Um Arquivo único que querem fazer de ordinário
Talvez o atraso nas obras do Arquivo Público Municipal de Campos não seja culpa da Uenf. Aliás, devemos penalizar, quando há dolo, as pessoas à frente das instituições; e não a institucionalidade. Mas toda essa história tragicômica talvez mostre a cara de alguns outros vilões.
Mas antes de apresentá-los, é preciso fazer algumas ponderações históricas.
O Arquivo de Campos nasceu de uma iniciativa legislativa, em maio de 2001, proposta pelo então vereador Edson Batista. Na ocasião, a Uenf havia começado a preparar um solar do século XVII, em Tocos, para abrigar sua escola de cinema. A ideia não deu certo — havia uma dificuldade de preenchimento de vagas dos docentes e uma cultura de produção e comercialização cinematográfica teria que ter certa aceitação na região. Com a descontinuidade, esse prédio, o Solar do Colégio, ficaria novamente abandonado, apesar de sua importância. E para aproveitá-lo, o Arquivo nasceu ali, como Campos, na Baixada.
Como o nome sugere, se tratava de um solar jesuítico. Foi construído para impor religião e a “domesticação” indígena, essencialmente. Após a expulsão da Companhia de Jesus dessas terras, em 1759, a edificação é vendida a Joaquim Vicente dos Reis por 187 contos 953 mil réis. Depois, Sebastião Gomes Barroso, genro de Joaquim, cria ali um grande engenho de açúcar.
O Solar do Colégio e o Solar dos Airizes (às margens da BR-356) são representantes fiéis de como Campos e a região se constituíram: enormes fazendas, plantações de cana-de-açúcar e escravidão. As fazendas eram centros de serviços públicos, havia hospitais e maternidades, escolas e amontoados de casebres que formavam pequenas comunidades.
O centro urbano de Campos crescia sustentado pela plantation, e queria a todo custo ser o Rio de Janeiro, ou qualquer cidade europeia. Cafés, livrarias, hotéis e teatros eram frequentados por motivo de status, não de cultura. Os preços das commodities eram definidos nos cafés e os teatros apresentavam musicais enlatados vindo do Rio.
Pois bem, Campos acabou se tornando uma cidade de costas para sua história, querendo ser o que não era e consumindo cultura alheia. Havia alguns elementos culturais orgânicos, que vinham principalmente da baixada. Até de costas para o rio Paraíba Campos está.
Parte significativa dessa história está no Arquivo Público. Jornais, documentos de tribunais, cartas testamento, registros de nascimento e morte, comprovações dos movimentos revolucionários contra a Coroa Portuguesa, cartas de fundação das primeiras Câmaras, e toda sorte de atrocidades registradas em comercialização de seres humanos advindos da diáspora africana.
Talvez o atraso nas obras do Arquivo Público Municipal de Campos não seja culpa da Uenf. Aliás, devemos penalizar, quando há dolo, as pessoas à frente das instituições; e não a institucionalidade. Mas toda essa história tragicômica talvez mostre a cara de alguns outros vilões.
Mas antes de apresentá-los, é preciso fazer algumas ponderações históricas.
O Arquivo de Campos nasceu de uma iniciativa legislativa, em maio de 2001, proposta pelo então vereador Edson Batista. Na ocasião, a Uenf havia começado a preparar um solar do século XVII, em Tocos, para abrigar sua escola de cinema. A ideia não deu certo — havia uma dificuldade de preenchimento de vagas dos docentes e uma cultura de produção e comercialização cinematográfica teria que ter certa aceitação na região. Com a descontinuidade, esse prédio, o Solar do Colégio, ficaria novamente abandonado, apesar de sua importância. E para aproveitá-lo, o Arquivo nasceu ali, como Campos, na Baixada.
Como o nome sugere, se tratava de um solar jesuítico. Foi construído para impor religião e a “domesticação” indígena, essencialmente. Após a expulsão da Companhia de Jesus dessas terras, em 1759, a edificação é vendida a Joaquim Vicente dos Reis por 187 contos 953 mil réis. Depois, Sebastião Gomes Barroso, genro de Joaquim, cria ali um grande engenho de açúcar.
O Solar do Colégio e o Solar dos Airizes (às margens da BR-356) são representantes fiéis de como Campos e a região se constituíram: enormes fazendas, plantações de cana-de-açúcar e escravidão. As fazendas eram centros de serviços públicos, havia hospitais e maternidades, escolas e amontoados de casebres que formavam pequenas comunidades.
O centro urbano de Campos crescia sustentado pela plantation, e queria a todo custo ser o Rio de Janeiro, ou qualquer cidade europeia. Cafés, livrarias, hotéis e teatros eram frequentados por motivo de status, não de cultura. Os preços das commodities eram definidos nos cafés e os teatros apresentavam musicais enlatados vindo do Rio.
