A sociedade contemporânea está sobrecarregada com a crítica. Uma de suas modalidades mais marcantes é a crítica aos especialistas, inclusive aos especialistas na crítica como os cientistas sociais. Mas não estamos sozinhos. Políticos, jornalistas, médicos, sacerdotes, professores e, antecipando o destino geral, os técnicos de futebol. Desde há algum tempo o público de eleitores, leitores, pacientes, fiéis, pais e alunos passaram a fazer o que os torcedores de futebol sempre fizeram: criticar a autoridade e os padrões de decisão dos especialistas de seus respectivos sistemas, com base em novas demandas de inclusão que exigem redefinição da relação entre especialistas e leigos e especialmente um questionamento crescente da forma como os especialistas produzem e entregam os desempenhos e serviços nos respectivos sistemas funcionais da sociedade.
Especialistas, sobretudo profissões como professores, jornalistas, médicos, sacerdotes e cientistas, são de certo modo os “guardiões” dos valores, mandamentos e regras de proteção de suas respectivas esferas de valor. São eles que garantam oposição aos processos de intrusão inimiga e colonização, conduzidos por forças e critérios estranhos à “legalidade específica” (Max Weber) de cada esfera. Sua identidade e atuação profissional se definem intrinsecamente pela vinculação com os valores internos de suas esferas sociais (Schimank/Volkmann, 2017, p. 40), em nome das quais devem se opor à imposição de critérios oriundos de outras esferas, como pode ocorrer quando os “leigos” ganham protagonismo na definição das rotinas e condições de trabalho dos “especialistas”.
A confiança estável nos especialistas de vários sistemas parece ser mais uma característica típica do período que Peter Wagner definiu como “modernidade organizada” (Wagner, 1995) do que um traço geral da modernidade com pensava Anthony Giddens (1991). O mundo consolidado nos pós-segunda guerra, apesar das enormes desigualdades regionais e sociais, foi marcado pela consolidação de estruturais organizacionais baseadas na confiança generalizada na produção especializada e padronizada de produtos, desempenhos e serviços nos mais diferentes sistemas funcionais. A este respeito, Parsons (1951, p. 438-439) destaca em sua análise sobre a relação médico-paciente nos Estados Unidos dos anos 1950 que era esperado dos pacientes que abicassem de procurar mais de um médico para comparar opiniões e recomendações de tratamento. A confiança no especialista era uma norma fortemente institucionalizada. Neste contexto, a própria crítica social era predominantemente exercida por especialistas capazes de mobilizar seguidores em torno de formas profissionais de negação de estruturas e padrões socioculturais. O questionamento da autoridade não era coisa pra qualquer um. A crítica também estava submetida a certa disciplina que lhe conferia uma autoridade semelhante àquela que eventualmente era o objeto desta crítica.
As mudanças organizacionais que abalaram ou dissolveram as certezas da “modernidade organizada” afetaram também a relação entre leigos e especialistas na sociedade como um todo. Existem muitas ofertas interpretativas sobre esta mudança. Mas parece ter predominado uma interpretação elogiosa que descreve este processo como uma mudança cultural que promove a preferência por “valores pós-materialistas” (Inglehart, 1990) e emancipatórios. A difusão da prosperidade, da segurança econômica e do acesso à educação no pós-segunda guerra teria permitido que as gerações mais jovens pudessem escolher orientações de valores de forma mais livre em relação a preocupações econômica. Assim, a busca pela auto-realização e autonomia pessoal teriam formado uma nova cultura política, marcada, entre outras coisas, pela suspeita em relação a todo tipo de hierarquia e pela valorização da individualidade expressiva. A tese da popularização da “crítica artística”, oriunda da contracultura dos anos 1960, segue a mesma linha de apontar um abalo na confiança das relações hierárquicas de produção e consumo (Boltanski/Chiapelo, 2009) nas últimas décadas do século XX.
Também nesta mesma direção, Jürgen Gehards (2001) oferece uma interessante intepretação sociológica baseada na teoria dos sistemas sociais sobre a experiência alemã com esta mudança cultural. Segundo ele, no período entre 1960 e 1989, as demandas por inclusão e as formas de conduta dos “papeis de público” passaram por rápida mudança estrutural na sua relação com os “especialistas” dos mais diferentes sistemas funcionais. Pacientes (sistema de saúde), eleitores (política), consumidores (economia), alunos e pais (educação) e réus (direito) passaram a exigir e a conseguir oportunidades de participação ativa nas decisões dos especialistas sobre a produção e entrega de serviços e desempenhos em vários sistemas funcionais, trazendo a tona dois elementos fundamentais e inter-relacionados: uma exigência de individualização do público, articulada como negação da inclusão passiva e padronizada na saúde, na educação, no mundo do trabalho, na política, no direito e nos meios de comunicação de massa, e uma crítica da forma de produção e entrega de desempenhos e serviços por parte de médicos, professores, supervisores de fábrica, políticos, juízes e jornalistas nos seus respectivos sistemas funcionais.
