Folha Letras - Línguas raianas (Portugal e Espanha)
* Arthur Soffiati - Atualizado em 21/08/2024 14:25
Reprodução
*Arthur Soffiati
A Fronteira entre Portugal e Espanha é conhecida como A Raia. Daí raiano. É a mais antiga da Europa. Data do tempo em que Portugal se resumia ao Condado Portucalense, enquanto que a Espanha estava dividida em reinos. A definição tornou-se mais clara em 12 de setembro de 1297, quando foi assinado o Tratado de Alcanizes entre Portugal e Castela para evitar conflitos entre os dois reinos, ambos em guerra contra os mouros. Essa fronteira se estende do rio Minho, no norte, até a foz do rio Guadiana, no extremo sul dos dois países. Atualmente, o Acordo de Schengen, de 1995, permite a livre circulação de pessoas de um para outro país.
Reprodução

Cabe destacar a importância de D. Dinis nesse tratado e na história de Portugal. Ele e Fernando IV, rei de Castela, assinaram o acordo. Mesmo assim, a tensão entre os dois países continuou. Houve incursões militares de ambos os lados. Mas o tratado acabou sendo respeitado em suas linhas gerais. Os dois países arrolaram as localidades de cada um dos dois lados. Os casamentos de D. Constança com D. Fernando IV e de D. Afonso com D. Beatriz fortaleceram o Tratado de Alcanizes.

A fronteira foi fortificada por castelos de ambos os lados. A presença de D. Dinis é marcante ao longo dela. Fronteiras costumam ensejar diversidade e encontros culturais. Poucos atentam para as fronteiras do Brasil com países hispano-americanos. Restringindo-nos à língua, o uso do portunhol nessas fronteiras é frequente. Entre Espanha e Portugal, acontece o mesmo.

No norte de Portugal, encontra-se, na fronteira com Espanha, a aldeia de Rio de Onor (em leonês, Ruidenore; em castelhano, Rihonor de Castilla). Ela tem uma parte em Portugal e outra na Espanha. A parte portuguesa pertence ao município de Bragança. O pequeno rio de Onor separa o lado português do espanhol, como na aldeia de Marco, ao sul dos dois países. As línguas oficiais são o português, no lado de Portugal, e o espanhol, no lado da Espanha, mas a população ainda fala um dialeto asturo-leonês quase extinto.

Ao possível leitor, um exemplo do dialeto rionorês, seguido de tradução.
“Un tal Miguel ficou de piquenu sin pai e a mai, marota, terminou-se di cassar cun al tiu Domingo Tano. I iê1 iera mau i batia-le al rapace i bateu-le na cabeça. Que iê de piquenu iera listu i cun as porradas que le dou na cabeça pusu-se tonto. I aspois tinha outro irmau qui le tchamaban Ougéniu, cassou-se cua fia dal tiu Baltazar, a tia Clementina. I despois al tiu Baltazar era mal criau i al tal Miguel nou le deixaba comer. I un dia, fonun à missa i iera al dia de benecir al pan. I al tal tiu Baltazar amanhou al pindon i dixu: ‘Rapaces iou bou hasta cassa inquantu bos bades a benecir al pan’. I bienu introu para cassa. I aquiê1 iê al dia de comer las magras, i el dixu al Miguel: — ‘Tu bê-las mas nun nas comes’, i nun staba ua alma no lugar.”

Em português:
“Miguel ficou órfão em criança. A mãe, má, acabou por casar com o tio Domingos Tano. Este era mau, batia no rapaz e um dia bateu-lhe na cabeça. Em criança Miguel era esperto, mas com as pancadas que levou na cabeça pôs-se tonto. Ele tinha outro irmão a quem chamavam Eugênio, que casou com a filha do tio Baltazar – a Clementina. Este tio Baltazar era mal-educado e não deixava comer o Miguel, porque não gostava dele. No um foram todos à missa e era também o dia de benzer o pão. O tio Baltazar arranjou o pendão e disse: – ‘Rapazes, eu vou até a casa enquanto vocês vão benzer o pão’. Veio e entrou para casa comer presunto (magras de presunto) e ele disse para o Miguel: – “Tu o vê mas não o comes”. Não estava ninguém junto deles, naquele lugar.”

