Arthur Soffiati - Meaípe – 1963
* Arthur Soffiati - Atualizado em 04/05/2024 08:50
 
Na década de 1960, meu pai comprou, no escuro, um terreno em Meaípe, Espírito Santo. Resolvemos passar as férias de 1963 na praia capixaba. Fizemos uma viagem completamente irregular nos dias que correm. Minha família era amiga de outra que morava próxima. O homem era um caminhoneiro experiente que já havia percorrido todo o Brasil.

Viajamos no seu caminhão. Na boleia, foram o caminhoneiro experiente, seu filho mais velho e meu pai. Na carroceria, coberta por lona, viajavam quatro mulheres e duas crianças. Eu era uma delas. Viagem de 12 horas em completo desconforto. Mas criança tudo aguenta. Era preciso contornar a baía da Guanabara por Magé e rodar muito até o destino.

Meaípe era, no longínquo ano de 1963, uma pequena colônia de pesca num recanto montanhoso, margem esquerda do pequeno rio de mesmo nome. Nada de restaurante frequentado, de hotel, de barraquinhas na praia. O terreno do meu pai ficava numa encosta pedregosa em que nenhuma construção poderia ser erguida.

Alugamos uma casa de pescador para passar o mês de janeiro todo. Eu havia levado equipamento de mergulho e uma pequena máquina de projeção de filmes. Ainda a tenho com alguns filmes em apenas dois movimentos desenhados em papel vegetal. As famílias de pescadores desconheciam cinema, e as projeções sofríveis que eu fazia ao cair da tarde atraíam crianças e adultos. A casa ficava cheia.

Com meu pai, eu fazia caminhadas pelas praias desertas de Dairaquara, Bracutia, Peracanga e Guaibura. Todas elas foram invadidas pelo “progresso” e se tornaram lugares muito frequentados com o declínio progressivo de Guarapari pelo turismo predatório. Eu tinha então 16 anos. Atrasado nos estudos, eu ingressaria no terceiro ano ginasial, que equivalia ao 7º do ensino fundamental. Examinando minha vida em perspectiva, creio que 1963 foi o ano mais alegre da minha vida.

Diariamente, eu usava meu equipamento de mergulho para admirar o fundo do mar nas águas claras da praia. Descobria lindos lugares para passear na parte da tarde. Dormia e me sentia bem. Sentia falta de ouvir música erudita. Ia a um circo muito mambembe instalado na localidade. Explorava o rio Meaípe a admirava seu pequeno manguezal.

Ao retornar para casa, no Rio de Janeiro, fui tomado de grande euforia com relação ao futuro. Eu queria muito da vida. Meus interesses se estendiam das ciências naturais às artes. Eu queria estudar a natureza, as ciências sociais, escrever poesia e ficção, conhecer artes visuais e sobretudo música. Meu desejo era trabalhar no Museu Nacional, ser professor de alguma ciência social e me tornar músico como compositor e maestro.

A escola não mais atendia aos meus desejos. Era muito pouco o que ela me oferecia. Comecei a estudar por conta própria. Meu pai, militar machista, achava que música não era coisa de homem. Minha avó financiou meus estudos de teoria musical. Tudo o que aprendi foi jogado fora por falta de um instrumento.

Com relação às ciências naturais, o que mesmo que eu queria? Uma pessoa amiga me alertou quanto ao curso de história natural, como se denominava biologia na época. Eu teria de abrir animais para estudá-los por dentro. Tenho pânico de sangue. Então, eu faria apenas botânica. Assim mesmo, eu não seria dispensado de abrir animais.

Abdicando de música e de biologia, restavam-me apenas as ciências sociais. Mas qual? Eu queria antropologia, folclore (cujo nome mudou), arqueologia e história. O resultado desse conflito interior foi uma grande confusão mental. Aquilo não era depressão. Era uma espécie de derrota. Meus planos não podiam ser realizados. Minha alegria foi substituída por tristeza. Concluí que estava doente. Falei com minha mãe, que falou com meu pai. Segundo ele, eu precisava de sexo. Minha avó, secretamente, pagou uma consulta com um psiquiatra. Diagnóstico: eu precisava de sexo. Foi uma fase angustiante. Toquei minha vida como pude.

Mudei-me para Campos em 1970. Ingressei no curso de história Faculdade de Filosofia. Pensei em cursar apenas um ano e voltar para o Rio. Fui ficando. Concluí que história resolverei meus anseios. Mas, como dizia o poeta latino Horácio, “podes afastar a natureza com uma forquilha. Ela voltará algum dia”. Especializei-me de forma genérica em história ambiental. Meu interesse por música nunca passou. A botânica volta a botar a cabeça para fora da toca. Meus antigos interesses emergem e minha vocação para estudioso novecentista emerge novamente. Agora, porém, sem a ansiedade dos meus 16 anos.

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