Folha Letras - Ilha de Ons
Nasci em Pontevedra, nesta mesma casa em que vivo até hoje. Das suas janelas frontais, posso admirar as belezas da ria. Das janelas laterais, vejo o rio Lérez em sua margem esquerda. Com meu pai, eu pesquei no rio e na ria quando era criança e adolescente. Ele tinha um veleiro de um mastro. Velejamos várias vezes dentro da ria. Algumas vezes, saímos para mar aberto, circundando a ilha de Ons e avançando mar adentro além do oeste da ilha. Aos poucos, fui aprendendo a velejar.
Meu pai deixou o veleiro de herança para mim. Passei a velejar sozinho. Fiquei alguns dias no mar pescando. Ao voltar para casa, o veleiro ficava numa das várias marinas existentes na ria. Há quem pense, aqui mesmo em Pontevedra, que a foz do rio Lérez é a boca da ria. Em Lisboa também acontece isso. A cidade se ergueu às margens de uma ria em que desemboca o rio Tejo. Não sei se por desconhecimento ou por orgulho nacional, os portugueses afirmam que o estuário do Tejo é a ria, como se o rio desembocasse diretamente em mar aberto. Também noto esse orgulho em Pontevedra. O território galego tem várias reentrâncias do litoral como se fossem baías. A elas damos o nome de rias. Elas não são extensões dos rios, mas apenas receptáculos deles.
Divago. O que desejo deixar escrito para meu irmão, sobrinhos e cunhada é que quase morri numa das minhas pescarias. Eles já sabem disso, pois lhes relatei o ocorrido tão logo pude. Mas sei que, se eu morrer subitamente nesta casa enorme, os vizinhos já sabem a quem avisar além das autoridades. E sabem também que deixo estas notas em lugar acessível. Um amigo meu, também velejador, morreu de
infarto fulminante. Encontraram seu corpo só dois dias após sua morte. Espero que isso não aconteça comigo, pois desejo viver muito e morrer entre pessoas queridas. Mas nunca se sabe...
Tenho levado Corina nas minhas saídas com o veleiro. Cuido da ração e da água dela, embora beba pouco. Sua companhia tem sido ótima para mim. Corina parece uma amiga íntima. Ela já teve três ninhadas de filhotes e se revelou ótima mãe. Eu diria que é também excelente companheira. Fico impressionado com sua serenidade. Ela passa horas com as patinhas da frente viradas para dentro e os
olhos cerrados em profunda meditação. Se chego perto, ela apenas levanta as pálpebras e me olha com placidez. Ouço então o seu contínuo ronronar.
Ficamos dentro da ria ou ganhamos o mar até a ilha de Ons em sua face voltada para Pontevedra, onde a costa é baixa, formando praias, lugares acessíveis a desembarques e povoados. A costa externa da ilha, voltada para o oceano Atlântico, é escarpada, com poucas praias e muitos afloramentos rochosos dentro
do mar. É preciso conhecer esse trecho para navegá-lo bem. Já estou acostumado a velejar sozinho e a passar alguns dias em alto mar pescando. Sempre em companhia de Corina. Alimento-a com peixes que não aproveitarei na minha própria alimentação. Pesco pouco. Tenho devolvido muitos peixes ao mar. Fico apenas com peixes nobres suficientes para mim e peixes mais comuns para Corina. Não quero
ser parte dos problemas ambientais atuais, embora nossa pegada ecológica seja pesada, por mais consciência que tenhamos.
Já enfrentei algumas tempestades nas minhas navegações. Tenho me saído com galhardia delas. Não devo me gabar porque navegadores com alguma experiência atravessam bem essas tempestades. Ainda mais hoje, em que as previsões meteorológicas tornaram-se muito sofisticadas. O bom navegador deve
consultar a previsão do tempo antes de sair para o mar. É o que fazem os pescadores artesanais e profissionais. É o que devem fazer os pescadores amadoristas.