Entrar em Rio de Onor é como mergulhar num passado longínquo. Espanhóis têm terras do lado português e portugueses têm terras do lado espanhol. Os pastos são comunitários. As casas, construídas com pedras, costumam ter dois andares. Na parte de baixo, fica o gado. A parte de cima é habitada por pessoas. A economia é comunitária. Com o mundo digital, a aldeia está perdendo suas características. Em busca do exótico, os turistas exigem delas equipamentos modernos. Fiquei devendo uma visita não turística a Rio do Onor, embora passando muito perto de lá.

No norte de Portugal, na região de Trás-os-Montes, fronteira com a Espanha, fala-se, na intimidade, o mirandês, a segunda língua oficial de Portugal. Na medida em que ela é também escrita, foi mais fácil oficializá-la. Inclusive é ensinada nas escolas do norte do país como disciplina optativa.

Existem dicionário, contos, romances e poesia em mirandês. Quem poderia compreender um poema como este, que abre o livro “Nun riu de lírios”, de Adelaide Monteiro?
“Bem cun pies i manos de seda,/cumo la prainada, cumo l riu, cumo l’auga a smerujar/ne l pelo de ls rechinos d’Agosto. Que nun/haba truonos a atelundar, nun se déia l causo/ de m’assustar i grima me benga mirar.”

Traduzindo para o português:
“Vem com pés de lã e mãos de seda,/como a planície, como o rio, como a água a merujar/no cabelo dos picos de calor de Agosto. Que não haja trovões a atordoar, não vá dar-se o caso/de os meus olhos se assustarem e secura entre ao olhar.”

Na parte central da fronteira raiana, no lado português, estende-se a região de Ribacoa(literalmente “ margem do rio Coa). Ela se situa entre os rios Coa e Águeda. A região foi disputada por Portugal e Castela. O famoso tratado de Alcanizes definiu a fronteira, estabelecendo-a no rio Águeda. O rio Coa passou para o lado português, assim como castelos e fortalezas.

Também a língua tradicional, falada na região, é latina, mas distinta do português e do espanhol. Chama-se a atenção para os vocábulos empregados. O viajante interessado em conhecer a língua regional terá dificuldades, pois ela é mais reservada para a intimidade do lar. No espaço público, o português domina.
Do lado espanhol, nas proximidades de La Raia, situam-se Valverde de Fresno, Elhas e San Martin de Trevejo, aldeias conhecidas em seu conjunto como o nome de Três Lugares. Ergueram-se na Estremadura, do lado da Espanha, mas perto de Portugal. No conjunto, a língua típica dessas aldeias é conhecida como fala de Xálima. Trata-se de uma variedade linguística do galaico-português ainda usada por cerca de dez mil pessoas. Três Lugares situam-se na província de Cáceres, Espanha, no vale do rio Ellas.

Os moradores de cada aldeia pleiteiam diferenças entre as línguas faladas em cada uma, embora muito semelhantes. O manhego (mañegu, no original) é falado em San Martin de Trevejo; o valverdeiro (valverdeiru), falado em Valverde de Fresno e o lagarteiro (lagarteiru) falado nas Elhas. Especialistas observam a forte relação entre estas falas e o dialeto falado em Sabugal, em Portugal, também na rica fronteira da Raia.

Existem estudiosos propondo ortografia para as três falas, a fim de que elas se tornem oficiais. Para exemplificar as semelhanças e diferenças entre as três, tomemos o ditado “De fazer o bem, não temos de nos cansar jamais; já chegará o dia em que recolheremos o que semeamos.” Em galego, escreve-se assim: “De facer o ben, non temos de nos cansar xamais; xa chegará o día en que recolleremos o que semeamos”. O português deriva do galego. Parece não haver, para os usuários do português, dificuldade em compreender o galego. Mas passemos o ditado para o xalimego, que reúne, até o momento, os dialetos falados nos Três Lugares. Este é o resultado: “De fel u ben, nun temus que sansalmus nunca; ya chegará u día que arrecollamus u que hemus sembráu”. A compreensão torna-se mais difícil.

Perto de Coimbra, fica a vila de Minde. Lá, desenvolveu-se o minderico ou piação dos charales do Ninhou (língua dos habitantes de Minde). Trata-se de variante de língua falada em Minde desde o século XVIII. No início, essa variante funcionava como código conhecido apenas pelos fabricantes e comerciantes das mantas da vila. Utilizada apenas por um grupo restrito, era considerada um socioleto.

