Folha Letras - A restinga do Paraíba do Sul
* Arthur Soffiati - Atualizado em 11/12/2024 10:44
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Formação
Restinga é um terreno arenoso formado pelas correntes marinhas em conjugação com algum ponto de retenção no continente. Os sedimentos arenosos transportados pelas correntes encontram um obstáculo, geralmente pedregoso, que os retêm. Pelo processo clássico de formação, os sedimentos retidos ligam o continente a esse obstáculo (uma ilha, por exemplo) e criam um cabo ou promontório que, incialmente, recebe o nome de tômbolo. Com a acumulação progressiva de areia por esse obstáculo, forma-se a restinga. O exemplo clássico é o da restinga da Marambaia. A combinação de sedimentos arenosos com retentores pedregosos é também muito comum na Região dos Lagos.
Não havendo obstáculos pedregosos, o jato de um rio pode também funcionar como retentor de areia. Trata-se de um espigão hídrico. Foi o que aconteceu nos últimos cinco mil anos com a formação da planície do rio Paraíba do Sul, a maior do estado do Rio de Janeiro. Primeiramente, o rio transportou sedimentos aluvionais da zona serrana e os lançou no mar, construindo uma baixada argilosa. Depois, avançando com força em direção ao mar, reteve sedimentos arenosos que se ligaram à planície aluvial e a arremataram.
Assim, entre os rios Guaxindiba e Iguaçu (este conhecido como lagoa do Açu atualmente) são os limites da grande restinga cujo centro é o rio Paraíba do Sul. Os rios lutam contra o transporte de areia para manterem sua foz aberta. Os primeiros registros do delta do Paraíba do Sul informam que a navegação por ele era perigosa. Atualmente, o perigo aumentou, pois a redução da vasão por ações humanas no curso da bacia assim como pela elevação do nível do mar, também por ação humana, tendem a fechar os braços de defluência do rio para o mar. A foz do Iguaçu já foi fechada.
As restingas do Paraíba do Sul e de Jurubatiba, com idades diferentes, são ligadas por um estreito cordão arenoso de 28 quilômetros.
 
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Vegetação e fauna nativas

Formado esse extenso terreno arenoso, as condições ambientais (solo, salinidade do ar e ventos) criaram condições ideais para a emergência de uma formação pioneira de influência marinha. Espécies vegetais provenientes da Mata Atlântica colonizaram a restinga, sendo selecionadas pelo ambiente. Na parte mais interior da restinga, as condições ecológicas permitiram o desenvolvimento de matas de grande porte. No ponto central dela, a vegetação assumiu porte arbustivo e na parte mais externa, junto à costa, ventos fortes e salinidade só permitem o desenvolvimento de vegetação herbácea. Talvez existam também, nas imediações do cabo de São Tomé, campos salinos, já que os elevados teores de sal que se concentram nesse ponto representam um fator significativo a propiciar mais ainda a seleção de espécies.
Na foz dos rios, inclusive na daqueles em que ela foi fechada por falta de competência da água doce ou por força do mar, transformando-se em lagoas alongadas, as condições ambientais favoráveis criaram formações pioneiras de influência fluviomarinha, popularmente conhecidas por mangue ou manguezal. Os mais expressivos desenvolveram-se nos estuários dos rios Guaxindiba e Paraíba do Sul (o maior deles), assim como nas lagoas de Gruçaí, Iquipari e Açu. As três mantinham foz aberta permanente ou temporariamente no passado.
A fauna é constituída por invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Era bastante comum encontrar-se, nesse ambiente arenoso, camaleões, teiús, preguiças, tatus, porcos-espinho, gatos-maracajá. Enfim, uma fauna de pequeno porte.