Mas aquela tempestade no final do outono foi assustadora e quase nos matou - a mim e à Corina. Foi um fenômeno imprevisível. Ao sair, consultei o serviço meteorológico. Encontrei apenas o anúncio de borrasca superficial. Era possível enfrentá-la com tranquilidade. Saí da ria, ganhei a costa ocidental da ilha de Ons e enfrentei a tempestade mais terrível da minha vida de navegante amador. Parece que ingressamos numa era de imprevisibilidade. Uma tempestade daquela não costuma acontecer no outono. Como de costume sozinho com Corina, tentei enfrentar a tempestade com meu veleiro e minha experiência.
Não consegui controlar o timão. O veleiro se chocou contra um escolho, provocando um rompimento no casco. O mastro quebrou. Foi um estrondo horrível. Não sei se ele, um pedaço dele ou outro fragmento caiu no meu pé e o fraturou. Fratura exposta. Um osso veio à superfície. Dizem que o pé é a parte do corpo que tem o maior número de ossos diferenciados. E pequenos, de um alto refinamento de
especialização. Mas não era hora de pensar na anatomia humana. Arrastei-me até um pano e envolvi meu pé para controlar o sangue. Eu não sabia se uma artéria tinha se rompido. Sei apenas que vertia muito sangue. Eu não conseguia andar. Alcancei a mochila em que guardo a ração de Corina e as ferramentas de primeira necessidade.
Consegui me apoiar no pé esquerdo, que não havia sido atingido. Segurei o timão e lancei o veleiro em direção à praia das Fontiñas, pouco abaixo da Ponta de Xubenco. É uma praia diminuta. Na verdade, um estreita faixa de areia e pedras no sentido lateral e longitudinal. O veleiro encalhou a proa na areia, enquanto que a popa oscilava de um lado para outro. Parece que o furo ocorreu na parte da frente
da embarcação. Chamei Corina. Ela logo apareceu. Arrastei-me até a proa. Minha experiência mostrava que tínhamos pouco tempo para deixar o veleiro. Eu não podia simplesmente saltar do barco na areia da praia. Eu precisaria dos dois pés para um salto como este e só contava com um. Consegui arrastar um fragmento de madeira e improvisar uma espécies de prancha. Com dificuldade, consegui descer segurando Corina.
Na exígua praia, arrastei-me para perto da escarpa. O vento era forte. Chovia muito. Como eu previra, o veleiro foi arrastado e afundou aos poucos. Cuidei melhor do pé quebrado, imobilizando-o com as lascas da madeira que usei como ponte entre o veleiro e a praia. Amarrei a lasca no pano encharcado de sangue. Mesmo embaixo de chuva, mergulhei num sono profundo. Eu estava exausto. Não me
preocupei com Corina. Ela saberia o que fazer.
Quando acordei, a noite começava a chegar. O vento cessara. Uma chuva fina continuava a cair. Eu estava ensopado. Chamei por Corina. Ela não apareceu. Rasguei minha camisa e improvisei um curativo melhor para meu pé. Logo o pé direito. Era hora de pensar numa saída. Eu estava no lado deserto da ilha. Estive no lado povoado várias vezes. Não raramente, eu ia com Celsa a O Curro, aldeia mais
povoada da ilha. Lá existem vários restaurantes famosos, especializados em peixes e frutos do mar. Visitávamos também a igreja de San Xaquin. A população da ilha se reduz a umas 80 pessoas. Juntamente com a ilha de Ons, as ilhas Cíes,Sálvora e Cortegada formam o Parque Nacional das Ilhas Atlânticas da Galiza, o primeiro em território galego da Espanha. Foi uma medida boa para proteger a natureza espetacular dessas ilhas, mas também afastou a população, que se reduz mais ainda no outono-inverno. E eu estou aqui com Corina numa praia deserta de Ons com o pé quebrado. Nem tentar alcançar o outro lado da ilha caminhando pelas pedras eu consigo.