A exigência de individualização do público nos processos de inclusão e a crítica da forma de produção especializada de desempenhos e serviços nos subsistemas da sociedade estão constitutivamente vinculadas, pois os problemas que uma levanta do “lado da demanda” a outra formula do “lado da oferta”. Os “consumidores” das entregas sistêmicas passam a problematizar a qualidade (o que é produzido e entregue), a extensão (em que quantidade e para quem) e a composição social dos produtores (quem pode produzir o que em cada sistema), relativizando assim a própria diferenciação de papeis entre “leigos” e “especialistas”, sem a pretensão de abolir esta diferenciação. Observado do “lado da oferta”, podemos falar de uma crítica social com o foco de ampliar os horizontes de programação dos sistemas funcionais, ou seja, de encontrar e criar equivalentes funcionais e alternativas institucionais para a produção e entrega de desempenhos e serviços sistêmicos, o que resulta, na dimensão social, numa maior abertura para concorrentes e atores que buscam ocupar os papeis especializados com novos padrões de conduta e trabalho. Neste sentido, a “revolta dos públicos” já carrega a marca da diferenciação funcional, pois se realiza como busca de soluções alternativas funcionalmente especializadas para problemas igualmente específicos. Como resultado prático desta “revolta”, a invenção e a produção de novas soluções e programas só se materializam enquanto alternativas especificamente econômicas, educacionais, medicinais, jurídicas e políticas (Gehards, 2001, p. 179). A efetividade da crítica está diretamente ligada a seu caráter relativamente disciplinado enquanto negação interna de sistemas funcionais, ou seja, à sua condição de críticas que negam estruturas, mas não os valores e códigos que definem a existência destes sistemas.
A crítica vulgar da “compreensão humana saudável”
Em sua emergência, esta “revolta” tinha um público relativamente familiar para o ambiente progressista das ciências sociais: pessoas com alto nível de instrução e empregadas no setor de serviços, que aproveitaram o aumento da prosperidade e da expansão da educação no período pós-guerra. Graças à capacidade de mobilização e organização deste segmento social, foi possível atrair a atenção de público mais amplo para suas demandas e críticas, criando assim uma situação permanente à qual as organizações médicas, jurídicas, educacionais, jornalísticas e políticas reagiram com as mudanças estruturais correspondentes na relação entre “especialistas” e “leigos”. No entanto, a proximidade sociocultural com este público de classe média alta parece ter criado a impressão de que a “revolta” seria sempre disciplinada e que a autoridade da ciência social e da crítica cientifica da sociedade não seriam abaladas pela desconfiança geral com os especialistas.
O engano possivelmente foi supor que a revolta seria sempre conduzida pelos “ilustrados” que reconhecem o valor da crítica especializada e científica da sociedade sob as fórmulas conhecidas da crítica da desigualdade, da dominação e da alienação. Atualmente, está claro que a “revolta do público” se autonomizou de seus protagonistas iniciais, tendo se difundido de forma imprevisível pela sociedade global do século XXI. Embora a revolta contra o establishment de diferentes sistemas funcionais tenha sido liderada por setores progressistas em seu surgimento, hoje parece inegável que a direita cultural e política é quem comanda esse processo, e tendo como suporte não os setores “ilustrados” da sociedade, mas sim um conjunto bem mais amplo de públicos, cuja crítica social parece nunca ter despertado muito interesse nas ciências sociais. No lugar da “crítica ilustrada”, relativamente disciplinada, parece que a sociologia não pode mais ignorar a crítica social que vem da chamada “compreensão humana saudável”; não aquela “compreensão humana saudável” disciplinada pela formação marxista, como queria Gramsci (1994), nem aquela formada pela nova vulgata do populismo epistemológico “decolonial” com sua preferência pela “abordagem literária e filosófica” dos “afetos” (Castro Varela, 2023), mas sim um tipo de senso comum que resolveu se revoltar de forma abertamente indisciplinada e vulgar contra os “especialistas”, incluindo as ciências sociais e humanas.