Colonização humana

À medida que a planície crescia com sedimentos argilosos e arenosos, os povos nativos das terras altas progressivamente desciam e a colonizavam. Ela tinha muitas lagoas onde grande número de espécies de moluscos e de peixes viviam. Nas terras secas, sempre sujeitas a cheias, animais terrestres eram caçados. Esses povos integravam o grupo linguístico macro-jê, falando línguas muito distintas das do grupo tupi, que habitavam acima do rio Itapemirim e na baía da Guanabara em direção ao sul. A economia praticada por eles era de subsistência, retirando-se da natureza o suficiente para viver. Tudo indica que esses povos conheciam a agricultura, mas não a praticavam por ser desnecessária. Conheciam a cerâmica e a praticavam. Pelo menos duas aldeias foram encontradas pelos Sete Capitães, que iniciaram a colonização da planície com a cana e o gado em 1627: uma na lagoa Feia e outra no cabo de São Tomé. Tratava-se da nação goitacá.
Na terceira década do século XVI, o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias. Coube a Pero de Góis a capitania de São Tomé, que abrangia toda a planície fluviomarinha e a zona serrana. Ele entrou no rio Paraíba à procura de um local para erguer um núcleo nos moldes europeus mas desistiu por razões não explicadas. Esse núcleo foi erguido na foz do rio Itabapoana, ao norte, em áreas de tabuleiros. A experiência colonizadora em moldes europeus durou entre 1539 a 1546.
No século XVII, relata-se que pescadores vindos de Cabo Frio em 1622, instalaram-se em Atafona. Dez anos depois, sete fidalgos requereram sesmarias (terras) entre a foz do rio Macaé e rio Iguaçu. São João da Barra e Campos começam com esses pioneiros.

Urbanização

O processo de urbanização começou no século XVII. São João da Barra (que tinha outro nome) e Campos foram os dois primeiros núcleos urbanos, elevados à condição de vila em 1677. Esse processo começou na restinga e seguiu o rio Paraíba do Sul e o córrego do Cula, que nascia na margem direita do grande rio e rumava para a baixada. O mais ativo caminho da colonização estendia-se de Santo Amaro a Campos. Pelo rio Paraíba do Sul, navegavam vapores de grande porte entre a foz e Campos, podendo chegar ao último desnível do rio, onde se instalará São Fidélis, e ao último desnível do afluente Muriaé, onde será fundado o núcleo de Cachoeiro do Muriaé, hoje Cardoso Moreira.
O processo de urbanização ganhou as margens da lagoa Feia. O maior terreno de restinga situa-se na margem esquerda do rio Paraíba do Sul. Ele foi escassamente povoado. Na margem direita, o eixo formado pelo antigo rio Água Preta, na verdade um defluente do rio Paraíba do Sul, foi urbanizado no século XX, praticamente todo ele em área de restinga. Pipeiras, Quixaba, Marrecas, Açu, Palacete, Barra do Jacaré são alguns núcleos. Junto à foz do Paraíba do Sul, ergueram-se os conhecidos núcleos de Atafona e de Gargaú. Mais acima, Sossego e Guaxindiba, hoje unidos num só núcleo, assim como Atafona e Gruçaí.

