Mangabeira vê risco de fim dos royalties
Aluysio Abreu Barbosa, Edmundo Siqueira, Roberto Dutra, Cláudio Nogueira e Mário Sérgio Junior 17/08/2024 08:51 - Atualizado em 17/08/2024 09:12
“Qual é o grande erro que a região de Campos cometeria? Temos essa riqueza fácil dos royalties de petróleo, qual é o risco? O risco é que vai desaparecer”, declarou o professor da Harvard e filósofo Mangabeira Unger, ao analisar a situação do desenvolvimento regional durante sua participação no programa Folha no Ar, da rádio Folha FM 98,3, nessa sexta-feira (16). Ex-ministro de Lula e Dilma, ele defende que os royalties do petróleo deveriam ser utilizados para financiar uma travessia de paradigma produtivo e colocar o próprio setor do petróleo e seus derivados na vanguarda. Unger também comentou sobre as eleições municipais e diz que não acha que o pleito deste ano vai apontar um caminho nacional. Por falar em cenário nacional, o professor destacou que a normalidade no Brasil é “mediocridade”, vista por ele como o maior problema brasileiro atualmente. Ele também afirma que a política identitária é “fantasiosa”, pois nega uma realidade básica do povo brasileiro. Unger opiniou, ainda, sobre o Partido dos Trabalhadores, legenda o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Desenvolvimento regional — “Vamos tomar o exemplo do Norte Fluminense. Qual é o grande erro que a região de Campos cometeria? Temos essa riqueza fácil dos royalties de petróleo, qual é o risco? O risco é que vai desaparecer. Aquilo é efêmero. Tem que usar a janela de oportunidade dessa riqueza dos royalties do petróleo e do elemento acessório da riqueza agropecuária para duas finalidades. Primeiro, para financiar uma travessia de paradigma produtivo no próprio Norte Fluminense, rumo a uma forma popular da economia do conhecimento. O Brasil já tem experimentos nesse sentido. Construir as bases de formas viáveis no Norte Fluminense dessa indústria da inteligência. Aí os detalhes tem que ver de acordo com as pessoas e as situações. A segunda oportunidade é construir a economia do conhecimento no próprio setor primário, como no caso do petróleo e seus derivados e seus substitutos. Os royalties devem ser usados para financiar uma travessia de paradigma produtivo e devem ser usados também autoreflexivamente para colocar o próprio setor do petróleo e seus derivados na vanguarda”.

Problema do Brasil — “O principal problema do Brasil hoje é a mediocridade, o primarismo, o primitivismo. O Brasil é um grande caldeirão de energia humana, empreendedora e cultural, de engenho, de invenção, de imaginação, e nós estamos no chão. Nós estamos no abismo da mediocridade. Esse é o nosso problema principal. Só superaremos a desigualdade em meio a uma onda para superar a mediocridade. Capacitar o nosso aparato produtivo, que hoje regrediu para o primarismo, e a nossa gente. Essa é a tarefa”.

Desenvolvimento nacional — “A meu ver, essa tarefa exige cinco grandes projetos de construção nacional. O primeiro projeto é o projeto de estourar o argumento qualitativo do aparato de nossa produção. Nós tínhamos uma vanguarda produtiva que era a indústria convencional, instaurada no Sudeste, no estado de São Paulo, em meados do século passado. Ela está sendo destruída. Em todo o mundo ela está em crise e o mundo todo enfrenta agora um novo dilema de desenvolvimento. O dilema é o seguinte, havia um atalho para o crescimento econômico rápido. Esse atalho era a industrialização convencional, como aquela indústria substitutiva de importações que se instaurou no Brasil no século passado, no período de Vargas. Ela não é mais a vanguarda, hoje é apenas o vestígio de uma vanguarda anterior, ou é a satélite da nova vanguarda da economia do conhecimento, nas grandes economias do mundo. O dilema é o seguinte, o dilema que está assombrando o mundo, o atalho para o crescimento econômico rápido se fechou, não funciona mais. Qual seria a alternativa? A alternativa seria uma forma socialmente inclusiva da nova vanguarda da economia do conhecimento. Mas essa alternativa não existe”.

Possibilidades — “O Brasil é um dos poucos países do mundo onde o Estado conta com muitos dos instrumentos que seriam necessários para dar os primeiros passos. Esses instrumentos no Brasil são o legado do corporativismo varguista. A Embrapa, o Senai, os bancos públicos de desenvolvimento. Muitos deles carcomidos ou pervertidos justamente por não estarem postos a serviço de um projeto de qualificação de um aparato produtivo. A nossa primeira grande agenda é resgatá-los e usá-los para começar a qualificar dois grandes agentes econômicos. As pequenas e médias empresas retrógradas, que estão agora vegetando no atraso primário, no primarismo produtivo, trazê-las para mais próximo da vanguarda da produção e a multidão de agentes econômicos individualizados que perderam contato com qualquer organização empresarial”.