Para dar um exemplo bastante sensível para o nosso “pessoal das humanas”: No sistema de ensino, a “revolta do público” protagonizou uma reestruturação dos papeis de professores, gestores, pais e alunos, resultando também em formas de auto-organização do público com o intuito de institucionalizar e assegurar os novos direitos e presentões de inclusão participativa. Nos países europeus e até nos ambientes mais prósperos e “ilustrados” de países como o Brasil, pais e alunos passaram a ter mais direitos de participar de decisões nos processos de alocação dos filhos nas turmas e séries e na definição dos conteúdos pedagógicos (Gehards, 2001, p. 172-173). Desde os anos 1960 até o final do século XX, a predominância de um viés progressista, sustentado pelo protagonismo das classes médias “ilustradas”, parece ter alimentado a crença de que a ampliação dos poderes de participação dos “leigos” não era uma grande ameaça à autoridade dos professores e gestores. A afinidade cultural e possivelmente político-ideológica com estes “leigos ilustrados do bem” garantia a continuidade da sensação de segurança dos “especialistas”. Enquanto a crítica da hierarquia administrativa e pedagógica era feita sob o pano de fundo de uma cultura compartilhada com o próprio establishment do sistema de ensino, estava tudo bem. O problema é que a porteira aberta pelos “ilustrados” foi escancarada pelo “cidadão comum” que também resolveu questionar abertamente a autoridade dos “especialistas” e exigir participação na vida interna das escolas, inclusive na definição dos conteúdos, só que desta vez com outras orientações culturais e ideológicas e novas formas de auto-organização do público, muitas vezes estranhas e hostis às “humanas” e à sua agenda pedagógica de “esclarecimento” moral progressista apoiada de forma irrefletida e militante pela maioria dos cientistas sociais que não se esforça para diferenciar a crítica científica da critica dita “ilustrada” de seu ambiente social mais próximo.
A tarefa e o exemplo disciplinar da sociologia
Como esta reorientação política e cultural da “revolta do público” afeta a autoridade da sociologia, especialmente da sociologia crítica? Quais as formas pelas quais esta crítica social indisciplinada e vulgar, em grande medida culturalmente estranha para a sociologia, desafia a forma e o conteúdo da sociologia crítica enquanto crítica especializada? Como a sociologia pode reagir a esta situação, reformulando a relação entre “especialistas” e “leigos”, entre sociologia crítica e crítica social? Deveria a sociologia contribuir para uma reorientação disciplinar da crítica, dando testemunho com sua própria autocontenção nos limites do que pode lograr a crítica científica como forma particular de crítica social ou, ao contrário, apostar na crítica indisciplinada e assim na própria implosão da diferenciação funcional da sociedade e de si mesma enquanto subsistema desta sociedade? Trato destas questões em artigo científico que estou escrevendo. Mas adianto minha reposta: a sociologia deve contribuir para disciplinar a crítica social dando exemplo com a autodisciplina de sua própria crítica. Minha proposta tem como objetivo desdobrar a ideia de uma crítica sociológica autodisciplinada pela reflexividade sobre as condições de possibilidade e limites da crítica social como um todo e da critica científica em particular, tendo como critério deste disciplinamento a ampliação da contingência estrutural dos sistemas sociais, ou seja, do horizonte de equivalentes funcionais e alternativas estruturais consideradas desejáveis viáveis, plausíveis de acordo com os problemas de referência e a perspectiva histórica concreta de cada sistema.
Nesta direção, a sociologia deve ser vista como um fazer prático na medida em que pode fornecer novas autodescrições sistêmicas que ampliam o horizonte para a solução criativa de problemas de referência incontornáveis de cada sistema funcional, como a crise de legitimação política, a estagnação da produtividade econômica, a desmotivação pedagógica, o esfriamento das amizades, a insegurança generalizada sobre a validade das normas jurídicas e a apostasia da fé. No entanto, se a diferenciação sistêmica é levada a sério, estes horizontes não podem estar limitados a novas formulas de intervenção política e estatal sobre as outras esferas sociais. A tarefa é combinar a politização das relações sociais com a reestruturação autônoma dos sistemas funcionais. Não cabe à política definir as estruturas que programam diretamente as organizações educacionais, as empresas e as relações amorosas. Esse tipo de hiperpolitização sempre conduz a uma intervenção destrutiva da política sobre os demais sistemas sociais, que ao invés de estimular, inibe a busca criativa por soluções.
A crítica sociológica deveria ser a primeira a respeitar estas fronteiras práticas entre as esferas, pois somente a crítica ancorada e disciplinada pela perspectiva interna de seu objeto pode contribuir com alguma melhoria real. Se a sociologia não quiser ser engolida pela crítica indisciplinada e vulgar da “compreensão humana saudável” ela própria deve deixar de caminhar com a crítica vadia que deseja resolver problemas militares, geopolíticos ou pedagógicos com pregações morais cegas à realidade prática e a suas possibilidades concretas. Só assim, não podendo transformar diretamente nenhum sistema, ela pode ajudar a abrir o leque de possibilidades e contribuir indiretamente para a transformação estrutural descentralizada.
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