Mobilidade Urbana, Planejamento e Direito à cidade em Campos dos Goytacazes
Antônio Godoy e Daniela Bogado - Atualizado em 14/06/2024 20:27
Agência Brasil
Agência Brasil / Fernando Frazão
A mobilidade urbana está entre os mais urgentes temas que permeiam hoje o debate público. Os cidadãos necessitam habitar, mas também se deslocar para acesso às diversas funções urbanas, relacionadas às oportunidades de emprego e renda, educação, saúde, lazer, serviços públicos, entre outros. O debate emerge pelo enfrentamento diário dos obstáculos a esse acesso: certo incômodo pela implantação de ciclovias que ocupam vagas de estacionamento, especialmente no Centro, como ocorreu recentemente em Campos; o trânsito lento; a discussão da necessidade ou não de duplicação de vias arteriais, abrindo mais espaço para a circulação de carros; a (in)disponibilidade de ônibus urbanos, a falta de estrutura e qualidade das calçadas para os pedestres; o transporte por meio de vans ou por automóveis que prestam serviços por meio de aplicativos; em suma, questões que estão atreladas à disputa constante por espaço e formas de locomoção nos diversos aspectos citadinos.
A superfície do tecido urbano campista cresceu consideravelmente nas últimas duas décadas. Neste processo, as populações de menor renda ocupam cada vez mais as áreas periféricas, distantes do setor central e das ditas funções urbanas, o que ocorre tanto pelo aumento do valor do solo nas áreas centrais, quanto pela ação do poder público municipal, que implementou pujante programa de habitação social predominantemente nas bordas mais afastadas da mancha urbana. A população do distrito-sede aumentou e, em um fenômeno inerente à economia de mercado, quem chega à cidade para habitar encontra moradia em locais com atributos e estrutura proporcionais a sua capacidade de remunerar o mercado imobiliário.
Esse crescimento que aponta “para fora”, por conta do chamado processo de espraiamento urbano, produz uma cidade fragmentada, isto é, desconcentrada, com baixa densidade e permeada por grandes espaços livres de edificações ou de urbanização em seu interior. Diferentemente de uma cidade com urbanização compacta, as distâncias aumentam e se traduzem em maior tempo e maiores custos para o deslocamento diário dos munícipes, com maior impacto para quem tem menos renda e se encontra cada vez mais afastado das funções urbanas elementares.
        
