Em sua live semanal, Bolsonaro destila mentiras, ataca a saúde pública e a democracia. A liturgia do cargo de presidente da República abandonada.
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A Presidência da República deve obedecer a uma ordem e espírito público. A chamada “liturgia do cargo” — de significado importado dos ritos das igrejas cristãs para a política —acompanha o presidente em qualquer manifestação pública, que sempre deve ter um tom solene. Isso, em uma democracia presidencialista em condições normais de funcionamento. Não no Brasil de Bolsonaro.
Mesmo por aqui, o que um presidente diz tem alto valor simbólico; até a forma importa: como ele discursa, se veste ou se dirige ao público. Ele deve servir de exemplo, e agir com compostura, tolerância, sobriedade e temperança. Na última quinta-feira, o Brasil assistiu um presidente abandonar todas essas obrigações e liturgias; e não foi a primeira vez, e possivelmente não será a última.
Bolsonaro há muito decidiu abandonar a comunicação formal da presidência. Não utiliza a Secom, dispensou o porta-voz oficial, e é avesso a coletivas de imprensa. Para se comunicar com a nação escolheu fazer lives semanais em redes sociais, e discursos improvisados em um cercadinho no Palácio da Alvorada. Para além da baixa qualidade estética, de linguajar e de conteúdo, Bolsonaro fala apenas para seu eleitorado fiel e mais radicalizado nessas oportunidades. Retira, portanto, o caráter coletivo e democrático da comunicação presidencial — opta por falar e governar para poucos e para convertidos.
Na live desta quinta, o presidente foi além; disse com todas as letras que a vacina, única forma de controle real do Covid, pode causar AIDS nas pessoas. A informação falsa é uma afronta à saúde pública do país. Bolsonaro cita inexistentes "relatórios oficiais" para afirmar que vacinados têm mais facilidade para desenvolver síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids), quando não há nenhum estudo que comprove. A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda justamente o contrário: portadores de HIV, com imunidade muito baixa, devem não apenas se vacinar como tomar a dose de reforço.
“Temos um estudo aqui do Reino Unido onde 70% dos mortos com Covid estavam vacinados. Não vou tecer comentários (...). Então, 70% dos mortos por Covid no Reino Unido estavam vacinados”, disse o presidente brasileiro em ato contínuo. Outra declaração falsa. Os dados reais dizem que os completamente vacinados — que receberam as duas doses — representaram menos de 1% das mortes por Covid no Reino Unido. Não satisfeito, Bolsonaro repetiu uma fake news já amplamente desmentida, de 2008, onde o uso de máscara era associado à pneumonia bacteriana, durante a gripe espanhola. A informação já havia sido checada, e declarada falsa, por diversos veículos de imprensa estrangeiros, como USA Today, Reuters e PolitiFact.
O jornalista Reinaldo Azevedo avaliou em seu programa diário na BandNews que os absurdos repetidos pelo presidente tem razão de ser. Segundo ele, seria um aceno ao movimento anti-vacina mundial, que é uma das bases da extrema-direita que “brotou” nas democracias neste século. Factível. Porém, a parcela doméstica mais radicalizada de seu eleitorado responde muito bem a ideia; o que mantém a claque eufórica nas redes. Além das mentiras relacionadas à vacina, o tom antidemocrático, de sempre, estava presente. Bolsonaro criticou duramente a imprensa, chamou os veículos nacionais de “porcaria”, declarou não ler jornais (se informa pelo Whatsapp?), chamou o apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, de “cara de pau”, e disse que as pessoas não deveriam abrir de sua liberdade individual em nome da segurança, fazendo clara alusão à saúde pública e a obrigação de usar máscaras, por exemplo, para evitar o contágio. Mostra desconhecimento completo do pacto social das democracias.
A live foi retirada do ar pelo YouTube, Facebook e Instagram. Além da suspensão por uma semana dos canais que o presidente mantém nessas redes. As empresas de mídia reconheceram como conteúdos falsos as informações trazidas por Bolsonaro, que tem grande potencial de afetar a saúde da população. Porém, possivelmente as lives de quinta-feira e o cercadinho continuarão a servir de negacionismo criminoso. Temos, definitivamente, um presidente de quinta.