Edmundo Siqueira
15/05/2022 22:47 - Atualizado em 15/05/2022 23:40
Solar dos Airises, construção histórica e residência dos Lamegos, às margens da BR-356, que encontra-se há décadas em situação de abandono e ameaça de ruína, pode finalmente ser restaurado por força de decisão judicial e parceria com sociedade civil. História, valor cultural, decisão judicial, estado atual, a palvara do Iphan e uma entrevista exclusiva com a Sabra.
15.mai.2022 às 22h00
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Alberto Ribeiro Lamego, geólogo e escritor brasileiro importante, nasceu em Campos, no ano de 1896. A casa de sua família, onde morou até seus 10 anos — quando foi estudar na Europa, retornando após o fim da Primeira Guerra —, era um Solar majestoso.
O jovem Lamego, passeando pelos corredores da construção feita em “U”, conseguia ver o Paraíba pelas janelas em arco dos grandes salões, percorria um enorme biblioteca e pinacoteca, descia para uma bela Capela do pavimento inferior e podia ver que, nas terras da fazenda, não possuíam mais pessoas escravizadas, embora incomodava-se com a persistente situação de exploração.
O Solar dos Airises, quando ainda completamente de pé, abrigou a família Lamego desde que ele foi herdado com a morte do Comendador Cláudio Couto e Souza — quem construiu o Solar em meados de 1840. A residência de Alberto Lamego foi visitada pelo imperador (D. Pedro II, no final dos anos 1800), por escritores, políticos e artistas do Brasil inteiro.
Pai e filho Lamego eram homens cultos e produziram vasto acervo cultural, seja em livros de suas autorias, seja em obras de arte ou documentos trazidos do velho continente sobre Campos dos Goytacazes. O Solar não foi relevante por sua imponência arquitetônica, ou localização privilegiada, apenas. A vida que existia no seu interior conferia a sua real grandeza, a ponto dele ter sido frequentado por poetas como Mário de Andrade, um dos fundadores do modernismo no Brasil. Entre as obras literárias mais emblemáticas do Lamego Filho está “O Homem e o Brejo”.
O Solar e o Brejo
Veja primeira publicação jornalística sobre o processo que envolve o Solar aqui: Uma Verdade Solar
Os tempos de glória deram lugar a um período de ruínas. A “meca dos campistas” — apelidado assim pela intelectualidade goitacá da época — deu lugar a escombros, vazios e lendas. Moradores do entorno juram terem visto, mais de uma vez, um espectro feminino abrir e fechar as janelas do Solar. Alguns dizem ser a escrava branca, de nome Isaura, personagem do escritor Bernardo Guimarães e tema de telenovela da rede Globo.
A comprovação de que o Solar foi morada de Isaura nunca apareceu. Historiadores nunca conseguiram comprovar o que não passou de uma lenda. Assim como as gravações da novela, que teriam acontecido no local, mas que nunca foram, igualmente, confirmadas — as locações teriam sido em Conservatória e Vassouras.
O que se confirma a olho nu é o estado atual do Solar dos Airises. Com parte da construção já no chão, esquadrias e paredes deterioradas, permanece erguido por ter recebido intervenções no telhado há alguns anos. Com história e enorme potencial para voltar a ter uso e servir de equipamento cultural e de educação patrimonial, e turístico, muitos projetos permeiam o Solar. Dentre os mais falados, a criação de um “Museu do Açúcar” que pudesse contar a história, como foi, da exploração dessa atividade econômica na região.
Apesar de tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a pedido do próprio Lamego em 1940 — caso raro de solicitação de tombamento feita pelo proprietário —, e com precarização visível por quem passa pela BR-356, a caminho de Atafona, o Solar agoniza. Assim como parte do acervo que ainda se encontra sob sério risco, em interior.
A pinacoteca e grande parte das obras literárias e documentação, foram vendidas por Alberto Lamego (pai) para o Museu Antônio Parreiras, em Niterói, onde estão até hoje. Alguns itens, principalmente documentos de origem portuguesa sobre Campos, estão na Universidade de São Paulo (USP).
Com os projetos sem andamento definitivo e a ausência de obras de contenção no local, parte relevante da história recente de Campos e região — e também do país — ameaça desaparecer,em pouco tempo.