Nesta extensa planície urbanizada, entendemos que as condições de deslocamento figuram como elemento estruturador do espaço: quanto maior for a fluidez, democratização e eficiência do sistema de mobilidade, maior será o acesso à infraestrutura urbana, que se encontra mais centralizada. A questão não se relaciona apenas à periferização da moradia, uma vez que parcelas da população fazem opções conscientes por loteamentos fechados ou condomínios nas bordas do tecido urbano. O detalhe está em dispor (ou não) de veículos próprios e recursos para garantir sua mobilidade, o que garante a esses moradores conforto, bem como um domínio significativo do tempo e do custo individual e familiar de deslocamento. Portanto, numa perspectiva de classe, a questão perpassa a periferização sem estrutura e dependente do transporte público, desdobrando-se nos custos financeiros e de tempo acumulado, o tempo para o deslocamento, que se soma à jornada de trabalho e/ou estudo, e acaba encurtando ou inviabilizando o descanso e o lazer qualificado.
Diante disso, o atual Plano Diretor campista (Lei Complementar nº 015/2020), que é o principal instrumento de planejamento urbano municipal, apresenta como estratégia geral a promoção da mobilidade e da acessibilidade universal, com a requalificação dos espaços públicos e a ampliação e integração das diversas modalidades de transporte com as diversas atividades humanas localizadas no seu território. Essa lei também dispõe sobre a estruturação da mobilidade urbana, a fim de garantir o suporte físico e tecnológico para a universalização da acessibilidade dentro da área urbana, racionalizando a rede viária existente para compatibilizá-la com os índices e as modalidades de uso e ocupação do solo urbano, bem como criando condições para o ordenamento territorial da cidade e o seu desenvolvimento. Essas diretrizes não podem ser compreendidas como mero discurso, pois são parâmetros vinculantes do planejamento urbano no que tange à sustentabilidade; à inclusão social; à integração do território municipal; à gestão participativa; ao desenvolvimento urbano; à construção da cidade e habitação.
Tudo isso precisa estar em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, da Agenda 2030 da ONU, cuja meta 11.2 ressalta a importância de melhorar a segurança viária e o acesso à cidade por meio de sistemas de mobilidade urbana mais sustentáveis, inclusivos, eficientes e justos, priorizando o transporte público de massa e o transporte ativo, com especial atenção para as necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade, como aquelas com deficiência e com mobilidade reduzida, mulheres, crianças e pessoas idosas. Entretanto, não é surpresa pensar que isso ainda é um ideal contrastante com a cidade real.
Por um lado, em um sistema democrático, que permite a livre circulação e o acesso universal às diversas áreas da cidade, sinalizamos para a inclusão, a integração socialmente justa, a sustentabilidade e a garantia do direito à cidade para todos os campistas. Por outro lado, diante das desigualdades sociais urbanas, dos diversos obstáculos, das dificuldades de se deslocar, da (des)proporcionalidade dos custos em relação à renda das famílias e do aumento significativo no tempo de deslocamento, apontamos para a intensificação do processo de segregação socioespacial. Neste sentido, podemos afirmar que a mobilidade urbana é um dos parâmetros de leitura da exclusão social. Afinal, há um duplo caráter das políticas públicas de mobilidade: um óbvio de acesso e fruição, mas outro que define inclusão e até mesmo distribuição de renda, pois trata de acesso às localizações de moradias, postos de trabalho e estudo.
Os diversos setores do tecido urbano podem ser lidos como localizações que, comparadas entre si, guardam atributos diferentes: infraestrutura urbana; acesso e proximidade a postos de trabalho, serviços públicos e privados; qualidade do ambiente construído e, por consequência, valor do solo urbano. Em uma economia de mercado os padrões de uso e ocupação do solo, definidos pelo planejamento urbano, regulam o direito de propriedade por definir os limites para edificar e, por conseguinte, para obter renda imobiliária. Logo, o principal campo de disputa dos diversos agentes está na aplicação de fundos públicos, ou seja, no uso de recursos públicos para a melhoria do espaço urbano e de seus atributos de localização. Contudo, tais fundos têm alocação desigual no contexto geral da cidade, embora devesse priorizar o cumprimento da função socioambiental da propriedade e da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização.
O direito à cidade é mais do que direito de acesso a espaços da cidade ou às funções urbanas: é um direito de, sendo um agente formulador, participar ativamente do planejamento urbano. Não pode ser mera formalidade a inclusão da palavra “participativo” no Plano Diretor, uma vez que o planejamento e a gestão urbana precisam ser resultado do amplo debate público na esfera política e não resultado apenas de mesas tecnocratas ou de interesses políticos elitistas.
A solução para uma estrutura de mobilidade urbana sustentável e de acesso universal passa pelo respeito ao direito à cidade, envolvendo métodos que incluam no debate público e na formulação de planos e políticas públicas parte da população excluída desse processo. Como o resultado dessas formulações implica a distribuição espacial da aplicação de fundos públicos, sem a ampla participação social, esta distribuição tenderá a atender aos interesses privados e mercadológicos, reproduzindo um padrão de uso e ocupação do solo que segrega e exclui a maior parte dos cidadãos.

Antonio Godoy é professor e coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF-Campos e pesquisador do APPA/MobiRede.

Daniela Bogado é professora do IFF Campos e pesquisadora do Núcleo Norte Fluminense do INCT Observatório das Metrópoles e do APPA/MobiRede.

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