-
Folha Letras
-
Folha Letras
-
Folha Letras
-
Folha Letras
Não tenho formação em letras, mas não me considero um leitor descompromissado, que deseja ler aleatoriamente. Sempre gostei de ler. Minhas atividades, contudo, não me permitiram. Agora, com tempo disponível, tenho lido muito, lido de tudo, mas, principalmente literatura. Em 2016, superei todos os meus recordes. Li 110 livros atentamente. Acho que consegui me definir: sou um leitor atento, empenhado, que sente prazer na leitura e se atreve a escrever sobre livros num mundo de especialistas.
Alguns dizem que o Brasil já teve grandes cronistas e que hoje não tem mais. O gênero brasileiro originado no século XIX por José de Alencar e Machado de Assis continua vivo. Em 2016, foram lançados “A máquina de caminhar”, de Cristovão Tezza (Rio de Janeiro/São Paulo: Record) e “Se for pra chorar que seja de alegria”, do octogenário Ignácio de Loyola Brandão (São Paulo: Global). Os dois autores conhecem a arte de escrever crônica e mantêm a tradição do gênero.
No conto, destacou-se a figura ímpar de Sérgio Sant’Anna com o volume “O conto zero e outras histórias”. (São Paulo: Companhia das Letras). Trata-se de contos autobiográficos cheios de nostalgia. O autor passa sua vida em revista sempre com seu modo de escrever: sem rebuscos, mas com segurança de bom ficcionista. João Anzanello Carracoza também compareceu com “Diário das coincidências” (Rio de Janeiro: Alfaguara), no mesmo tom que o consagrou como escritor sutil e afetivo. Nele, os temas mais espinhosos da vida são tratados com suavidade. No centenário de Murilo Rubião o leitor foi presenteado com nova edição de sua “Obra completa” (São Paulo: Companhia das Letras) A leitura dela proporciona contato com um escritor ímpar da literatura brasileira. Quanto às escritoras, já lhes dediquei uma página em janeiro deste ano. Mas não incluí “Histórias de leves enganos e parecenças” (Rio de Janeiro: Malê), de Conceição Evaristo. Seus contos falam de uma africanidade que não mais existem no Brasil. “Sul” (São Paulo: editora 34), de Veronica Stigger, está bem aquém do seu macunaímico “Opsanie swiata”
Minhas leituras de romances começaram com um livro inclassificável. Luiz Ruffato publicou “De mim já nem se lembra”. (São Paulo: Companhia das Letras), conjunto de cartas de seu irmão, morto num acidente de carro, escritas a sua mãe. No livro anterior, “Flores Artificiais”, ele diz ter aproveitado uma série de escritos de um conterrâneo enviada pelo correio. São relatos sobre as viagens do conterrâneo. Pode ser mentira ou verdade do autor. Sendo verdade, ele deu acabamento literário ao escrito. No caso das cartas, porém, há dúvidas. São mesmo cartas relatando casos amorosos e profissionais. Não se sustenta como ficção, mas testemunha bem a concepção de um católico conservador que descobre a política sindical durante o regime militar. Foi pulicada dele também os cinco romances que formam a pentalogia “Inferno provisório” (São Paulo: Companhia das Letras), que não consegui ler ainda.
André de Leones nasceu em Goiás mas mora em São Paulo. Não conhece mais devidamente seu estado natal. Então, recorreu a amigos que o informassem a respeito de dela para escrever “Abaixo do paraíso” (Rio de Janeiro: Rocco), seu mais recente romance. O Centro-Oeste rural dos contos de “Tropas e boiadas” (1917), de Hugo de Carvalho Ramos, foi substituído por uma paisagem tipicamente urbana. Leones mistura sexo, corrupção, violência e incesto num romance previsível.
O que chamou a atenção na ficção brasileira de 2016 foi a normalização do homossexualismo. Quero indicar com a palavra “normalização” a naturalidade com que o assunto vem sendo tratado. O homossexualismo não é mais excluído nem dissimulado como tema proibido. Pelo contrário, ele passa a ser o centro dos enredos e se revela em toda sua explicitude. Comecemos com Marcelo Mirisola em “A vida não tem cura” (São Paulo, Editora 34). Desde seu primeiro livro, ele é um autor meio marginal não muito reconhecido pelos seus pares. Neste livro, um casal casado é bissexual. Em linguagem forte, mas a trama não tanto, ele mostra a intimidade da mulher com o marido e outra mulher tanto quanto o homem com a mulher e outros homens. De todos a abordar a temática, entendo que Bernardo de Carvalho foi o mais feliz com deles com “Simpatia pelo demônio”. (São Paulo: Companhia das Letras). Como lhe é peculiar, a trama se desenvolve não mais no meio urbano, mas no plano internacional, envolvendo o terrorismo do Oriente Médio e a atuação de agências internacionais. O homossexualismo, no livro, merece um tratamento forte de mistura com sadismo.
A questão aparece com vigor também em “Meia-noite e vinte”, de Daniel Galera (São Paulo: Companhia das Letras), ambientado em Porto Alegre e em São Paulo. Victor Henringer enfoca o caso de adolescentes homossexuais com bastante propriedade em “O amor dos homens avulsos” (São Paulo: Companhia das Letras). Por sua vez, em “Homens elegantes” (Rio de Janeiro: Rocco), Samir Machado de Machado ambienta, no século XVIII, as aventuras de um tenente homossexual que investiga a autoria de um romance inglês obsceno contrabandeado para o Brasil.
O romance histórico também comparece com “O marechal de costas”, de José Luiz Passos (Rio de Janeiro: Alfaguara), sobre a vida do Marechal Floriano de mistura com os tempos atuais no Brasil. Joyce Ribeiro escreve um relato protocolar em “Chica da Silva: romance de uma vida” (São Paulo: Planeta), com todo jeito de se transformar em série de televisão.
O velho e inesquecível Machado de Assis volta pela pena de Luiz Vilela no romance “O filho de Machado de Assis” (Rio de Janeiro: Record), muito aquém do nível do autor, que já foi considerado uma grande revelação da literatura brasileira. Mas aparece de forma magistral do híbrido “Machado” (São Paulo: Companhia das Letras), de Silviano Santiago. Híbrido por deixar o leitor na dúvida se está diante de um romance, de uma biografia ou de uma análise literária. Machado de Assis aparece no final de sua vida.
Registro o livro “A vista particular” (Rio de Janeiro: Alfaguara), de Ricardo Lísias pelo seu tom de absurdo. Como assim? Seu enredo enfoca uma favela retratada e reverenciada por um pintor que vive em dois mundos, ambos recheados de absurdos. E retratando o dia a dia de um morador da periferia do Rio de Janeiro, entre a pobreza e a ascensão da nova classe média, o relato real de Anderson França intitulado “Rio em shamas” (Rio de Janeiro: Objetiva).
Finalizando este balanço que já se estende, menciono os três livros que me convenceram que a prosa brasileira não está vivendo um período de mediocridade. Cristóvão Tezza, com “A tradutora” (Rio de Janeiro: Record), Michel Laub, com o “Tribunal da quinta-feira” (São Paulo: Companhia das Letras) e o já mencionado “Como se fosse em palimpsestos de putas”, de Elvira Vigna. Os três demonstram que um romance não para em pé sem uma boa trama, mas que cai completamente por terra sem uma boa técnica narrativa.
Por falta de espaço, não foi possível tratar da poesia e de autores estrangeiros. Também alguns temas esboçados aqui superficialmente merecem destaque. Algo que pretendo fazer ulteriormente.