Morre, aos 59 anos, "Bicho André"
Rafael Khenaifes e Ingrid Silva 30/09/2024 11:02 - Atualizado em 01/10/2024 11:18
Bicho André
Bicho André / Reprodução: redes sociais
Morreu, aos 59 anos, André Luiz Pinto da Silva, o famigerado "Bicho André". Ele estava internado em uma unidade de saúde particular de Campos.  Com algumas comorbidades, André faleceu por complicações no pulmão após ser hospitalizado com "água na pleura". A informação do falecimento foi confirmada por familiares nesta segunda-feira (30). O velório aconteceu nesta tarde no Cemitério Campos da Paz, na Capela "F" e o sepultamento foi nesta manhã de terça-feira (1º).
Amigos e familiares lamentaram o falecimento. André deu início ao bar, na Rua Lacerda Sobrinho, no centro de Campos, que levou o seu apelido, oferecendo diversão, conhecimento e cultura aos fãs do gênero musical "Rock". Em uma entrevista, André, relatou como é estar do outro lado do Balcão.
Crônica - André, "O Bicho"
1964, o nascimento. O homem vai à lua. Maria fumaça fumegava pela cidade. Copa de 1970. Avenida 28 de Março não tinha sua imponência. O barro dava lugar ao asfalto. Geisel a cruzou com os milicos trazendo as maquinarias para iniciar o progresso da cidade. Uma latinha de cerveja, colocada por uma criança, assustara os bravos soldados, que prontamente a chutara para longe. O receio de ser algum artefato comunista fora eliminado. Há resquícios de um saudosismo da ordem e da moral coata pelos generais.
Afinal, dormia-se de janelas abertas, a vizinhança punha-se à calçada. Um monstro rugia em seu apito o zelo das ruas. Não havia folhetins e nem os tabloides, as informações corriam pela boca de N. mãe de J., uma correspondente de janela. Um sapato novo era motivo de orgulho, Tega era o dono da sapataria, figura com causos que impressionava os residentes.

Em uma mesa férrea na calçada, servindo como confessionário, dispunha-se o confidente. Seus braços pendiam ao chão e seu olhar pedia remissão. A paróquia estava a poucos metros com poucas pessoas escoradas no genuflexório, sendo abençoadas pelo graal engarrafado.

Seus olhos estão fixos na lembrança que se materializava em sua frente. Seu cenho rendia-se à puerilidade da sua terra. A paz da inocência o consolava. Ao retornar ao nosso tempo a aspereza do concreto em que os seus pés repousavam o traziam para 2017. As lembranças esvaíram-se com a poeira levantada de toda aquela movimentação desencrespada ao ser sobrestado por um frequentador do bar, solicitando-o algumas chaves.

André Luiz Pinto da Silva. Nascimento: vinte e oito de novembro de mil novecentos e sessenta e quatro. Um metro e oitenta e sete de altura. Cento e dez quilos. Essas características poderiam ser retiradas de uma ficha criminal. Vontade não faltava, as autoridades locais viviam atrás do seu incompreendido epíteto, Bicho André.
A noite era agradável, uma corrente fria às vezes irrompia. Maços de cigarros e isqueiros à mesa. A conversa se iniciava ao tilintar do isqueiro, abrasando o tabaco. A cada tragada, uma tentativa furtiva de iniciar a viagem que remonta a concepção de sua capela: O Bar Bicho André.

Um último trago e o cenário mudara. Seus tempos de escola pungiam na vigorosa ordem em que se formavam já nas filas devidamente separadas por gênero. Os hinos ufanos cíveis e hieráticos eram entoados pelas gargantas pueris. O patriotismo era devidamente germinado e acatado, naquele tempo em que os pais autorizavam as penitências aos escolásticos. Uma de suas divertidas memórias, ele narra como o professor curava até cacoetes dos seus colegas com um belo “pescoção”.