Negócios informais — “Hoje, no Brasil, metade da população economicamente ativa está na informalidade e, no setor formal, uma parte crescente em situação de emprego precarizado. Tomando os informais e os precarizados, é a grande maioria de nossa força de trabalho. Teríamos, pouco a pouco, que transformá-los em artesãos tecnologicamente qualificados. Então, essa é a primeira grande tarefa. Essa tarefa de abrir caminho para uma forma inclusiva da economia do conhecimento que não existe em nenhuma outra parte do mundo. Nós teremos que ser pioneiros nessa construção. A segunda tarefa é mudar a relação entre as finanças e a economia real, o sistema produtivo. As elites brasileiras no poder e que povoaram o governo Lula atual, o governo Lula passado e o governo Bolsonaro, apostaram na ideia de que o crescimento econômico pode voltar pela conquista da confiança financeira, quer dizer, agradar os interesses e os preconceitos do mercado financeiro e com isso supostamente trazer investimento nacional. Nenhum país se desenvolveu assim, com dinheiro dos outros e procurando flertar com os mercados financeiros. Nós temos sim que ter realismo fiscal, impor sacrifício, mas não é para ganhar confiança nos mercados financeiros, é para a razão exatamente oposta, para que o governo e o país não tenham de depender da confiança financeira e possam ousar na construção de um projeto rebelde de desenvolvimento nacional”.

Finanças x Sistema produtivo — “A religião das finanças só conta a curtíssimo prazo. A médio prazo, a única coisa que conta é a realidade, o crescimento econômico e as oportunidades de ganho que ele gera. Agora, nós teríamos, então, que subordinar os interesses financeiros aos interesses produtivos. E isso, no Brasil, haveria de tomar uma série de formas práticas. Primeiro exemplo, nós temos a ideia de gerar superávit primário, quer dizer, é como se se dissesse os créditos que os credores do Estado têm primazia sobre todas as outras responsabilidades do Estado. Pagam primeiro. Teremos que fazer uma divisão entre a poupança nacional investida na produção nacional, essa sim deve ser privilegiada e protegida, e o capital de motel, o capital de portfólio que vem e volta e não tem compromisso com o país. E o privilégio concedido ao primeiro, não ao segundo. Segundo exemplo: Nenhum brasileiro, pessoa física, pode emprestar a outro brasileiro e cobrar pelo empréstimo mais de 12% dos fixados pelo Código Civil, se não incorre no ilícito da usura. Mas a empresa do cartão de crédito, o banco, pode lhe cobrar 400%. E por isso nós não temos concorrência no setor bancário. Tem que radicalizar a concorrência e no setor bancário impor o capitalismo aos capitalistas. E a maneira mais eficaz de fazer isso é permitir que todos possam emprestar uns aos outros. São milhões de brasileiros que vão ser os concorrentes sobre essa alternativa que eu defendo. E em terceiro lugar, terceiro exemplo, os bancos zelam pela gestão do sistema de pagamentos, uma das grandes fontes de lucro e de poder econômico. Vamos tirar esse ovo de ouro que eles estão cuidando e atribuir a todo cidadão brasileiro uma conta gratuita do Banco Central, por meio do qual ele faça os seus pagamentos e as suas transferências”.

Sustentabilidade — “Nós falamos em desenvolvimento sustentável da Amazônia. O que é? Se não for apenas o mestrativismo artesanal, sem tecnologia, sem escala e, portanto, sem futuro, só pode ser a economia do conhecimento, isto é, organizar os vínculos entre o complexo verde e o complexo industrial urbano, criar nas cidades grandes e médias da Amazônia indústrias voltadas para a região e desenvolver a economia do conhecimento que possa assegurar que a floresta em pé valha mais do que a floresta derrubada. A base para isso, a premissa na Amazônia é a regularização fundiária e o zoneamento econômico e ecológico”.

Educação — “O quarto projeto de construção nacional é uma transformação radical do ensino brasileiro. O ensino brasileiro hoje é enciclopedismo raso e decoreba, sobretudo o ensino público. Não é o ensino analítico e capacitador de que precisamos. E esse ensino, no ensino geral, teria que ser acompanhado por uma transformação radical do ensino técnico. Os efeitos organizados por governos recentes são o primeiro passo nesse sentido. Os institutos federais de tecnologia. Um ensino técnico que, em vez de privilegiar as profissões rígidas e as máquinas rígidas, privilegia as metacapacitações, as capacitações manuais e conceituais flexíveis exigidas pelo manejo das máquinas numéricas na era da economia do conhecimento”.

