Arthur Soffiati - Em busca das raízes culturais
* Arthur Soffiati 03/08/2024 09:12 - Atualizado em 03/08/2024 09:13
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação
A partir do século XV, com a expansão marítima, os europeus foram impondo seus padrões culturais às populações da África, Ásia, América e Oceania. As culturas dos povos não-europeus eram consideradas inferiores, por mais que alguns valores fossem reconhecidos nelas, como no caso da Índia, da China e do Japão. Era preciso civilizá-los por bem ou por mal, ensinando-lhes as línguas europeias e cristianizando-os. A cultura europeia tinha um caráter missionário.

Essa tendência vem se invertendo com o movimento decolonial, que busca a retomada e a valorização das culturas dominadas. Há exageros? Há. O caráter militante dos europeus também cometeu muitos exageros. Como historiador, procuro entender os exageros cometidos de um lado e de outro. Os europeus estão pedindo desculpas pelos excessos cometidos no passado como se apenas uma palavra bastasse. Os povos atingidos estão se esforçando (talvez em vão) para apagar seu passado colonial.

Não condeno o passado. Ao contrário, busco compreendê-lo. A luta por justiça e reconhecimento deve ser travada no presente. Foi esse ânimo que norteou minha excursão cultural a Portugal e Espanha em junho de 2024. Busco compreender e explicar uma das raízes da cultura brasileira sem ufanismo. Embora minha idade seja um fator limitante, planejo visitar alguns países da África e também o coração da Amazônia, em busca de um contato mais intenso com culturas indígenas.

De fato, o catolicismo romano cometeu excessos, como mostra Charles Boxer em “A Igreja militante e a expansão ibérica” (1440-1770) (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). A própria cúpula da Igreja pediu desculpas. Visitei uma parte da raiz cristã na Europa sem revanchismo. Em cada cidade, vila e povoado de Portugal, existem sempre algumas igrejas e muitos fiéis. Não exigirei deles a compreensão de cada palavra do credo católico. Basta apenas a sinceridade, e ela é profunda. Nascido no mundo helênico na sua expressão romana, o Cristianismo combina a tradição monoteísta judaica com o politeísmo helênico, criando uma unitrindade.

Devo reconhecer que meu espírito se formou e vive nesse mundo. Ao ser imposto aos continentes não-europeus, o catolicismo teve de fazer concessões. Os africanos escravizados tiveram seus cultos reprimidos e acabaram escondendo suas entidades sagradas atrás de Jesus, de Maria dos santos. Podemos reconhecer a marca de negros na arquitetura, escultura e pintura católicas, como são os casos de Aleijadinho e de Jesuíno do Monte Carmelo. Eles foram católicos sinceros, mas adaptaram a arte religiosa portuguesa ao contexto que se formou no Brasil. Podemos verificar o mesmo na América espanhola.

Na Índia e na China, elementos locais foram incorporados consciente ou inconscientemente às igrejas e esculturas. Houve um movimento duplo de aceitação e reação às imposições católicas, assim como o catolicismo acabou por aceitar costumes locais. Em Portugal e Espanha, encontrei igrejas devotadas aos avatares de Maria. Nossas Senhoras pouco conhecidas no Brasil. Santos raros no Brasil. Capelas em foz de ribeiras que são, na verdade, pequenos oratórios, pois suas dimensões não permitem a entrada de pessoas. Capelas no meio da floresta e ao pé de cascatas. Templos humildes que merecem o respeito e o cuidado de pessoas pobres. Não endosso o entendimento de que a religião é o ópio do povo.

Gosto desse mundo. Sou, como já escrevi, um católico cultural. Visitei um templo Mórmon em Beja e outro Adventista do Sétimo Dia em Ponta Delgada. Nos templos católicos, encontro uma profusão de imagens que me remetem a um contexto antigo. Nos dois templos que visitei, encontro um ambiente com nítidas marcas da cultura norte-americana. Em Évora, por exemplo, fiquei encantado com a superposição de culturas. Existem, lá, marcas fortes do neolítico, do helenismo em seu aspecto romano e do catolicismo.

Nos núcleos urbanos – do menor ao maior – a fé católica é muito forte. Ela se transferiu para o Brasil, incorporando elementos culturais nativos, africanos e até mesmo chineses. Um impulso sincero me levou a assistir à missa na Matriz de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores. Ao fim dela, procurei o padre e me apresentei como peregrino brasileiro nascido no Rio de Janeiro, cidade que tem São Sebastião como padroeiro, o santo de invocação da Matriz, explicando que moro atualmente em Campos, cidade sob proteção do Santíssimo Salvador. Ele corresponde ao Santo Cristo, patrono de outra igreja na ilha. Com reverência, visitei o cemitério local à procura de alguma sepultura de um antepassado meu.

Ao longo de minha viagem de um mês, caminhei sob a proteção do Espírito Santo sem qualquer questionamento de ordem pessoal ou social. Em muitos momentos, senti um forte desejo de não ser tão questionador e ter a devoção simples daquelas pessoas.

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