Entre risos e uma música, na cansada caixa de som, do Tim Maia, O caminho de bem, um devoto pede a conta. Seu retorno à mesa é marcado por passos firmes, iguais aos de Policarpo. A sua narrativa recomeça dos tempos de outro colégio que estudara, o Externato Viana. Uma instituição particular da Dona Aldéia e do marido Professor Lélio na Rua São Pedro. Segundo André, os alunos mais peraltas eram compelidos a essa escola. Verbos e tabuadas eram exigidos na ponta da língua. Não havia por parte dos professores qualquer doutrinação ideológica. A severidade não deixava André insatisfeito, frequentava-a mesmo fora dos períodos de aula.
Gol do Flamengo. Mais uma vez a conversa é interrompida pelas comemorações e fogos de artifícios. O Flamengo eliminara o fluminense. André não dá muita atenção. Sua viagem ao passado agora vislumbrava o carnaval campista, marcado pela tranquilidade e pela beleza que a festa proporcionava aos habitantes do norte fluminense. Ele admirava a tranquilidade em que as famílias sentavam-se e desfrutavam das marchinhas, mesmo já tendo percebido que algumas delas sofriam censura. Uma lembrança também dos tempos áureos umbrosos, era a proibição de uma camiseta com uma cruz vermelha e preta. Mesmo com essas dificuldades que as censuras acarretavam, o positivo disso tudo era que André nunca ouvira falar da tal cocaína. As crianças e adolescentes estavam salvos!

Rodando seu isqueiro, algo cai de cima da árvore ricocheteando em seu ombro. O susto é inevitável. Em movimentos precisos ele tenta rapidamente identificar se alguma desgraça o acometera. Logo percebe que se tratava de apenas um gravetinho, deixando-o profundamente aliviado por não se tratar do pior inseto do mundo, considerado por ele, a barata.

Após o susto, o ano já era de mil novecentos e setenta e sete. Já começara a reunir-se com os amigos para sair aos embalos do sábado à noite. Julgando precoces todas as suas vivências, ele descreve o seu contato com as revistas de sacanagem, a maioria de origem estrangeira. Naquele tempo o acesso era dificílimo, André tornou-se um integrante da máfia das revistinhas. Abastecido pelos maiores de dezoito anos, as revistas chegavam aos seus companheiros graças à perspicácia deste.
André vira-se ao seu ajudante e pede polidamente “umazinha”. Em poucos segundos um copo de aguardente toma o lugar do isqueiro azul, este sendo colocado de lado. Um gole, uma fulgência em seu rosto. Uma anedota sobre a sua primeira relação. César, seu amigo, já falecido, no dia de Cosme e Damião saboreou uma aia que trabalhara em sua casa. O grau de cumplicidade era tão alto que após traçar a aia, César conta as boas-novas ao André, lhe convidando a desfrutá-la, pois ela o aguardava também. Um dia, dois amores.

Desde então André e seus amigos frequentavam casas como a Escorre Sangue, um de muitos alcoices espalhados pela cidade naquele tempo. Já no final da década de setenta, as discotecas seduzia-os. Mas uma de suas predileções eram as salas do imponente Trianon. Era uma excursão à ida ao lugar apenas para contemplar os cartazes, um Louvre cinematográfico. Os camarotes, estátuas e os tapetes vermelhos ambientavam as suas idas para assistir Tom e Jerry, Tubarão, O exorcista, dentre outros. Estes citados o marcaram bastante. Após uma sessão noturna, ao assistir O Exorcista, André tivera que voltar só para casa. Com a cruz empunhada, descia para a rua com a sua jaculatória entre os dentes. O impacto do filme do Steven Spielberg, Tubarão, o afastara dos mares desde então. Ao lembrar-se dessas doces anamneses, revolta-se contra a pérfida reforma ao moderno Trianon. Em suas palavras: “Um crime! Uma porcaria!”.

A essa altura André prendia a atenção de todos que participavam da conversa. Já um bom tempo na mesma posição, quase que orquestrado, todos se ajustam em suas cadeiras. Cigarros são acesos. Em cena, o rock e a diamba.


Led Zeppelin, Pink Floyd, Dire Straits fora a trindade responsável em sua conversão ao rock and roll. André era um escrupuloso em prol da causa. Suas vestimentas tornaram-se negras, ornava-se com tatuagens e metais vertebrados. Sua alacridade é visível, seu pescoço move-se lentamente para frente, como se ajudasse as palavras a ganharem mais forças ao recordar de seus quinze anos. Idade lúbrica. Pujança inerente a resistir a demonização do gênero. Quando um anacoreta era visto, logo era afamado de louco e maconheiro.

Ao nume, André seguia em frente e contou-nos um pouco da sua experiência com a injustiçada erva, usada pela primeira vez ainda em seus quinze anos. Sua gesta alvíssara inicia com a mendacidade dos agentes da lei. A repressão era intensa. E as histórias são carregadas de comicidades.

