E se a fome real indignasse mais que o beijo de um alienígena da ficção?
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Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), 19 milhões de pessoas passam fome no Brasil (BBC). O que para muitos pode ser um dado apenas — números frios de pesquisa —, passou a ser representado por duas imagens chocantes que se espalharam nas redes sociais: pessoas disputando ossos e restos de carne em um caminhão frigorífero (foto fotojornalista premiado Domingos Peixoto - Folha), e de um grupo de mulheres vasculhando um caminhão de lixo em busca de alimentos (Globo).
O direito à alimentação deveria ser um princípio óbvio. Porém no Brasil foi incluída como direito social, constitucionalmente garantido, apenas em 2010. Ao que parece, a fome é tratada como parte da paisagem; como quando vidros levantados de carros de luxo ignoram crianças subnutridas nos sinais. Desemprego, inflação, crise sanitária, alta concentração de renda e tantos outros fatores que permitem conviver com a miséria absoluta de boa parte de brasileiros que vivem em um país que é o segundo no mundo em exportação de alimentos.
As imagens de pessoas disputando restos que antes eram dados aos cachorros, e vasculhando caminhão de lixo, causaram indignação. São mesmo chocantes, para quem possui o mínimo de humanidade. Mas, outra imagem gerou ainda mais comoção nas redes. Ela trazia um desenho do personagem Jon Kent, filho do famoso Super-Homem, beijando na boca o seu namorado (G1). O jogador de vôlei Maurício Souza, que é apoiador do presidente Bolsonaro, compartilhou na semana passada a imagem dos quadrinhos, com mensagem homofóbica na legenda: “Ah, é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar”. A postagem levou a demissão do jogador, mas foi defendida com ardor pelas redes bolsonaristas.
Os deputados do PSL General Girão (RN), Carla Zambelli (SP) e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, saíram em defesa do esportista. A “polêmica” seguiu como o assunto mais comentado da semana. Neste domingo (31), a primeira-dama Michelle Bolsonaro publicou uma imagem onde ela aparecia como Mulher Maravilha e o presidente Jair Bolsonaro como Superman.
Com a eleição de Bolsonaro, uma extrema-direita — antes envergonhada — se sentiu representada. Pensamentos racistas, homofóbicos, misóginos e até antissemitas são expostos como “opinião”. Em nome de uma suposta liberdade, crimes são cometidos. E outros, como agressões e assassinatos, são provocados quando se destila preconceito, mesmo que “não seja a intenção” do autor. Procurando aprovação, a pauta de costumes foi imposta como prioridade do presidente desde o início de sua gestão. Em março de 2019, ainda com poucos meses de governo, Bolsonaro questionava uma prática sexual; perguntava no Twitter: "O que é golden shower?".
Liberdade, crime e a decência
A confusão do público e do privado não é apenas na ‘rachadinha’ do Congresso. A liberdade individual não é absoluta; ela esbarra no crime e na saúde pública, por exemplo. O mesmo princípio que obriga o uso de máscaras, ou o isolamento social, é usado para coibir crimes de opinião. Preservar vidas e a coletividade é o objetivo dessas imposições. Pessoas morrem por homofobia e mulheres são mortas e espancadas por misoginia. Não é uma "apenas uma opinião". É crime.
A orientação sexual do indivíduo parece preocupar mais que a fome. As quase vinte milhões de pessoas famintas, disputando ossos e caminhões de lixo, impactam menos que um beijo do filho de um personagem dos quadrinhos que veio de outro planeta.
Família, religião, pátria e “bons costumes” devem servir para impedir que o semelhante coma restos de carne podre para não morrer de fome. Não há liberdade real, decência — ou mesmo democracia, quando a desigualdade atinge níveis e consequências como as que o país vivencia. Indecente é a fome. Afrontoso é o preconceito. Proteção social não é um superpoder; é uma obrigação moral.