Moïse e a barbárie complacente
Edmundo Siqueira 01/02/2022 21:34 - Atualizado em 01/02/2022 21:48
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Imagens do que ficou conhecido como o "holocausto colonial belga", no Congo. Imagem retirada do site Aventuras na História /Reprodução.
Moïse tinha 16 anos quando chegou ao Brasil. Em companhia de sua mãe e seus irmãos, o garoto tinha esperança de uma vida nova no além-mar. Como refugiados do Congo, pensavam em deixar para trás o que recebiam como compatriotas do país africano: violência, desigualdade, fome e guerra.
Por aqui encontraram trabalho. Mesmo longe das condições ideais de cidadania, a família via o Rio de Janeiro como sua casa. Cidade cosmopolita, receptiva, de maioria negra e alegre. Foi no Rio que Moïse Kabamgabe conseguiu trabalho, em um quiosque perto do Posto 8, na Barra da Tijuca. Ele trabalhava por diárias no Tropicália.
O Rio igualou-se ao Congo, na segunda-feira da semana passada, 24. Pouco depois das dez da noite, uma discussão envolvendo um funcionário do quiosque terminou com a morte de Moïse. Covardemente amarrado e espancado por cinco homens. Morto a pauladas. O crime bárbaro — todo filmado por câmeras de segurança — foi assistido por outras pessoas que estavam no local e nada fizeram para impedir.
A família do congolês, inconformada com a naturalização que foi tratada a violência extrema, resolver se manifestar no último sábado (29). O protesto, na mesma praia que Moïse foi assassinado, conseguiu que o país tomasse conhecimento da barbaridade. O vídeo do espancamento circulou nas redes sociais e pautou os principais veículos de comunicação.
Pela versão dos familiares, Moïse foi cobrar uma dívida. O dono do quiosque Tropicália estaria devendo dois dias de serviços prestados. Apresentando outra motivação, um dos envolvidos, Alisson de Oliveira, disse que Moïse e um senhor, estavam brigando. “Ele teve um problema com um senhor do quiosque do lado, a gente foi defender o senhor e infelizmente aconteceu a fatalidade dele perder a vida”, disse.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
Movimento de artistas e lideranças do movimento negro pedindo justiça.
O fato de uma pessoa ser amarrada e espancada até a morte, por outras cinco, suplanta qualquer explicação. Para a barbárie não há motivação; há sangue e ódio. Segundo o Instituto Médico Legal (IML), Moïse Kabamgabe morreu por traumatismo, com contusão pulmonar. Os pulmões, com áreas hemorrágicas, também tinham vestígios de broncoaspiração de sangue.
Moïse não conseguiu fugir da guerra. Saiu do Congo, mas veio viver em um país que há muito se distanciou do conceito de “homem cordial”, definido no livro ‘Raízes do Brasil’ do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. Talvez nunca tenha sido de fato cordial, basta olhar o histórico recente de escravidão. Não há evidência concreta que o crime contra Moïse tenham motivações racistas. Embora certamente exista relação ali. Os homens que o espancaram não conseguiriam fugir disso; é estrutural.
Nos últimos anos o Brasil se tornou ainda mais violento, cheio de ódio e preconceito, e aprofundou sua desigualdade. É um país que aplaude justiçamentos. Apenas no primeiro mês de 2022, e apenas na Zona Sul do Rio, 12 linchamentos foram registrados. Nas últimas eleições presidenciais, o vencedor vendia a ideia, que foi comprada por muitos, que “bandido bom é bandido morto”. Há cerca de 40 anos, as pessoas davam entrevistas nas ruas do Rio afirmando que homossexuais deveriam ser mortos.
Voltando à barbárie atual, em um depoimento emocionado transmitido aos quatro cantos esta semana, um parente de Moïse desabafa:
“Ele trabalhava! A gente trabalha, duro! Fugimos da África, para sermos acolhidos aqui...ai, Brasil!...Uma mãe, segunda casa...como vai matar o irmão trabalhando? Justiça...vai ter que ser feita”.
Vai ter que ser feita.

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