De restrita a um grupo profissional, ela ganhou a população da vila. O dialeto está hoje ameaçado de extinção. Aliás, todas elas sofrem a mesma ameaça diante da língua oficial maior de cada país e do inglês, a língua da globalização. De fato, as palavras usadas em minderico parecem inventadas. Abobrar é descansar; alexandrina é fotografia; ambrosiar significa pensar, cismar, achar; Albertina corresponde a bolacha; badelo é língua; borboleta é luz; brancano indica leite; bruxo, para computador, parece palavra bem acertada; carranchano é amigo; latina é missa; neto é dinheiro; piação é conversa; rodilha é sogra; senhor antónio significa marido traído; tece-tece é internet.

Seguindo A Raia em direção ao sul, encontramos a vila de Barrancos. Lá também desenvolveu-se uma língua própria em que elementos portugueses e espanhóis estão presentes. O primeiro estudioso a dar-lhe mais atenção foi José Leite de Vasconcellos, que lhe dedicou o livro “Filologia barranquenha” (Lisboa: Imprensa Nacional, 1955). Pleiteia-se que o Barranquenho seja reconhecido como a terceira língua oficial de Portugal.

Algumas expressões populares mostram as semelhanças e as diferenças entre o barranquenho, o português e o espanhol: “Quasi que mê caio” (Por pouco não caí); “Não dô abádo a tanta coisa” (Não consigo fazer tanta coisa); c) “Belá a bê si tá chobendo” (Vê lá se está chovendo) d) “Eu moro em compáh de minha mãe” (Eu moro perto da minha mãe); e) “Ontem íam os doih bêbadoh um em compáh do outro” (Ontem iam os dois bêbados juntos um do outro) f) “É a cara do pai em táto!” (É tal e qual a cara do pai!) g) “Si ao caso bô ao baili, logo tê digo” (Se por acaso for ao baile, eu te digo) h) “Alto será qu´o João bênha!” (Não sei se o João virá!) i) “Aniguá quê não podia i ao médico e foi ao café!” (Não podia ir ao médico, mas foi ao café!).

Em minha viagem à Península Ibérica, em junho de 2024, planejei visitar Barrancos, San Martin de Trevejo, Elhas, Valverde de Fresno, Sabugal e Mirando do Douro. Cheguei a Barrancos a partir de Beja. Apenas um ônibus por dia até Moura. Daí, também apenas um ônibus por dia até Barrancos. Cheguei numa quinta-feira de manhã e percorri a vila numa tarde, aproveitando os longos dias claros. Visitei o museu e o centro de turismo. O museu é pequeno, mas bem organizado. Uma moça me guiou e me deu explicações. No centro de turismo, encontrei apenas um livro sobre o castelo de Noudar, há 17 quilômetros da vila. Minha biblioteca é mais rica que os livros disponíveis em Barrancos. Não pude visitar o castelo de Noudar, um dos muitos construídos na Raia. Tive de voltar na sexta-feira, pois não há ônibus nos fins de semana.

Retornando a Beja, voltei a Évora no dia seguinte, onde novamente dormi para embarcar para Cáceres. Foi então que os aplicativos do meu celular misteriosamente desapareceram. Pernoitei em Cáceres com o fim de embarcar para Três Lugares no dia seguinte. De lá, eu pretendia passar por Sabugal em direção a Coimbra. Tive problemas na compra de passagens em Cáceres e Badajoz. Nenhuma bilheteria aberta. Tudo feito pela internet. Fui salvo por um motorista brasileiro que dirigia o ônibus Madri-Lisboa.

Parti de Lisboa para Miranda do Douro às 11 da manhã. Viajei sete horas com baldeação em Bragança. Rio Onor fica perto de Bragança, mas eu tinha hotel reservado, assim como em San Martin de Trevejo, que não pude visitar. A proprietária se mostrou muito gentil, mas não foi possível. De Bragança a Miranda, viajavam apenas três passageiros. No trajeto, pensei em todos aqueles que me disseram não valer a pena ir tão longe para ver tão pouco. Mas Miranda, em Trás-os Montes, encantou-me. Dois dias depois, retornei com escala em Coimbra. Daí, meus planos incluíam Penacova, Minde e Leiria. Minha agenda estava apertada. Só tive tempo de visitar Figueira da Foz e Tomar.

*Professor, historiador, ambientalista, escritor e membro da Academia Campista de Letras

ÚLTIMAS NOTÍCIAS