As sessões iniciaram-se no último dia 22, no entanto, foram marcadas mais duas datas para o julgamento do ex-presidente: 27 e 29 de junho. A sessão da terça-feira (27) teve início às 19h com a apresentação do voto do relator e corregedor-geral do TSE , ministro Benedito Gonçalves, que votou para tornar Jair Bolsonaro (PL) inelegível até 2030.
Gonçalves disse que não seria possível “fechar os olhos para discursos antidemocráticos com mentiras e discursos violentos” e criticou o que chamou de “banalização do golpismo”. Disse ainda que Bolsonaro “violou ostensivamente” seus deveres enquanto presidente da República na reunião com embaixadores no ano passado, e afirmou que o ex-presidente é “integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual” do evento (veja matéria da Folha aqui).
Mas a primeira sessão, que seria uma “super terça” para quem esperava a primeira punição de Bolsonaro após deixar a presidência, se transformou em frustração. Apesar da expectativa de pedido de vista do ministro Nunes Marques — indicado por Bolsonaro ao Supremo e que também integra o TSE —, que adiaria o julgamento, era esperado que a inelegibilidade por oito anos do ex-presidente fosse declarada na primeira sessão.
A continuidade do julgamento no TSE em sua segunda sessão é mais um capítulo processual de um caso que trata da reunião do ex-presidente com embaixadores no Palácio da Alvorada, realizada em julho de 2022, onde Bolsonaro questionou o resultado do sistema eleitoral de 2018 e levantou dúvidas sobre urnas eletrônicas. Tudo transmitido pela TV Brasil.
Na primeira sessão do julgamento (22.jun.2023), foi apresentado um relatório de 43 páginas, que foi sucedido das sustentações orais de representantes do PDT, do ex-presidente Bolsonaro e do general Braga Netto. Depois, a sessão foi suspensa com a apresentação do parecer do Ministério Público Eleitoral (MPE), que defendeu a inelegibilidade de Bolsonaro, mas foi contra a procedência da ação contra Braga Netto.
Os crimes do presidente
No Supremo há seis inquéritos que possuem Bolsonaro como alvo, quais sejam: divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888), vazamento de dados sigilosos de ataque ao TSE (INQ 4878), inquérito das fake news sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4781) e outro sobre a sua interferência na Polícia Federal (INQ 4831).
Já na Justiça Eleitoral, o ex-presidente responde a 21 ações — 17 delas relacionadas às eleições de 2022. No processo que está em andamento no TSE, a Procuradoria Eleitoral do Ministério Público pediu a decretação da inelegibilidade do ex-presidente, penalidade máxima que o tribunal pode aplicar.
Há ainda contra Bolsonaro o caso “Wal do Açaí”, onde é investigado por contratação de suposta funcionária fantasma, a Wal, na época em que ainda era deputado federal. Esse caso tem trâmite na Justiça Federal do DF, como uma ação de improbidade administrativa.
Sobre a condução da pandemia, o relatório final da “CPI da Covid”, de 2021, foi atribuída ao ex-presidente a responsabilidade pelo agravamento da crise sanitária no país (relembre aqui), e sugeriu que ele fosse responsabilizado por nove crimes, entre eles crime de epidemia com resultado de morte (art. 267, do código penal), infração a medidas sanitárias preventivas (art. 268, CP), charlatanismo (art. 283, CP), prevaricação (art. 319, CP), crime de responsabilidade (art. 7º da lei 1079) e crimes contra a humanidade (art. 7º do decreto 4.388).
Os militares
O julgamento de ex-presidentes não é exatamente uma novidade no país. Em 2018, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi condenado pelo ex-juiz Sérgio Moro pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso conhecido como “Triplex do Guarujá”, apurado pela operação Lava Jato. A pena, antes estabelecida por Moro em 9 anos e 6 meses, foi aumentada em 2ª Instância pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) para 12 anos e 1 mês.
No caso de Bolsonaro, o aparelhamento das Forças Armadas pelo governo se tornou um dos pontos mais críticos durante o período, e é apontado como embrião dos atos golpistas de 8 de janeiro, que por sua vez é alvo de muitos inquéritos que o ex-presidente responde. Militares são acusados de suposta conivência com os acampamentos de bolsonaristas em frente aos quartéis e pela reação tardia às invasões na Praça dos Três Poderes na ocasião.
Ditadura e não-punições
Depois de mais de três décadas da ditadura militar no Brasil (1964-1985), um caso judicial veio à tona, expondo como o regime agia e a violência brutal que usava para tentar extrair confissões. Em 1972, a tortura de 15 soldados, quatro deles mortos dentro de um batalhão militar em Barra Mansa (RJ), foi exposta.