Lascivamente, os policiais pegavam os dedos dos suspeitos, e com pungência esperavam inebriados, a olência da planta. Para evitar tal sedução, ser notícia de jornal, (os usuários flagrados viravam notícia e suas vidas tornavam-se difíceis) e encarcerado, André começa a fazer uso das substâncias medicamentosas para fins recreativos. Seu uso fora transiente, por uma traumática experiência. A caminho da escola, no findar ginasial, André ouvira sobre o efeito rijo de um xarope. Bebericou e nada mudara. Tomara o vidro inteiro e começara a praguejar a intrujice ébria. Ao se dar conta, percebe que seus protestos quase se tornaria um comício fervoroso socialista. Ao chegar à sala de aula, é obsedado pela digladiação dos números na lousa, em plena aula de matemática. Atônito, cobre os olhos com as mãos e se diagnostica acometido de uma ablepsia. Seu torpor é tratado no banheiro da escola. Quando retoma a inconveniente conscienciosidade, pensara estar sem as calças. O medo de ir ao hospital e ter problemas com as autoridades prolongaram a sua onda até a manhã seguinte, quando ainda via os postes correndo pela rua e elefantes voadores.
Recuperado, decide usufruir apenas a diamba. Em um passeio com mais dois amigos, fumando um, eles são surpreendidos por um carro de polícia. Já com as portas abertas e arma em punho, manda-os parar. A ordem não é cumprida. Um consegue se jogar no valão, um é pego e o André consegue fugir. Em meio à fuga, percebendo que seus amigos não conseguiram fugir. Um lapso lhe ocorre e retorna para conversar com os policiais. É recebido prontamente com o cano da pistola em seu nariz. André percebe que a arma fora recentemente limpa, o cheiro do óleo ainda era fresco. Seus amigos foram devidamente interrogados a confessarem o uso da substância. Na negativa, umas coronhadas procuravam uma confissão. André fora poupado, até então. Com o flagrante dispensado, são liberados e avisados que se forem pegos, o pau de arara seria o fim. A viatura sai em disparada à procura de mais consumidores. Ainda atônitos, ao percorrerem o caminho de volta, encontram novamente a viatura dando uma dura em outro grupo. Um dos policiais se arrependem e pensa: “- Por que eu não bati nesses filhos da puta?”. São solicitados a juntarem-se com os demais e um festival de cacetadas é aquinhoado.

Cansados das estórias que os maconheiros soltavam fumaça em transeunte, deixando-o doidão e seus pertences eram despojados. Também tinha uma em que eles soltavam suas entorpecidas fumaças, durante a noite, adormecendo os seus ocupantes que tinham a sua residência inteira rapinada, eles decidem ser mais cautelosos ao uso da erva.

Mais um copo de bebida e mais um cigarro, André se lembra do Rod Star em que cruzava em alta velocidade pela cidade. O K7 sempre entoava os hinos da Trindade. Tendo se livrado dos sabujos, André percebe que a censura era foda! A dificuldade para ter notícias da cena do rock o frustra demasiadamente. Seu único templo era a loja Caiana, único estabelecimento que era possível achar alguns álbuns.
Sua angústia por um movimento do rock and roll era pungente. Algo precisava ser feito com urgência. A cidade era dominada pelas casas de shows e bares com apenas um repertório. O pagode. Sua busca profissional para enveredar na vida adulta e o seu desejo pelo estrondo da guitarra, André deixa de ser André e é metamorfoseado em Bicho André. Assim como Abrão tornou-se Abrãao, Bicho André se converte em um Patriarca do Rock no Norte Fluminense.

Mil novecentos e noventa. Sua edícula tinha três metros quadrados. Seu modesto tamanho não conseguia conter os frequentadores sedentos pela ebriedade das bebidas e das guitarras. As carolas e os moralistas de plantão ficavam estupefatos ao ver os seguidores em suas indumentárias negras. Beatificado, as ruas eram banhadas pelo negrume dos dissidentes campistas, André notara que a necessidade de um templo salomônico era indispensável.

Em mil novecentos e noventa e sete urge o anexo, do então galpão de lanternagem vizinho. Encontra um pároco como sócio. Este era corpulento, reservado e cuidava mais da parte financeira do Bar Bicho André. Diversas bandas aparecem para entoar seus cânticos. A Contraband tocou por alguns meses sem honorários. Surgira o Domingo Rock and roll com o primeiro movimento na cidade, os Dinossauros do Rock, com as bandas Blues Band, Big Red, entre outras. Era rock das dez horas da manhã até a madrugada de segunda-feira.
Em um dia de pleno movimento, um amigo o admoesta a colocar uma mesa de sinuca.