Eu poderia resistir por uns cinco dias naquela pequena praia com Corina. Havia água doce nas cavidades das pedras. Mas ela acabaria logo. Muitas aves grandes e aves migratórias pequenas e nenhuma fonte de alimentação. Ainda bem que não estávamos no verão. O sol do outono é brando. Mas o problema é o frio.
Sei que no topo dessa ilha alcantilada existem estradas por onde eventualmente circulam pessoas. Mas eu não vou ficar aqui nesta praia gritando para o alto à espera de que alguém me ouça e me salve. A concorrência com o estrondo das ondas é desleal.
Acho que eu e Corina morreremos de fome, esquecidos nesta pequena praia de As Fontiñas. Esse nome é sintomático. A ilha não tem cursos d’água, mas tem fontes, como nas ilhas da Madeira e Açores. A precipitação pluviométrica na ilha é alta. Se bem me lembro, algo em torno de 1.200 m. por ano. A água percola e vem para a base da ilha, onde aflora em vários pontos. Creio que um dos pontos é aqui
nessa praia.
Dormi novamente e acordei com algo parecido com uma lixa esfregando meu corpo. Era Corina, que lambia minhas feridas. Ela costuma fazer isso em mim como forma de carinho. Eu não a rechaçava. Pensei que a língua dela poderia infeccionar meu organismo, mas deixei que ela continuasse. Aquele gesto carinhoso me acalmava. De repente, algo lhe chamou a atenção e ela saiu correndo. Logo depois,
retornou tranquilamente com uma ave migratória na boca. Estava morta. Ela a depositou do meu lado.
Não era a primeira vez que Corina caçava uma ave ou um rato e levava para mim. Eu zangava com ela como se a gata fosse abdicar de seu instinto para atender a meu apelo ético. Um médico veterinário, creio eu, explicou-me certa vez que as fêmeas felinas são as caçadoras do grupo que integram, levando comida para casa. Desta vez, agradeci Corina pela atenção. Na minha mochila, havia um canivete que
me permitiu depenar a ave, abrir seu ventre, retirar as entranhas e comer sua carne mesmo crua. Era uma questão de sobrevivência. Ainda havia ração para Corina e água doce nas cavidades pedregosas. Talvez eu encontrasse alguma fonte de água naquela pequena praia.
Eu não conseguia ver o farol no Alto do Cucorno. Não havia clima para pensar na rica e antiga história da ilha. Diariamente, eu gritava por socorro, esperando que alguém me ouvisse. Algum andarilho que passasse por um dos caminhos no topo da ilha. Era um esforço inútil. Não aparecia ninguém. Corina, por
sua vez, continuava a lamber minhas feridas. E eu permitia, pensando que ambos morreríamos ou pelo menos eu, pois ela caçava quase que diariamente, repartindo o alimento comigo. Engana-se quem reduz os felinos a apenas instinto. Eles são inteligentes. Corina, por exemplo, descobriu sozinha como abrir portas. Ela saltava até atingir a maçaneta e puxá-la para baixo. Ninguém lhe ensinou esse truque. Ela
fez a descoberta por conta própria.
Eu continuava gritando sem ser ouvido por ninguém. Talvez não houvesse coincidência entre meus gritos e a passagem de alguém no alto da ilha. Talvez o som não chegasse aos ouvidos de um possível passante. Mas a esperança apareceu no quinto dia. Um barco de pesca passou ao largo da praia de As
Fontiñas. Eu gritei e acenei com o pano usado para estancar o sangue no meu pé. Rezei para que me vissem e ouvissem. Deu certo. Do barco, me acenaram. Como chegar até a praia? Os pescadores tinham um bote salva-vidas. Desembarcaram na praia. Minha vontade era abraçá-los, beijá-los. Contei rapidamente o que havia acontecido comigo. Dois deles improvisaram uma cadeira com os braços e me
ergueram para me conduzir ao bote. Lembrei que Corina não podia ser abandonada. Afinal, se não fosse ela, minha sorte seria outra e bem pior. Mas a gata havia se escondido com a presença de estranhos. Chamei-a demoradamente até que ela saiu de um pequeno buraco na pedra. Pedi aos pescadores para me colocar novamente na areia até que ela viesse a mim e eu pudesse apanhá-la. Mesmo assim, a gata teve medo diante dos estranhos. De novo, fomos para o bote e para o barco.