O que diz a justiça e o Iphan
O restauro de uma construção como o Solar dos Airises é dispendioso, complexo e demorado. Impor aos herdeiros a conservação do prédio parece ser inviável e se mostra, na prática, o caminho mais rápido para a ruína total. Ao Iphan,cabe a aplicação de multas e o acompanhamento dos bens tombados no país inteiro. No caso do Solar dos Airises, o processo 01450.001244/2022-98 traz os atos do órgão que pode ser consultado por qualquer cidadão.
Apesar do aparente impasse, a legislação (Decreto-lei nº 25, de 1937) que regula os tombamentos é clara: “O proprietário de coisa tombada, que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a mesma requerer, levará ao conhecimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a necessidade das mencionadas obras” e diz ainda que “consideradas necessárias as obras, o diretor (do Iphan) mandará executá-las, a expensas da União”. E dá prazo para o início das obras: seis meses.
A justiça, através do Ministério Público Federal (MPF), mostrou reconhecer essa situação e cumpriu sua parte. Ao menos, até a conclusão do processo judicial, que tramitou na 2ª Vara Federal de Campos — o processo foi redistribuído recentemente para a 1º Vara. Já com sentença declarada, com trânsito em julgado, quando não cabe mais recurso, ficou definido que a Prefeitura de Campos é a responsável pelo restauro e manutenção do Solar, sendo cedido ao ente municipal, assim como o entorno. E deu prazo para as obras: imediatamente.
Apesar da decisão, a execução da sentença ainda não aconteceu. A prefeitura foi notificada e pediu prazo para cumprimento. Consultado sobre o assunto, o Iphan comentou, através da assessoria de comunicação, sobre o andamento do caso Airises.
“É importante apontar sobre a necessidade de ações de manutenção e conservação emergenciais já sinalizadas ao proprietário ou responsável do Solar dos Ayrizes, em diversas manifestações do Iphan anteriores ao presente documento”, disse o Iphan, em Brasília.
Informa ainda que há projeto de restauro “analisado e aprovado” dentro do órgão. O “pedido de reforma simplificada do Solar do Ayrizes e intervenção emergencial para o bem cultural” foi feito pela Sociedade Artística Brasileira (Sabra), uma associação civil e captadora de recursos, sem fins lucrativos, com sede em Betim, Minas Gerais.
A Sabra atualmente também figura como parceira da execução do restauro de outro prédio importante de Campos, igualmente tombado pelo Iphan: o Solar do Colégio, que abriga hoje o Arquivo Público Municipal. Com recursos já em caixa — conseguidos através do governo municipal atual, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e Assembleia Legislativa Estadual (Alerj) —, as obras foram prometidas ainda para este ano.
O que diz o prefeito
No programa "Pílulas da História" (veja aqui), produzida pela equipe do Arquivo Público Municipal, publicado há cerca de cinco meses, o prefeito Wladimir Garotinho, disse que recebeu "uma decisão muito forte da justiça", reconhecendo a possível improbidade, caso não realize a restauração.
O atual prefeito afirmou que "colocou no orçamento para os próximos anos" os recursos necessários, para "pelo menos iniciar a obra". E cita o convênio com a Sabra. Wladimir disse que aguarda o projeto chegar às suas mãos e que busca outros parceiros para ajudar nas obras de restauro. Sobre um possível futuro uso para o Solar, ele expõe sua preferência para servir com um "Museu do Açúcar", o que é corroborado pela apresentadora do programa e coordenadora do Arquivo, Rafaela Machado.
Finalizando a entrevista, o prefeito disse que é um "sonho" restaurar o Airizes, e quando existe um sonho é preciso "correr atrás" para realizá-lo.
Uma esperança solar – entrevista exclusiva com a Sabra
Agindo na omissão de décadas do poder público local e instituições campistas, uma associação de Minas Gerais prontificou-se a salvar algumas de nossas construções mais relevantes.
Márcio Miranda, presidente da Sabra, concedeu uma entrevista exclusiva sobre as ações que pretende empreender em solo Goytacá. Representando uma entidade que busca recursos públicos através de editais e leis de incentivo para agir em prol da cultura, Márcio fala sobre o Solar dos Airises, e como a esperança que vem de outro Estado pode ajudar a trazer de volta o uso e a vida desse marco da história fluminense:
Edmundo Siqueira - Segundo informações, existem três projetos em andamento em Campos que a Sabra estaria envolvida: restauração do Solar do Colégio, onde funciona o Arquivo Público Municipal, restauração do Solar dos Airizes, na BR-356 e um pré-projeto no Museu Olavo Cardoso. Em quais desses patrimônios a Sabra está diretamente responsável pelo projeto? Existem outros ainda em estudo?