Pois bem, Campos acabou se tornando uma cidade de costas para sua história, querendo ser o que não era e consumindo cultura alheia. Havia alguns elementos culturais orgânicos, que vinham principalmente da baixada. Até de costas para o rio Paraíba Campos está.
Parte significativa dessa história está no Arquivo Público. Jornais, documentos de tribunais, cartas testamento, registros de nascimento e morte, comprovações dos movimentos revolucionários contra a Coroa Portuguesa, cartas de fundação das primeiras Câmaras, e toda sorte de atrocidades registradas em comercialização de seres humanos advindos da diáspora africana.
Citei o Airizes acima por ele também ser um estorvo para a maioria dos campistas — algo a ser demolido para dar espaço a algum condomínio.
Há pouco mais de entrei no Solar e vi no fundo de um cômodo algumas dezenas de sacos de lixo. Eles encobriram milhares de fotos, documentos, obras de arte, mapas, livros e correspondências pessoais dos antigos moradores. Certamente, muito a ser contado dali, caso o destino não fosse a fogueira.
Além desse acervo recente, o que havia de valioso (valor histórico, cultural e financeiro) foi vendido para um museu em Niterói e para a USP. O geógrafo e escritor Alberto Lamego, proprietário do Solar dos Airizes e garimpeiro desse acervo, era visto com desconfiança pelos campistas, que achavam que era tudo falso e sem valor, mas o Solar era constantemente visitado por gente como Oswald de Andrade.
Mas o assunto aqui é o Solar do Colégio e o Arquivo Público. E os vilões.
A Uenf recebeu R$ 20 milhões há quase três anos para restaurar o prédio e fazer a digitalização do acervo. Além de oferecer as mínimas condições de funcionamento e visitação de ambos. Por diversas desculpas, uma parte minúscula do dinheiro foi aplicado, e o Solar continua sob risco, assim como o acervo que guarda.
A Uenf não tem expertise para tocar uma obra dessa complexidade, e não faz parte de sua atividade fim fazer intervenções em patrimônios históricos. E ao que parece, a aceitação da missão aconteceu sem ouvir a universidade e seu Conselho. Mas o fato é que aceitou. E também é fato que a lei que rege o Fundo Especial da Assembleia Legislativa, de onde veio o recurso, exigia à época que fosse destinado a alguma instituição estadual ou federal.
Mas, ficam algumas perguntas.
Deveria a Uenf ter aceitado? Sim. O Solar do Colégio tem uma relação próxima e bela com a universidade, e tratar documentos históricos, possibilitando que eles sejam fonte de pesquisa, é algo que a Uenf deve zelar, além de ser uma universidade que nasceu para cooperar com a comunidade que está inserida.
Precisava de tanta burocracia? Sim. Trata-se de dinheiro público e de um patrimônio histórico de alta relevância. Além de abrigar um acervo inestimável. É preciso dar transparência, lisura e abertura ao processo. E contratar empresas de alto gabarito. E existem leis que regem com muita rigidez algo assim.
Demora tanto assim? Não. Há um leque enorme de excelentes empresas no Brasil que aceitariam essa obra, que participariam das licitações e entregariam algo sensacional em bem menos tempo. É possível licitar obra e projeto juntos, desde que cumpra-se alguns requisitos.
Devemos culpar a Uenf? Não. A universidade, enquanto sua institucionalidade, está prestando um serviço e precisa direcionar esforços de uma estrutura apertada e sem experiência em obras. Porém, gestores podem ser culpabilizados. Prioridades foram definidas e o Arquivo e Solar não estavam nelas. Se algo acontecer nesse período de chuvas, podem e devem responder pela letargia e omissão na aplicação de recursos públicos.
O Arquivo poderia estar no centro de Campos? Claro. Seria o ideal. Um Palácio da Cultura climatizado, acessível, com funcionários concursados tratando documentos antigos e catalogando os atuais, e com agendamento frequente das escolas. Mas além de ser utópico na realidade atual, perderíamos um local único, carregado de história, exalando educação patrimonial. Desistiríamos de particularidades excepcionais para aceitar algo ordinário, comum. Isso se o comum fosse existir, de fato.
Os vilões possíveis
E então chegamos aos vilões. O mundo real dificilmente é explicável pela dicotomia herói-vilão. Há uma zona cinzenta entre essas personas que é onde a maioria está. Talvez todos estejamos, instituições e pessoas.
Mas o descaso com o Solar do Colégio, dos Airizes e com o Arquivo é a metástase de um patologia que Campos arrasta através dos séculos. A culpa, caso seja possível definir, é de uma sociedade que quebrou os espelhos, que vive olhando para as sombras na parede da caverna.