Eu e Corina estávamos salvos. O mundo era maravilhoso. Chegando a Pontevedra, os pescadores chamaram uma ambulância. Fomos notícia em todos os jornais da cidade. “Náufrago salvo por gata” foi a principal manchete. No hospital, os médicos concluíram que era preciso fazer um procedimento corretivo no meu pé para colocar o osso quebrado no lugar e engessá-lo. Admiraram-se de não haver nenhuma infecção causada pelos ferimentos. Contei que Corina havia lambido minhas feridas. Eles concluíram que a língua áspera da gata e sua saliva deveriam ter me causado infeção, mas um deles ponderou que os animais tratam seus machucados lambendo-os. Havia na saliva deles uma espécie de substância
antibiótica talvez.
Não foi necessário eu ser internado. Ao chegar em minha casa, louvei aquele templo, prometendo nunca mais navegar. Eu não tinha mais meu veleiro, mas sabia que estava mentindo para mim mesmo. Eu acabaria comprando outro barco e saindo para o mar com Corina. Essa gata sempre estaria em minha companhia. Liguei para meu irmão em Vigo e contei toda a história superficialmente. No dia seguinte, ele, a mulher e os filhos foram me visitar.
Redijo este pequeno relato para que um amigo ou conhecido ou mesmo as autoridades saibam um pouco de mim. Estou com 59 anos de idade. Tenho um irmão dois anos mais novo do que eu, dois sobrinhos já adultos mas ainda solteiros. E minha cunhada. Mais ninguém. Meus pais morreram. Fui casado com Celsa, que também morreu com câncer de mama. Ela era estéril. Não tivemos filhos, embora nós desejássemos muito ter descendentes. Apenas Corina, uma gata perfeita, me faz companhia. Ela nasceu numa ninhada de oito filhotes. Ninguém a queria por ser fêmea. Eu tive pena daquela gatinha e a peguei para criar. Fui muito feliz nesse gesto. Corina é como a filha ou o filho que nunca tive.
Nasci em Pontevedra, nesta mesma casa em que vivo até hoje. Das suas janelas frontais, posso admirar as belezas da ria. Das janelas laterais, vejo o rio Lérez em sua margem esquerda. Com meu pai, eu pesquei no rio e na ria quando era criança e adolescente. Ele tinha um veleiro de um mastro. Velejamos várias vezes dentro da ria. Algumas vezes, saímos para mar aberto, circundando a ilha de Ons e avançando mar adentro além do oeste da ilha. Aos poucos, fui aprendendo a velejar.
Meu pai deixou o veleiro de herança para mim. Passei a velejar sozinho. Fiquei alguns dias no mar pescando. Ao voltar para casa, o veleiro ficava numa das várias marinas existentes na ria. Há quem pense, aqui mesmo em Pontevedra, que a foz do rio Lérez é a boca da ria. Em Lisboa também acontece isso. A cidade se ergueu às margens de uma ria em que desemboca o rio Tejo. Não sei se por desconhecimento ou por orgulho nacional, os portugueses afirmam que o estuário do Tejo é a ria, como se o rio desembocasse diretamente em mar aberto. Também noto esse orgulho em Pontevedra. O território galego tem várias reentrâncias do litoral como se fossem baías. A elas damos o nome de rias. Elas não são extensões dos rios, mas apenas receptáculos deles.
Divago. O que desejo deixar escrito para meu irmão, sobrinhos e cunhada é que quase morri numa das minhas pescarias. Eles já sabem disso, pois lhes relatei o ocorrido tão logo pude. Mas sei que, se eu morrer subitamente nesta casa enorme, os vizinhos já sabem a quem avisar além das autoridades. E sabem também que deixo estas notas em lugar acessível. Um amigo meu, também velejador, morreu de
infarto fulminante. Encontraram seu corpo só dois dias após sua morte. Espero que isso não aconteça comigo, pois desejo viver muito e morrer entre pessoas queridas. Mas nunca se sabe...
Tenho levado Corina nas minhas saídas com o veleiro. Cuido da ração e da água dela, embora beba pouco. Sua companhia tem sido ótima para mim. Corina parece uma amiga íntima. Ela já teve três ninhadas de filhotes e se revelou ótima mãe. Eu diria que é também excelente companheira. Fico impressionado com sua serenidade. Ela passa horas com as patinhas da frente viradas para dentro e os
olhos cerrados em profunda meditação. Se chego perto, ela apenas levanta as pálpebras e me olha com placidez. Ouço então o seu contínuo ronronar.
Ficamos dentro da ria ou ganhamos o mar até a ilha de Ons em sua face voltada para Pontevedra, onde a costa é baixa, formando praias, lugares acessíveis a desembarques e povoados. A costa externa da ilha, voltada para o oceano Atlântico, é escarpada, com poucas praias e muitos afloramentos rochosos dentro
do mar. É preciso conhecer esse trecho para navegá-lo bem. Já estou acostumado a velejar sozinho e a passar alguns dias em alto mar pescando. Sempre em companhia de Corina. Alimento-a com peixes que não aproveitarei na minha própria alimentação. Pesco pouco. Tenho devolvido muitos peixes ao mar. Fico apenas com peixes nobres suficientes para mim e peixes mais comuns para Corina. Não quero
ser parte dos problemas ambientais atuais, embora nossa pegada ecológica seja pesada, por mais consciência que tenhamos.
Já enfrentei algumas tempestades nas minhas navegações. Tenho me saído com galhardia delas. Não devo me gabar porque navegadores com alguma experiência atravessam bem essas tempestades. Ainda mais hoje, em que as previsões meteorológicas tornaram-se muito sofisticadas. O bom navegador deve
consultar a previsão do tempo antes de sair para o mar. É o que fazem os pescadores artesanais e profissionais. É o que devem fazer os pescadores amadoristas.
Mas aquela tempestade no final do outono foi assustadora e quase nos matou - a mim e à Corina. Foi um fenômeno imprevisível. Ao sair, consultei o serviço meteorológico. Encontrei apenas o anúncio de borrasca superficial. Era possível enfrentá-la com tranquilidade. Saí da ria, ganhei a costa ocidental da ilha de Ons e enfrentei a tempestade mais terrível da minha vida de navegante amador. Parece que ingressamos numa era de imprevisibilidade. Uma tempestade daquela não costuma acontecer no outono. Como de costume sozinho com Corina, tentei enfrentar a tempestade com meu veleiro e minha experiência.
Não consegui controlar o timão. O veleiro se chocou contra um escolho, provocando um rompimento no casco. O mastro quebrou. Foi um estrondo horrível. Não sei se ele, um pedaço dele ou outro fragmento caiu no meu pé e o fraturou. Fratura exposta. Um osso veio à superfície. Dizem que o pé é a parte do corpo que tem o maior número de ossos diferenciados. E pequenos, de um alto refinamento de
especialização. Mas não era hora de pensar na anatomia humana. Arrastei-me até um pano e envolvi meu pé para controlar o sangue. Eu não sabia se uma artéria tinha se rompido. Sei apenas que vertia muito sangue. Eu não conseguia andar. Alcancei a mochila em que guardo a ração de Corina e as ferramentas de primeira necessidade.
Consegui me apoiar no pé esquerdo, que não havia sido atingido. Segurei o timão e lancei o veleiro em direção à praia das Fontiñas, pouco abaixo da Ponta de Xubenco. É uma praia diminuta. Na verdade, um estreita faixa de areia e pedras no sentido lateral e longitudinal. O veleiro encalhou a proa na areia, enquanto que a popa oscilava de um lado para outro. Parece que o furo ocorreu na parte da frente
da embarcação. Chamei Corina. Ela logo apareceu. Arrastei-me até a proa. Minha experiência mostrava que tínhamos pouco tempo para deixar o veleiro. Eu não podia simplesmente saltar do barco na areia da praia. Eu precisaria dos dois pés para um salto como este e só contava com um. Consegui arrastar um fragmento de madeira e improvisar uma espécies de prancha. Com dificuldade, consegui descer segurando Corina.
Na exígua praia, arrastei-me para perto da escarpa. O vento era forte. Chovia muito. Como eu previra, o veleiro foi arrastado e afundou aos poucos. Cuidei melhor do pé quebrado, imobilizando-o com as lascas da madeira que usei como ponte entre o veleiro e a praia. Amarrei a lasca no pano encharcado de sangue. Mesmo embaixo de chuva, mergulhei num sono profundo. Eu estava exausto. Não me
preocupei com Corina. Ela saberia o que fazer.
Quando acordei, a noite começava a chegar. O vento cessara. Uma chuva fina continuava a cair. Eu estava ensopado. Chamei por Corina. Ela não apareceu. Rasguei minha camisa e improvisei um curativo melhor para meu pé. Logo o pé direito. Era hora de pensar numa saída. Eu estava no lado deserto da ilha. Estive no lado povoado várias vezes. Não raramente, eu ia com Celsa a O Curro, aldeia mais
povoada da ilha. Lá existem vários restaurantes famosos, especializados em peixes e frutos do mar. Visitávamos também a igreja de San Xaquin. A população da ilha se reduz a umas 80 pessoas. Juntamente com a ilha de Ons, as ilhas Cíes,Sálvora e Cortegada formam o Parque Nacional das Ilhas Atlânticas da Galiza, o primeiro em território galego da Espanha. Foi uma medida boa para proteger a natureza espetacular dessas ilhas, mas também afastou a população, que se reduz mais ainda no outono-inverno. E eu estou aqui com Corina numa praia deserta de Ons com o pé quebrado. Nem tentar alcançar o outro lado da ilha caminhando pelas pedras eu consigo.
Eu poderia resistir por uns cinco dias naquela pequena praia com Corina. Havia água doce nas cavidades das pedras. Mas ela acabaria logo. Muitas aves grandes e aves migratórias pequenas e nenhuma fonte de alimentação. Ainda bem que não estávamos no verão. O sol do outono é brando. Mas o problema é o frio.
Sei que no topo dessa ilha alcantilada existem estradas por onde eventualmente circulam pessoas. Mas eu não vou ficar aqui nesta praia gritando para o alto à espera de que alguém me ouça e me salve. A concorrência com o estrondo das ondas é desleal.
Acho que eu e Corina morreremos de fome, esquecidos nesta pequena praia de As Fontiñas. Esse nome é sintomático. A ilha não tem cursos d’água, mas tem fontes, como nas ilhas da Madeira e Açores. A precipitação pluviométrica na ilha é alta. Se bem me lembro, algo em torno de 1.200 m. por ano. A água percola e vem para a base da ilha, onde aflora em vários pontos. Creio que um dos pontos é aqui
nessa praia.
Dormi novamente e acordei com algo parecido com uma lixa esfregando meu corpo. Era Corina, que lambia minhas feridas. Ela costuma fazer isso em mim como forma de carinho. Eu não a rechaçava. Pensei que a língua dela poderia infeccionar meu organismo, mas deixei que ela continuasse. Aquele gesto carinhoso me acalmava. De repente, algo lhe chamou a atenção e ela saiu correndo. Logo depois,
retornou tranquilamente com uma ave migratória na boca. Estava morta. Ela a depositou do meu lado.
Não era a primeira vez que Corina caçava uma ave ou um rato e levava para mim. Eu zangava com ela como se a gata fosse abdicar de seu instinto para atender a meu apelo ético. Um médico veterinário, creio eu, explicou-me certa vez que as fêmeas felinas são as caçadoras do grupo que integram, levando comida para casa. Desta vez, agradeci Corina pela atenção. Na minha mochila, havia um canivete que
me permitiu depenar a ave, abrir seu ventre, retirar as entranhas e comer sua carne mesmo crua. Era uma questão de sobrevivência. Ainda havia ração para Corina e água doce nas cavidades pedregosas. Talvez eu encontrasse alguma fonte de água naquela pequena praia.
