharam tradução em português (São Paulo: Unesp/UEA, 2022). Mário valeu-se da obra para escrever “Macunaíma”. Em 2022, o ilustre modernista foi homenageado no conto “No rastro de Macunaíma”, incluído no livro “Ficções amazônicas” (São Paulo: Todavia), da antropóloga Aparecida Vilaça e do químico Francisco Vilaça Gaspar. Outras manifestações difusas ou pouco divulgadas revelam a permanência da Semana de Arte Moderna e de Mário de Andrade nos dias que correm. Elas merecem comentário em outra oportunidade. Por hoje, fiquemos com o livro “Mário de Andrade, epicentro”, de Mauricio Trindade da Silva (São Paulo: Sesc São Paulo, 2022).
A um estudioso da cultura brasileira, qualquer tema que envolva Mário de Andrade adquire interesse para a pesquisa, seja a solitária visita que o autor de “Pauliceia desvairada” fez ao poeta Alphonsus de Guimaraens em Mariana, no longínquo ano de 1919, seja sua breve incursão ao lago de Arari, em Marajó, ou na praia do Mosqueiro durante sua viagem ao Norte.
Não se trata de vedetizar ou de enaltecer a figura de Mário, mas levar em conta que seus gestos não foram gratuitos. Ele nunca saiu do Brasil, salvo ocasião em que brevemente esteve em Iquitos, Peru, e em Abuña, Bolívia. Cada situação vivida por ele era registrada e problematizada em suas cartas, em seus escritos na imprensa e em seus livros.
Há dúvidas de que um grupo de cinco artistas buscando renovação na cultura brasileira despertasse tanto interesse para a pesquisa se Mário de Andrade não participasse dele. Pensemos no Grupo dos Cinco com outro nome, sem Mário. Por mais que os cinco trocassem cartas entre si, faltaria a presença inquieta e crítica do autor de “Macunaíma”. Crê-se que a presença dele é que motivou o interesse de Mauricio Trindade pelo grupo, que, aliás, teve vida breve.
Mais intelectuais e artistas participavam do grupo, ainda que eventualmente. Porém, cinco o caracterizaram mais. Duas pintoras e três escritores. Não cabe conferir a nenhum deles qualquer caráter de idealização, como bem procedeu o autor do livro analisado. Havia vaidades, disputas, complexo de inferioridade por parte de seus integrantes. Em Mário, como bem realçou o autor, existia a pretensão de liderança. Aliás, essa pretensão está presente em quase todas as missivas dele aos seus correspondentes dentro e fora do grupo. Talvez apenas com Manuel Bandeira houvesse uma postura de ombrear-se de igual para igual. Quanto aos outros, prevalecia a atitude professoral de Mário.
Contudo, havia algo mais, bem além da vaidade. Ela não sustentaria a trajetória de Mário por muito tempo. Por mais que a vaidade seja um traço intrínseco da sua personalidade, havia nele uma inquietação intelectual pouco comum nos escritores e artistas de seu tempo. Havia o descomunal desejo de construir um projeto de cultura para o Brasil que alcançou até desenhos infantis e renda de papel e linha.
Ainda em consonância com Trindade, a vida de Mário foi marcada por renúncias e investimentos pessoais, pelo celibato (de qualquer natureza), na compra de livros, no estudo de línguas e no financiamento de seus primeiros livros. Citando o autor: “Por parte do Grupo dos Cinco, especificamente, temos uma condensação da tensão social, em escala reduzida e dinâmica: o herdeiro capitalista, dominante e rico, ‘sem profissão’, mimado e gozador, agressivo e inquieto, que ambiciona o brilho social e artístico por meio de manifestos de impacto e que não se furta ao confronto pândego e bruto, justamente quando desafiado em seu brio e pretensão de legitimidade intelectual e cultural (Oswald de Andrade); a sinhá também herdeira e rica, dotada de beleza e leveza (como afirmava Mário de Andrade), com um estilo de vida ostentatório (discernível por exemplo, mas não só, nos adornos do ateliê da pintora, que Menotti descreveu em sua crônica), de ênfase competitiva e determinada a ser referência artística de vanguarda, movendo seu capital para tal feito (Tarsila do Amaral); a pintora desbravadora, ousada e incompreendida, marcada por condição de isolamento e singularidade devido a deficiência física, proveniente de família duplamente estrangeira sob tutela de um tio protetor que investia em sua carreira, detendo-se por fim à procura de um caminho menos conflituoso na arte pictórica Anita Malfatti); o filho de imigrantes, sem trunfos iniciais de capital social, mas que foi sedimentando seu caminho na via da tradição formativa (diploma na Faculdade de Direito) e por mérito próprio, envolto num processo de falência financeira familiar e num constante esforço de superar os destratos dessa situação de origem (Menotti Del Picchia); e o ‘primo pobre’, sem trunfos originários valorativos e ‘masculinos’ (família em débâcle financeira, celibatário, sem diploma ‘liberal’, de traços negros, com complexos de monta etc.) que se lança numa jornada contínua de amplo investimento de capital cultural, mobilizando relações e relacionamentos escolhidos a dedo, presenciais e epistolares, em busca de concretizar, pela diversidade das áreas em que se envolve, uma posição central, protagonista (Mário de Andrade).”
A análise sociológica de Mauricio Trindade, como base principalmente em Bourdieu, Elias e Miceli, articula o estrutural e o epifenomenal. Essa abordagem é particularmente importante num momento em que se oscila ora para o estrutural, ora para o epifenomenal. O jornalista Ruy Castro, em seu livro “Metrópole à beira-mar” (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), de certa forma contribuiu para trazer novamente à tona dos debates essa falsa dicotomia, pois, em nenhuma situação, a figura individualizada de um personagem pode ser explicada sem a estrutura subjacente. Da mesma forma, a figura promotora não se reduz à estrutura. Castro escreve que não há mérito em Mário de Andrade de usar o verso livre em “Paulicéia desvairada”, pois outro Mário, o Pederneiras, deve ser considerado o verdadeiro pioneiro nesse emprego, já que dele fez uso no livro “Outono”, escrito em 1914 e publicado em 1921. O primeiro Mário tinha atrás de si toda uma discussão sobre a poesia moderna, exposta pouco depois de “Pauliceia” em “A escreva que não é Isaura”. O segundo Mário foi um poeta simbolista pouco expressivo. Foi esquecido.
Fugindo da falsa polaridade estrutura x indivíduo, Trindade situa com propriedade a epicentralidade de Mário de Andrade não apenas no Grupo dos Cinco, como também no Movimento Modernista e na Modernidade de um modo geral. Mário viveu seu tempo. Desenvolveu-se no primeiro momento modernista. Participou ativamente da Semana de Arte Moderna, que tem por sustentáculo a economia cafeeira paulista, e, ao mesmo tempo, autoconstruiu-se e ultrapassou seu tempo. Vários companheiros seus não conseguiram vencer seu momento com o mesmo vigor e serem merecedores do mesmo interesse que Mário de Andrade desperta. Na primeira biografia de Mário, escrita por Eduardo Jardim, seu autor divide a vida do modernista em duas fases: a primeira, de 1922 a 1938, seria criativa. A segunda, até sua morte, seria estéril. A obra de Mário, de fato, mostrou-se criativa na literatura durante a primeira fase. Mas a segunda apresenta o grande interesse pela discussão que Mário promove sobre o modernismo. Não se trata de uma fase estéril, mas madura e também produtiva.
O livro de Mauricio Trindade da Silva dá uma excelente contribuição ao conhecimento do Grupo dos Cinco.

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