Matheus Berriel
20/02/2017 18:05 - Atualizado em 20/02/2017 18:05
Embora quase sempre esquecida e às vezes até desvalorizada, a cultura das comunidades quilombolas de Campos vem ganhando o merecido reconhecimento fora da planície goitacá. Comidas típicas das comunidades de Aleluia, Cambucá, Batatal e Conceição de Imbé foram relatadas no livro “A Cozinha dos Quilombos: Sabores, territórios e memórias”, lançado em 2014 pelo Instituto Dagaz, em parceria com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, o Instituto de Desenvolvimento Afro Norte Noroeste Fluminense (Idannf) e várias associações que mantêm viva a memória quilombola no estado, entre elas o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campos. Nos últimos anos, a obra, produzida também em inglês, tem conquistado vários prêmios importantes, como o Prêmio de Cultura Afro-Fluminense, organizado pela secretaria de Estado de Cultura, em 2015.
Uma das personagens do livro é Verônica Márcia de Souza dos Santos Rocha, de 40 anos, moradora da comunidade de Conceição do Imbé, que, ao lado da mãe, Vanilda, ensinou a fazer um “Cantão de carne seca”, prato que ganha elogios de todos que chegam ao quilombo. Elogios estes que só aumentaram após a publicação do livro. “Quando fizemos o prato e demos a entrevista, eu não sabia que seria de tamanha importância. A moça pediu para fazermos a comida, nós conversamos, e passou. Mas, depois, quando o livro chegou para a gente, vi o que representava. Está em duas línguas, o que valoriza ainda mais a nossa cultura. Todo mundo na comunidade ficou muito satisfeito. Nós ficamos famosos”, brincou Verônica Márcia.
O “Cantão” feito por ela e pela mãe leva um quilo de carne seca, duas dúzias de banana nanica ou banana figo verde, cebola, alho e cheiro verde a gosto. Porém, nem sempre a receita teve esse nome e os mesmos ingredientes. “Antes, era conhecido como ensopado de banana. Nossa família passou muito dificuldade, não tinha nada para comer além de mamão verde e banana. Então, a gente foi adaptando a comida. No café da manhã, era banana cozida com farinha e açúcar. No almoço, cozinhava a banana com alho e cebola, fazia um caldo e comia. Depois, começamos a colocar frango, para dar um gosto diferente, um peixe também, até que chegou à carne seca. O prato surgiu pela necessidade, porque realmente não tinha nada para comer”, recorda Verônica Márcia, que, além do sabor e do valor nutritivo, encontrou no “Cantão” uma opção para tratar a diabetes dos filhos: “Ouvi falar que a banana verde era boa para glicose muito alta. Como meus filhos já gostavam, resolvi fazer ensopada. Fiz o tratamento por um longo tempo e deu resultado”, contou.
Apesar das lembranças, a época de origem do “Cantão” já se perdeu no tempo. Verônica arrisca que tenha surgido na juventude da avó, há cerca de 100 anos. O palpite foi confirmado por sua tia, Dulcineia , que come o prato desde quando nasceu. “Acredito que o ‘Cantão’ já tenha um século. No passado, esse era o nosso prato principal. Não tínhamos uma grande diversidade, era necessidade. Mas, hoje vemos que valeu à pena. Está testado e aprovado, todo mundo gosta”, enfatizou.
O livro com esta e outras receitas e histórias da culinária quilombola de Campos e de todo o Rio de Janeiro está disponível na internet, no site br.acozinhadosquilombos.com.br, onde também é possível conferir receitas extras e um vasto conteúdo multimídia das visitas às comunidades.