Emprego — “Nós não podemos viver no mundo do século passado, das grandes organizações sindicais, um mundo em que uma força de trabalho estável trabalhava em grandes unidades, fabris, sob a égide de grandes empresas. Esse mundo acabou, mas temos que defender os interesses dos trabalhadores dentro dessa nova realidade. Quem está fazendo isso ou imaginando isso no Brasil agora? Ninguém. Estamos na mão dos mitos, das fórmulas do século passado”.

“Não há bala de prata” — “Não há nenhuma bala de prata no mundo, não há nenhuma forma de fazer isso em todo o mundo. A política é uma aventura, a política é suja, há personagens estranhos que aparecem na política e alguém precisa se prontificar a sair de seus cômodos para enfrentar essa anarquia. Acho extremamente atraente, recomendo a todo mundo, mas não estou menosprezando os sustos que a gente corre nesse caminho. É uma montanha russa, mas não é alta. A única maneira de educar o povo politicamente é pelo exercício da política. As maiorias não são infalíveis, cometem erros, elegem gente errada. A solução é cometer os erros mais rapidamente. Essa é a solução”.
Política identitária — “A política identitária, em primeiro lugar, é uma política fantasiosa. Ela é a negação de uma realidade básica do povo brasileiro, que é a realidade da miscigenação, e joga fora essa enorme vantagem que nós temos importando o miliário dos Estados Unidos. Veja, por exemplo, as políticas chamadas de cotas, que descrevem as políticas de ação afirmativas. Nos Estados Unidos, o termo cota é proibido, é um termo anátema. Aqui, os defensores dessas políticas abertamente as descrevem como uma política de cotas. É a divisão do povo brasileiro, quando tudo que teríamos que fazer é o oposto. A nossa realidade básica é o sincretismo, o sincretismo racial, o sincretismo filosófico, programático. No Brasil, o sincretismo, a mistura de tudo com tudo, é ao mesmo tempo a solução, o problema e a solução. Então, nós não podemos negar isso. Isso é a nossa grande força. Então, temos que rejeitar essa ideia de uma política identitária das minorias”.

Eleições — Claramente, a eleição municipal acho que não vai apontar um caminho nacional. Não a vejo como prenúncio de um caminho nacional. A vejo representando a primazia das questões locais, e a confusão partidária brasileira. Depois, no dia seguinte, ao segundo turno da eleição municipal, começa a sucessão presidencial. E aí, sim, nós teremos que organizar politicamente uma alternativa para o país. Essa alternativa não pode ser a continuação do lulapetismo, que jogou todas as fichas no primarismo produtivo, numa educação desqualificada, não construiu alternativas de educação e saúde para a massa brasileira e não tem um caminho no futuro, não oferece um futuro. E Bolsonaro, excluído da eleição, a tendência é que venha a apoiar um candidato como Tarcísio de Freitas, o governador de São Paulo. E representa o quê? Tarcísio seria um candidato como, digamos, o presidente Campos Salles. Então, vamos conduzir um projeto desenvolvimento e investimento tradicionalíssimo, com a simpatia dos financistas, agora, cem anos depois do governo Campos Salles. Nós temos que construir uma alternativa. Agora, o caminho é um caminho que convida à sobriedade.

Partido dos Trabalhadores — O PT hoje é um partido essencialmente nordestino. Eleitoralmente, ele existe no Nordeste, comandado de São Paulo. Então, a imprensa de negócios fica incensando o Fernando Haddad, porque ele é o sensato, é o razoável, que cuida dos interesses dos financistas. Enquanto isso, o que há de interessante no PT é o que ocorre, por exemplo, no Piauí, com o governador Rafael Fonteles. E na direita? Qual é o projeto de direita? Tem essa multidão de pequenos burgueses, de emergentes, de batalhadores. Qual é o projeto para eles? O projeto para eles é Paulo Guedes? Mais Paulo Guedes? Quer dizer, isso é um absurdo. É uma loucura, não faz sentido. Aí nós temos que apostar em outro fator que torna a situação menos áspera do que parece ser. E esse outro fator é que no Brasil a maioria, que é composta das sobras e dos rejeitos de todos os projetos produtivistas e sociais malogrados, O último projeto produtivista que tivemos no Brasil foi o projeto de substituição de importações do vetúlio, a indústria convencional, acabou.

Normalidade e mediocridade — Eu espero que o Brasil não volte à normalidade. A normalidade é no Brasil sempre a mediocridade. Eu quero a ruptura da normalidade. Eu acho que o povo brasileiro também quer o rompimento da normalidade. Não quer confusão, não quer bagunça, não quer luta, mas quer outra coisa, quer outro caminho. Está disposto a correr riscos. Já correu muitos riscos no passado, já abraçou outsiders que não deram certo. Isso é a história do Brasil e é isso que é bonito na política, que é entusiasmante na política. É uma grande aventura coletiva em que a única coisa que pode funcionar é o casamento da audácia com a imaginação. O resto não funciona.

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