Mas se há um verdadeiro vilão possível, está entre os que olham para a história, a entende, compreende sua riqueza, percebe a existência de um elemento extraordinário, que alia patrimônio e pesquisa, algo de potencial inexaurível, e diz que é melhor abandonar. “Deixa cair”; “não gosto de fulano e fulana, melhor que aquilo acabe”; “aqui é assim mesmo”.
Se há vilão possível, está em quem lava as mãos.
Há pouco mais de entrei no Solar e vi no fundo de um cômodo algumas dezenas de sacos de lixo. Eles encobriram milhares de fotos, documentos, obras de arte, mapas, livros e correspondências pessoais dos antigos moradores. Certamente, muito a ser contado dali, caso o destino não fosse a fogueira.
Além desse acervo recente, o que havia de valioso (valor histórico, cultural e financeiro) foi vendido para um museu em Niterói e para a USP. O geógrafo e escritor Alberto Lamego, proprietário do Solar dos Airizes e garimpeiro desse acervo, era visto com desconfiança pelos campistas, que achavam que era tudo falso e sem valor, mas o Solar era constantemente visitado por gente como Oswald de Andrade.
Mas o assunto aqui é o Solar do Colégio e o Arquivo Público. E os vilões.
A Uenf recebeu R$ 20 milhões há quase três anos para restaurar o prédio e fazer a digitalização do acervo. Além de oferecer as mínimas condições de funcionamento e visitação de ambos. Por diversas desculpas, uma parte minúscula do dinheiro foi aplicado, e o Solar continua sob risco, assim como o acervo que guarda.
A Uenf não tem expertise para tocar uma obra dessa complexidade, e não faz parte de sua atividade fim fazer intervenções em patrimônios históricos. E ao que parece, a aceitação da missão aconteceu sem ouvir a universidade e seu Conselho. Mas o fato é que aceitou. E também é fato que a lei que rege o Fundo Especial da Assembleia Legislativa, de onde veio o recurso, exigia à época que fosse destinado a alguma instituição estadual ou federal.
Mas, ficam algumas perguntas.
Deveria a Uenf ter aceitado? Sim. O Solar do Colégio tem uma relação próxima e bela com a universidade, e tratar documentos históricos, possibilitando que eles sejam fonte de pesquisa, é algo que a Uenf deve zelar, além de ser uma universidade que nasceu para cooperar com a comunidade que está inserida.
Precisava de tanta burocracia? Sim. Trata-se de dinheiro público e de um patrimônio histórico de alta relevância. Além de abrigar um acervo inestimável. É preciso dar transparência, lisura e abertura ao processo. E contratar empresas de alto gabarito. E existem leis que regem com muita rigidez algo assim.
Demora tanto assim? Não. Há um leque enorme de excelentes empresas no Brasil que aceitariam essa obra, que participariam das licitações e entregariam algo sensacional em bem menos tempo. É possível licitar obra e projeto juntos, desde que cumpra-se alguns requisitos.
Devemos culpar a Uenf? Não. A universidade, enquanto sua institucionalidade, está prestando um serviço e precisa direcionar esforços de uma estrutura apertada e sem experiência em obras. Porém, gestores podem ser culpabilizados. Prioridades foram definidas e o Arquivo e Solar não estavam nelas. Se algo acontecer nesse período de chuvas, podem e devem responder pela letargia e omissão na aplicação de recursos públicos.
O Arquivo poderia estar no centro de Campos? Claro. Seria o ideal. Um Palácio da Cultura climatizado, acessível, com funcionários concursados tratando documentos antigos e catalogando os atuais, e com agendamento frequente das escolas. Mas além de ser utópico na realidade atual, perderíamos um local único, carregado de história, exalando educação patrimonial. Desistiríamos de particularidades excepcionais para aceitar algo ordinário, comum. Isso se o comum fosse existir, de fato.
Os vilões possíveis
E então chegamos aos vilões. O mundo real dificilmente é explicável pela dicotomia herói-vilão. Há uma zona cinzenta entre essas personas que é onde a maioria está. Talvez todos estejamos, instituições e pessoas.
Mas o descaso com o Solar do Colégio, dos Airizes e com o Arquivo é a metástase de um patologia que Campos arrasta através dos séculos. A culpa, caso seja possível definir, é de uma sociedade que quebrou os espelhos, que vive olhando para as sombras na parede da caverna.
Mas se há um verdadeiro vilão possível, está entre os que olham para a história, a entende, compreende sua riqueza, percebe a existência de um elemento extraordinário, que alia patrimônio e pesquisa, algo de potencial inexaurível, e diz que é melhor abandonar. “Deixa cair”; “não gosto de fulano e fulana, melhor que aquilo acabe”; “aqui é assim mesmo”.
Se há vilão possível, está em quem lava as mãos.