A ação tornou-se pública graças a uma parceria entre o Instituto Vladimir Herzog e a agência de dados Fiquem Sabendo, que obteve os documentos do Superior Tribunal Militar (STM), caso que ficou conhecido como "o crime do século", na designação do general Rodrigo Octávio Jordão Ramos.
O processo sobre a tortura dos soldados, arquivado sob o número 17/72 na Justiça Militar, permanece como o único em que militares foram julgados e condenados por tortura e mortes durante a ditadura. Com o fim do regime, o Ministério Público Federal (MPF) impetrou 53 ações tentando reverter esse quadro e buscando a responsabilização dos envolvidos, mas não obteve sucesso. Até o momento, nenhuma condenação foi decretada.
A ditadura militar foi marcada por diversos casos envolvendo torturas, sequestros, assassinatos e ocultação de cadáveres, fatos largamente demonstrados por historiadores e pelas investigações das Comissões da Verdade. Mas por que não foram punidos? Como o país deixou décadas de um violento regime ditatorial sofrer um processo de apagamento em relação à responsabilização dos culpados?
Uma das respostas possíveis é dada quando se percebe a interpretação que o judiciário vem dando à Lei da Anistia, de 1979 — o ordenamento prevê a não punição de ativistas e agentes do estado pelos crimes cometidos durante o regime.
Porém, embora seja previsto em lei, a anistia total não é consenso entre juristas. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) levou ao STF uma ADPF — Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental — em 2008, que questionava o uso da Lei da Anistia para impedir a punição de militares criminosos.
A partir de uma ótica constitucional, a aplicação de um diploma legal que visa anistiar crimes como homicídio, tortura, abuso de autoridade e estupro é no mínimo controversa, mesmo que ela tenha a limitação de ser aplicada sobre tempos de exceção. Apesar da evidente necessidade de avaliação da lei em relação a sua constitucionalidade, e do descumprimento flagrante de preceitos fundamentais da Carta, a ADPF foi julgada improcedente em 2010, e o recurso interposto contra a decisão nunca foi apreciado.
A Argentina de 1985
O país de maior rivalidade do Brasil no futebol, a Argentina, venceu a última Copa do Mundo, e no campo jurídico deu uma goleada quando se trata do julgamento de responsáveis por ditaduras. A nação vizinha viveu um regime de exceção nos anos 1970, após um golpe de Estado.
Assim como o Julgamento de Nuremberg na Alemanha, em 1945, que tratava sobre os crimes do nazismo, e outro em 1975 que julgou coronéis gregos que lideraram o golpe no país, a Argentina promoveu um dos maiores esforços do século 20 para responsabilizar quem vilipendiou sua história.
O julgamento da ditadura argentina se constituiu em um tribunal civil que pretendia julgar nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976. Assim como no Brasil, os militares argentinos eram acusados de crimes que iam desde homicídio e tortura até privação ilegítima de liberdade. Durante o regime, estima-se que um número assustador de 30 mil pessoas foram declaradas desaparecidas ou mortas.
Os argentinos foram espectadores de todo julgamento, abertura que se deu principalmente pelo trabalho de mais de 500 jornalistas que cobriam todo o desenrolar. À medida que as pessoas tomavam conhecimento do teor dos depoimentos — foram ouvidas cerca de 800 testemunhas — o apoio crescia, o que se tornou fundamental para o andamento das sessões.
Em 9 de dezembro de 1985, a Argentina comemorava a sentença de 709 casos apresentados durante o julgamento, onde os dois generais foram condenados à prisão perpétua e outros militares tiveram penas que chegaram a 17 anos de prisão. Alguns foram absolvidos.
Não esquecer e não repetir
A importância de sermos apresentados à nossa história coletiva é primordialmente para entendermos os processos que se sucederam para resultar na sociedade em que vivemos. A partir desse entendimento, podemos problematizar a realidade presente e projetar futuros.
Julgamentos de crimes contra a humanidade, que atentem contra a democracia ou soberania de um país são emblemáticos e necessários, à medida que a impunidade se transformaria necessariamente em conivência ou aceitação de que novos episódios criminosos como os que optou-se por deixar encobertos, voltem a acontecer.
Assim como a Alemanha ainda fala do nazismo, e a Argentina ainda se orgulha do julgamento de 1985, é preciso que o Brasil enfrente as perversidades de sua história, sob pena de permitir que novas atrocidades aconteçam.
Desde que pôs-se fim à ditadura no Brasil, experimentamos o mais longo período democrático de nossa história, e para que seja possível continuar vivendo, o país precisará se esforçar coletivamente para punir quando necessário — se afastando de justiçamentos e vinganças, e se apoiando em uma das virtudes mais fundamentais de qualquer sociedade: a justiça.
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