André, receoso, aceita fazer um teste. Subitamente seus frequentadores aderiram à prática. De uma mesa em poucas semanas surgem quinze. É um sucesso! Rock, cerveja gelada, destilados, sinuca e muito amor. Neste ínterim, os órgãos moralistas são tomados de um furor incontrolável e com assiduidade o bar é alvo de fiscalizações e multas exorbitantes. Inicia-se à caça ao Bicho André. Ligações com denúncias eram frequentes, possivelmente induzidas pelos concorrentes. Para o azar do Bicho, o tráfico se instala em suas proximidades. Irrequieto André, o Bicho, tenta de todas as formas livrar-se deste mal que o assolara. Em uma de suas diversas tentativas, Bicho André vai até à delegacia e os impele: “- Vocês vão resolver essa situação ou não?”. Ensejados, André é interrogado. Ele era associado ao tráfico de drogas, na fértil cabeça do delegado. Uma das perguntas inquiridas, questionam o seu codinome. “- Com um codinome desses você só pode ser cúmplice!” André ri e explica: “- Colocaram esse apelido em mim, por eu usar muito a palavra bicho como gíria. Roberto Carlos é velhaço e fala até hoje!” Esclarecido, porém não resolvido, André contrata um segurança particular. Que aos poucos se livra de uma das pragas faraônicas. Ameaçado, André o mantém por perto por mais algum tempo. Após as tensões apaziguadas, o então segurança revela-se um agente infiltrado. André é finalmente absolvido dos maus olhares investigativos.

Tudo fluía, mas o trágico acontece. O tão adorado santuário é destruído, assim como Nabucodonosor em quinhentos e oitenta e sete anos antes de Cristo, a inabilidade e a inexperiência em gestão, o faz ruir em mil novecentos e novecentos e oito. Com uma filha de aproximadamente quatro anos, André sobrepõe-se à desgraça e com a ajuda de um gerente de uma empresa de bebidas, em mil novecentos e noventa e nove, o ajuda a bramir o então destruído bar.
Assume o presbitério sozinho. O rock em pleno vapor, mais e mais tacadas de bilhar tilintam noite adentro. Já experiente, o Bicho André desarticula várias transações ilícitas sob a sua gestão. Com direito a espionagem, André diminui as chances de uma nova ruína. No ano da virada do milênio, uma grande festa marca o seu aniversário de trinta e seis anos. O templo lotado, as bolas rolavam freneticamente nas mesas aveludadas, o rock comia solto. Entremente, por exaustão, André cochilava em meio à festividade. Sua paróquia resistira até o ano de dois mil e sete com infindáveis histórias do cotidiano testemunhado por ele de seu balcão. Mais uma vez, como sob a tirania de Tito, o imperador que queimara o templo israelense no ano setenta depois de Cristo. O grande templo não se sustenta e volta a atuar na sua primeira célula eucarística, o bar de três metros quadrados.

Hoje o bar é bem mais calmo, ambientado por muitas histórias e alguns objetos litúrgicos que remetem o que fora anteriormente. Uma foto da deslumbrante Marilyn Monroe, uma bandeira do Líbano, um telefone de disco, um lampião, uma caveira com uma motocicleta em sua mandíbula, um cinzeiro artesanal de barro, um tabuleiro de xadrez e garrafas e mais garrafas. Em seu balcão há uma antiga máquina de calcular dos anos vinte, que não é capaz de contabilizar o quão ali fora vivido.

Entre uns copos de cervejas, a sua vodca e cigarros, André me convida a conhecer sua segunda casa, na qual ele crescera e vivera desde então. Um lugar aconchegante, onde ele só entra para repousar. André é um exímio colecionador de máquinas de escrever, relógios de bolso, filmes e livros. Entre as conversas, revela-me ainda um mecanógrafo em atividade na cidade campista. Ao sair sou surpreendido por um de seus relógios de bolso da sua estimada coleção. Ao agradecer, regressamos ao bar. Copos abastecidos, André relata algumas superações ao seu algoz. Enfermidades. Seus olhos marejados denota uma vontade de continuar. Tem consciência da sua contribuição e ao conseguir cumprir uma de suas frases ditas em sua tenra idade: “- Um dia eu vou ser maior bar da cidade”. Reconhece a ajuda de vários amigos e familiares, em especial pontua Almir como um grande amigo.
Sussurrando as lembranças de visitas célebres, epopeias homéricas, como a de um algoz global, o som do aço encerra a entrevista ao baixar das duas portas de seu suntuoso Bar Bicho André.

Por: Rafael Khenaifes Abud e Luis Fernando, Affonso Taliuly e Álex Rodrigues.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS