A esquerda moribunda e o alambrado à direita
Roberto Dutra 22/04/2024 13:29 - Atualizado em 22/04/2024 13:36
A diferença entre esquerda e direita já foi declarada superada inúmeras vezes. A crise desta diferença política fundamental parece ter se tornado a própria normalidade. Não é uma crise da esquerda nem da direita isoladamente. É uma crise da própria diferença clássica da política moderna: o marcador semântico de distinções programáticas capazes de engajar maiorias de um lado e de outro torna-se uma diferença que quase já não faz diferença. Isto fica bem claro, por exemplo, na constatação de que não existem diferenças entre os governos Lula e Bolsonaro capazes de refazer a demarcação entre um programa de direita e outro de esquerda. No essencial, naquilo que importa para as maiorias, há mais semelhanças do que diferenças: as grandes questões nacionais que afetam maiorias continuam sem solução: primitivismo econômico, ameaças à soberania e à integridade nacional, política social que reproduz pobreza, serviços públicos de educação, saúde e segurança de baixa qualidade. Lula não tem, por exemplo, nenhum caminho concreto para tirar o Brasil da mediocridade econômica e as maiorias sociais da condição de beneficiários de transferências de renda para alçá-las ao papel de protagonistas de suas vidas e do país como um todo. Com uma política assistencialista mais bem avaliada pelo povão, Bolsonaro conseguiu abalar fortemente a popularidade de Lula entre os beneficiários e dependentes do Estado. A diferença entre os dois só pode ser traçada na dimensão moral. Na programática política concreta é uma diferença que quase já não faz diferença.
No entanto, se esta diferença perdeu momentaneamente sua validade, como explicar que o Brasil tenha virado à direita? Porque as maiorias nacionais, apesar da crescente frustração com a política estabelecida, prefere claramente a direita? O governo Lula 3 é o pior na comparação com os dois anteriores e precisará de um milagre para não sofrer uma surra vergonhosa nas eleições municipais deste ano e de uma mudança de rumo improvável para que seja favorito na sucessão presidencial de 2026. Tudo indica que Lula é apenas uma pausa no longo caminho no deserto que a esquerda precisará percorrer para encontrar sua redenção. A maioria de direita no congresso deixa isso muito claro. Lula perdeu grande parte do apelo popular. Hoje é visto, com méritos, como alguém rodeado de elites culturais e ativistas sem conexão com o povo. Como eu identifiquei em meados de 2022, Lula está perdendo sua identidade de líder carismático popular e assumindo a identidade de alguém que, embora tenha vindo do povo, vive rodeado por gente fina e granfina que no fundo despreza tudo que é popular. O aberrante protagonismo de Janja com sua “turminha do capital cultural” evidencia bem esta mudança de identidade política. Mas o Brasil não virou à direita porque Bolsonaro fez alguma política melhor que as de Lula, mas sim porque a direita ganha de lavada nas “guerras culturais”, na moralização da política e sobretudo na genuína proximidade com os novas formas e estilos de vida do povão, do trabalhador uberizado, dos evangélicos.
A direita não tem um programa com soluções decentes para os problemas concretos da maioria. Mas seu protagonismo não é apenas o resultado de marketing político superficial. A direita tem base organizada e popular, sobretudo entre os evangélicos, e hoje ganha com folga da esquerda identitária das universidades e da mídia a luta para representar as maiorias, os pobres, as mulheres, os negros e os pardos. Com sua bem sucedida representação de uma “maioria moral”, construída na prática e no discurso ao longo dos últimos anos, a direita consegue ressignificar sua diferença em relação a esquerda, mas continua incapaz de oferecer políticas públicas que encaminhem soluções para a mediocridade econômica e a crescente cisão social entre cidadãos autônomos que sustentam a própria vida e sub-cidadãos dependentes do Estado. Talvez o maior sintoma desta situação seja o fato de que a crítica ao bolsa família tenha praticamente desaparecido da política nacional. Todos parecem concordar em eternizar a sub-cidadania assistida e financiada pelo Estado. A disputa é apenas entre as melhores táticas de cooptação dos pobres. E assim, a pecha de não gostar de pobres que Lula e o PT atribuíam aos tucanos de outrora, hoje pode ser usada contra Lula e o PT.
A diferença esquerda/direita padece de uma crise programática, pois nenhum dos lados contribui para criar e reforçar linhas diferentes de políticas públicas que sejam suficientemente fortes e abrangentes para se enraizarem no imaginário político popular. Esta crise programática é compensada pela diferenciação moral, com larga vantagem para a direita. O grande desafio é sair da dimensão moral e ocupar devidamente a dimensão programática da política nacional. A prioridade não deve ser aprendizado moral e sim aprendizado político. A moral precisa ser cerceada para que a política entre em cena. A desorientação teórica da esquerda, marcada pelo uso moralista de conceitos como capitalismo (que adquire no discurso subsociológico o status de um “ator”, um verdadeiro “capetalismo” definido como entidade protagonista da decadência moral), colonialidade, patriarcado e “racismo estrutural” reforça o problema prático de seu afastamento das maiorias. Neste ponto, a direita brasileira parece ter uma grande vantagem: além da inegável “química” cultural e moral com a maioria do povo brasileiro atual, ela não cultiva nenhuma “teoria” social ou política que a torne refém de abstrações vazias como as que amarram a esquerda no fatalismo, no vitimismo, na derrota e na insignificância. A dinâmica aberta e inovadora da direita traz mais esperança que o conservadorismo semântico da esquerda. Minha tese central é que é mais fácil surgir uma “direita que faz”, capaz de resolver problemas concretos como nossa decadência econômica, às ameaças à nossa soberania nacional, a insegurança pública e os impasses da política social do que nossa esquerda moribunda achar um rumo decente. A esquerda precisa morrer e ser sepultada para que uma nova possa surgir. Um governo de direita sério faria bem ao Brasil e à esquerda.

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