Zeca Pagodinho já cantou que acendeu velas para São Jorge para que o mal não vença. Poucos versos depois, exaltou Ogum, com sua espada e capa encarnada, protetor de quem segue pela boa estrada. É nessa encruzilhada do dia 23 de abril que fiéis de Jorge e Ogum erguem suas espadas em honra aos dois guerreiros que, apesar de caminhos diferentes, recebem a reverência sem distinção de credo.
São Jorge chegou à terra brasilis junto com a família real, em 1808. Pela devoção de Dom João VI, estabeleceu-se o culto e a tradicional procissão ao santo no Rio de Janeiro imperial. Já Ogum desembarca com os povos yorubás escravizados, vindos da região que hoje compreende Nigéria, Benin e Togo.
A aproximação entre os dois cultos não veio apenas pela simbologia da guerra, mas também pela associação com o ferro e as lâminas, conforme explicou o historiador Luiz Antonio Simas, em entrevista ao programa Sem Censura, da TV Brasil.
O sincretismo religioso, porém, não nasceu do amor, mas da dor. A professora de história e yalorixá Obakibonã, do Terreiro Xangô Menino Campos, relembra: “O sincretismo religioso foi a forma encontrada pelos negros escravizados para continuarem cultuando seus orixás, apesar da proibição de seus senhores. Adotaram os nomes dos santos católicos para representá-los e identificar suas energias sagradas trazidas da África”.
Em um país marcado pela desigualdade e pela violência, a devoção ao santo e orixá guerreiro se mantém como símbolo de resistência e proteção.
“Sabemos da violência constante, especialmente neste estado. As pessoas precisam, às vezes, blindar-se espiritualmente”, afirma Dom Roberto Francisco Ferreria Paz, bispo da Diocese de Campos dos Goytacazes.
“Ogum é muito importante para as Comunidades de Terreiro, por representar o arquétipo do guerreiro, daquele que venceu o dragão. Sua energia é sinônimo de conquistas, de progresso e do poder de vencer demandas. Para muitos, ele é considerado o "Padrinho da Umbanda", explica Obakibonã.
Rodrigo Silveira
O contador Victor Tavares é prova viva dessa fé. Ele lembra que tudo começou em 2017, durante uma festa em homenagem a São Jorge no bairro de Quintino, no Rio. No fim daquele ano, foi internado com um quadro grave de pancreatite e passou 19 dias hospitalizado. Desde então, ele organiza uma celebração com missa, feijoada e samba, em Goitacazes.
“Acredito que como São Jorge guerreiro, por mais difícil que seja a luta que surge em nosso dia a dia, não desisto de lutar, sempre me revestido pela fé em Deus” glorificou, Victor.
Como já dizia Beto Sem Braço, grande sambista e compositor: “O que espanta a miséria é festa”. E é com fé e festa que o povo celebra São Jorge e Ogum — seja nas igrejas, terreiros ou quintais.
Rodrigo Silveira
Celebrações em Campos
A Capela de São Jorge, no Parque São Jorge, em Guarus, vai realizar duas missas no dia 23: uma às 9h e outra às 19h. A tradicional procissão está marcada para às 18h, percorrendo as ruas do bairro. Segundo o organizador Alessandro Fagundes, são esperados cerca de 250 fiéis.
Já no Terreiro Xangô Menino Campos, a comemoração acontece na quinta-feira (24), com uma gira festiva de louvação a Ogum. “Montamos um altar central com a imagem do santo, cercado de oferendas, flores e objetos consagrados. Finalizamos com um ritual vibrante, empunhando folhas de espada de São Jorge, cantando ao ritmo dos atabaques e rogando proteção para o terreiro e nossa comunidade. Como de costume, servimos a tradicional feijoada de Ogum”, conta a yalorixá Obakibonã.