Eu não conseguia ver o farol no Alto do Cucorno. Não havia clima para pensar na rica e antiga história da ilha. Diariamente, eu gritava por socorro, esperando que alguém me ouvisse. Algum andarilho que passasse por um dos caminhos no topo da ilha. Era um esforço inútil. Não aparecia ninguém. Corina, por
sua vez, continuava a lamber minhas feridas. E eu permitia, pensando que ambos morreríamos ou pelo menos eu, pois ela caçava quase que diariamente, repartindo o alimento comigo. Engana-se quem reduz os felinos a apenas instinto. Eles são inteligentes. Corina, por exemplo, descobriu sozinha como abrir portas. Ela saltava até atingir a maçaneta e puxá-la para baixo. Ninguém lhe ensinou esse truque. Ela
fez a descoberta por conta própria.
Mas nada disso vinha mais ao caso. Corina estava lambendo minhas feridas e caçando nosso alimento até que eu morresse de fome e de sede. Depois, ela jogaria areia em meu cadáver, tentando me enterrar, e buscaria um caminho para se salvar. Eu era grato a ela. Eu amava aquela gata gentil e fiel. Ela era mais carinhosa que um cão, com seu silêncio e delicadeza em tratar de mim.
Eu continuava gritando sem ser ouvido por ninguém. Talvez não houvesse coincidência entre meus gritos e a passagem de alguém no alto da ilha. Talvez o som não chegasse aos ouvidos de um possível passante. Mas a esperança apareceu no quinto dia. Um barco de pesca passou ao largo da praia de As
Fontiñas. Eu gritei e acenei com o pano usado para estancar o sangue no meu pé. Rezei para que me vissem e ouvissem. Deu certo. Do barco, me acenaram. Como chegar até a praia? Os pescadores tinham um bote salva-vidas. Desembarcaram na praia. Minha vontade era abraçá-los, beijá-los. Contei rapidamente o que havia acontecido comigo. Dois deles improvisaram uma cadeira com os braços e me
ergueram para me conduzir ao bote. Lembrei que Corina não podia ser abandonada. Afinal, se não fosse ela, minha sorte seria outra e bem pior. Mas a gata havia se escondido com a presença de estranhos. Chamei-a demoradamente até que ela saiu de um pequeno buraco na pedra. Pedi aos pescadores para me colocar novamente na areia até que ela viesse a mim e eu pudesse apanhá-la. Mesmo assim, a gata teve medo diante dos estranhos. De novo, fomos para o bote e para o barco.
Eu e Corina estávamos salvos. O mundo era maravilhoso. Chegando a Pontevedra, os pescadores chamaram uma ambulância. Fomos notícia em todos os jornais da cidade. “Náufrago salvo por gata” foi a principal manchete. No hospital, os médicos concluíram que era preciso fazer um procedimento corretivo no meu pé para colocar o osso quebrado no lugar e engessá-lo. Admiraram-se de não haver nenhuma infecção causada pelos ferimentos. Contei que Corina havia lambido minhas feridas. Eles concluíram que a língua áspera da gata e sua saliva deveriam ter me causado infeção, mas um deles ponderou que os animais tratam seus machucados lambendo-os. Havia na saliva deles uma espécie de substância
antibiótica talvez.
Não foi necessário eu ser internado. Ao chegar em minha casa, louvei aquele templo, prometendo nunca mais navegar. Eu não tinha mais meu veleiro, mas sabia que estava mentindo para mim mesmo. Eu acabaria comprando outro barco e saindo para o mar com Corina. Essa gata sempre estaria em minha companhia. Liguei para meu irmão em Vigo e contei toda a história superficialmente. No dia seguinte, ele, a mulher e os filhos foram me visitar.