Cultura

Alberto Ribeiro Lamego criou uma forte oposição entre a parte aluvial e a parte arenosa da Planície dos Goytacazes nos seus livros “O homem e o brejo” (1945) e o “O homem e a restinga” (1946). Teoricamente transitando entre o determinismo e o possibilismo geográfico, ele sustentou que o ambiente do brejo estimula a criatividade e o desenvolvimento humano, não importa de que etnia seja o grupo. Os nativos que habitavam o brejo eram empreendedores. Suas moradas mostram seu desenvolvimento. Elas eram construídas sobre estacas feitas com um só tronco de árvore dentro de lagoas. A finalidade era a defesa. Como, sobre essas estacas, só era possível construir uma habitação pequena, seu interior só podia ser habitado por poucas pessoas. Nasceu, assim, antes dos europeus, a família nuclear, formada por casal e filhos. Desta forma, o colonizador europeu encontrou entre os nativos um ponto em comum: a família.
Acontece que a arqueologia vem mostrando que o padrão de assentamento dos goitacases seguia o padrão geral de habitação de outros povos indígenas: casas coletivas. Lamego tomou um depoimento fantasioso como sendo real para construir a vida social do nativo do brejo.
Por outro lado, ainda segundo Lamego, a restinga não era um ambiente estimulante. Ao contrário, ele induzia à acomodação e à preguiça, independentemente do povo que nela se instalasse. Nativos ou estrangeiros que se fixassem na restinga tornavam-se indolentes. O botânico campista Alberto José de Sampaio foi mais longe: mostrou que, mesmo as plantas de restinga, apresentam aspecto teratológico.
Essa explicação não mais se sustenta. Originalmente, o meio natural da restinga favorece a pesca de águas interiores e de mar. O pescador é conhecido como muxuango, correspondente ao caiçara do sudeste e sul do Brasil. O pescador e o marisqueiro praticam atividades que requerem esforço. O muxuango é pintado como uma pessoa de pele clara, aloirada e sujeita a câncer dermatológico por estar exposto por muito tempo ao sol e ao sal.
De tal maneira a restinga sofria preconceito que Lamego propunha a sua transformação em brejo por um longo processo de transformação ambiental. No entanto, a cana e algumas usinas entraram na restinga. Evidentemente que são dois ambientes diferentes, mas que não aprisionam ou libertam o ser humano. O solo do brejo é mais propício à cana, mas ela pode também ser cultivada na restinga.
Além da pesca, a restinga permitiu o cultivo da mandioca, do abacaxi e de frutas (geralmente colhidas em seu ambiente nativo). Essas atividades propiciaram o desenvolvimento de culturas distintas. Talvez um certo isolamento das comunidades da restinga permitiram a configuração de aspectos culturais locais distintos, como o casamento por sequestro na ilha da Convivência, hoje não mais existente; a famosa feira de Gargaú, as manifestações culturais populares registradas por Maria Rita Lubatti. Quanto ao linguajar dos pescadores, existe volumosa tese. Atafona foi um balneário elegante entre 1930 e 1970. A erosão costeira derrubou muitas casas e a praia perdeu o charme que a tornou famosa. Esse charme rendeu livros. Cumpre ainda registrar o trabalho de João Oscar sobre São João da Barra, sede do único município regional inteiramente assentado sobre a restinga. Cabe o registro sobre o romance “Mangue” (1981), de autoria de Osório Peixoto Silva e ambientado na ilha do Pessanha.

Museu da restinga
Conhecer toda a restinga do Paraíba do Sul em suas duas margens exige tempo e atenção. Sua formação geológica, vegetação e fauna nativas, povos indígenas que a habitaram, sítios arqueológicos por eles deixados, marcos portugueses antigos, como os encontrados na lagoa do Açu (hoje Parque Estadual da Lagoa do Açu), processo de colonização, povos negros trazidos como escravos para esta parte do Brasil, ação dos religiosos na catequese, cultura desenvolvida por pescadores, coletores de crustáceos, pequenos lavradores, artesãos, urbanização, cultura política etc. poderiam ser conhecidas por interessados com pouco tempo ou que pretendem se dedicar à pesquisa com um museu destinado à restinga.
Não seria um museu municipal, mas intermunicipal, abrangendo os municípios de São João da Barra, São Francisco de Itabapoana e Campos dos Goytacazes. A meu ver, o local mais indicado seria a cidade de São João da Barra, sede do município de mesmo nome que se situa inteiramente sobre a restinga. O poder público de cada município contribuiria com recursos financeiros, podendo-se recorrer à iniciativa privada e a instituições estaduais e federais de fomento, além de outras fontes.
Não seria um museu convencional, mas sim um museu enciclopédico, articulado e remissivo. Enciclopédico por contemplar todas as dimensões da restinga, não se restringindo a um único tema. Articulado por articular cada área do conhecimento de forma a permitir ao visitante uma visão de conjunto. Não um amontoado de informações e objetos que mais desinforma que informa. Remissivo, pois remeteria o visitante para o espaço externo por meio de excursões aos pontos mais e menos conhecidos da restinga. O visitante faria sua escolha. Seria, enfim, um ecomuseu.

*Professor, historiador e ambientalista

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