Sabra - Na verdade, estamos envolvidos nos três. Mas, o projeto do Museu Olavo Cardoso terá início nos próximos dias. Não temos outros em estudo ainda. Nosso foco está em finalizar estes três para que a Prefeitura, em seguida, indique os próximos a serem trabalhados.
Especificamente sobre o Solar dos Airizes, as intervenções são urgentes. A construção apresenta sério risco de ruína e obras de contenção são necessárias, antes mesmo da execução do projeto de restauro. Assim como o Colégio, o Airizes tem tombamento federal, pelo Iphan, o que exige, mesmo para contenções, autorização daquele órgão. Como está o andamento das tratativas para o restauro do Airizes? Já foram escolhidas as equipes que atuarão no projeto? Existe previsão das obras de contenção para evitar a ruína do prédio?
Sabra - Temos a aprovação pelo IPHAN de nosso projeto para a intervenção emergencial no Solar dos Airizes há uma semana (a entrevista foi concedida no último dia 5). As equipes só podem ser escolhidas após contratação dos serviços, pois os profissionais não podem ficar aguardando por tempo indeterminado. Acontecendo a contratação, sabemos onde buscar as equipes. Não temos previsão para início das obras. Isso está à cargo do poder público.
Sabemos que o tombamento abrange o prédio e seu entorno. Apesar de possuir enorme valor histórico-cultural para o país, não só para Campos, encontra-se em total abandono pelos proprietários, onde figuram os herdeiros da família Lamego. Porém, existe processo jurídico, com trânsito em julgado, repassando a responsabilidade da conservação à Prefeitura de Campos. Caso o projeto que a Sabra desenvolve ali esteja em estágio avançado, existem ações jurídicas, pela Sabra, já em andamento ou previstas, com objetivo de fazer cumprir a decisão judicial?
Sabra - Pelo que temos acompanhado, o prefeito está tomando todas as medidas para cumprir a decisão judicial. O Solar dos Airizes já está com decreto de utilidade pública e a prefeitura está tramitando o processo de desapropriação. Todas as tratativas da Sabra com Iphan estão sendo apresentadas no processo judicial demonstrando que o projeto emergencial já está aprovado, e que nossa equipe técnica e a própria Prefeitura estão trabalhando para solucionar a questão. Entretanto, não cabe à Sabra qualquer movimento jurídico. Estamos aqui para atender aos anseios da Prefeitura de Campos sobre bens tombados.
Lamego, o brejo, a escravidão, a terra Goytacá e a esperança dos Airises
Uma construção histórica que carrega esse peso em suas paredes, não apenas precisa ser conservada, mas também é necessário que lhe seja conferido uso. As várias ideias que surgem para que o Solar dos Airises volte a existir, de fato, precisam convergir e caminhar conjuntamente com a execução das obras e da decisão judicial.
Com inequívoco apelo cultural em seu uso e restauro, reviver o Solar passa por políticas públicas culturais bem estruturadas. A criação de um Museu, ou centro cultural e educacional, precisa ser acompanhada de projeto para que conceda acessibilidade, e que seja sustentável, sob pena de novamente “ir para o brejo”.
O Solar dos Airises não conta apenas histórias bonitas e repletas de cultura e erudição. Ele nos mostra como foi feita a exploração desta planície, localizada no Norte Fluminense, suas relações econômicas, o papel institucional e político das grandes fazendas do período e a permissividade com a escravidão. A educação patrimonial que traz o Solar é fundamental para entender a sociedade campista.
Deixar que o Solar vire apenas uma lembrança, e que venha a ruína definitiva, impede não apenas o uso da construção material, mas dificulta ainda mais que o conhecimento produzido e reproduzido pelos pesquisadores da família Lamego, pai e filho, volte ao local de origem, ou pelo menos acessível aos campistas. À margem do rio Paraíba, a caminho de Atafona, o Solar dos Airises ainda resiste. Não se sabe até quando.