A volta ao passado como proposta eleitoral de todos os pré-candidatos à Presidência em 2022 - A superação de 2014 e 2018 como necessidade real.
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Há um bode na sala — e ele tem nome e cargo; presidente Bolsonaro. Retirá-lo da sua cadeira é uma obrigação de nossa democracia, seja pelas urnas ou em processo de impedimento, via Congresso Nacional. Mesmo os que apoiaram a chegada do ruminante no recinto sabem da necessidade interromper as insanidades cotidianas. Sim, alguns resistem — fala-se, pelas pesquisas, algo em torno de 20% —, mas é reflexo direto de uma indústria de mídia insidiosa, criada especificamente para manter essa resistência, e pela crescente radicalização do fazer político no Brasil. O bode deverá ser tocado da sala, ou arrastado pelo cabresto democrático. Mas, uma vez livre dele, estaremos prontos para limpar a sujeira?
As eleições de 2014 foram marcadas pelo vale-tudo; ou pelo “tudo ou nada”, como queiram. Cenário agravado por uma tragédia: Eduardo Campos, ex-governador de Pernambuco e um dos fortes candidatos à presidência morrera em um acidente aéreo. Dilma Rousseff foi reeleita pelo PT naquele ano, mas saiu derrotada politicamente. Foi uma campanha sórdida. O governo Dilma manipulava dados econômicos, e ela estava visivelmente inábil para os desafios que o momento histórico exigia. E atacava covardemente a ex-aliada Marina Silva, que crescia nas pesquisas, usando inverdades e “terrorismo eleitoral” sobre a proposta dela em relação ao Banco Central e até colocando em dúvida a sua condição física.
Já o segundo colocado daquelas eleições, candidato pelo PSDB, Aécio Neves, não aceitou a derrota e colocou em dúvida o processo eleitoral. Apesar de ter sido apurado uma diferença pequena — pouco mais de 3 milhões de votos —, não haviam indícios de fraude, e o pedido de auditoria pelo derrotado foi um percursor da ideia de voto impresso e aditável, defendido pelo bolsonarismo na atualidade. Mesmo utilizando-se de um recurso previsível nas eleições brasileiras (a auditoria), que utilizam o sistema eletrônico, o questionamento do resultado tinha um caráter acusatório, que não levava em conta os mecanismos de defesa do próprio sistema, como os boletins de urna e o fato de não estar ligado à
internet. A democracia estava sendo atacada por um discurso infantil de perdedor.
Limites ultrapassados
Naquele ano, as regras de convivência e os ordenamentos não escritos da política brasileira foram rasgados. Dilma não citou o nome de seu adversário em seu discurso de vitória. Aécio por sua vez questionou a legitimidade de sua oponente. O “nós contra eles” estava ali construindo suas bases de maneira muito efetiva no imaginário do eleitor médio brasileiro. Na eleição mais acirrada até aquele momento, desde a redemocratização, os adversários políticos foram vistos como inimigos, e a chegada ao poder do outro grupo deveria, então, ser impedida a qualquer custo.
O resultado não poderia ser outro. Uma ruptura grave aconteceu dois anos depois, com uma presidente sendo retirada do cargo pelo “conjunto da obra”. Chamado de golpe pelo PT, de movimento necessário pela oposição, e de jogo duro constitucional pelos analistas, o fato é que Dilma pagou um preço alto pela grave crise econômica de seu governo e por sua inabilidade política. Nos bastidores, o ex-presidente — e hoje candidato Lula — é acusado de ter feito pouco para impedir o impeachment, e as manobras para defendê-lo de processos, como a tentativa de alçá-lo ao cargo de ministro, por exemplo, atrapalharam ainda mais uma governante já bastante combalida. Dilma pagou um preço alto; e o Brasil também.
A justificativa jurídica para o impeachment era frágil. Ao contrário de Lula, Dilma Rousseff não estava envolvida diretamente em escândalos de corrupção. O processo político no Congresso foi baseado em sadismo, misoginia e ódio. Os votos eram proferidos pelos microfones da Câmara Federal sem qualquer apego democrático. Congressistas citavam suas famílias para justificar sua decisão. Cartazes com a expressão “Tchau, querida!” foram expostos a todo o momento. Um circo. Até que um deputado do baixo clero ultrapassou todos os limites do aceitável e do jogo político. Das regras de convivência e os ordenamentos não escritos, e de mínimas de convivência e humanidade. O então parlamentar Bolsonaro homenageou o “terror de Dilma Rousseff”, e dedicou seu voto à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, conhecido torturador do regime militar, que teria torturado mulheres e crianças.
2022 ou 2018?
Em 7 de abril de 2018 o Brasil presenciou a prisão de um ex-presidente. O primeiro de sua história. Lula, assim como Dilma, foi julgado com bases jurídicas frágeis e em processos parciais. Como ficou demonstrado anos depois, promotores e juízes agiram como justiceiros, “semeando nulidades” aos processos e interferindo diretamente no processo democrático-eleitoral, com vazamentos ilegais, inclusive. Como expoente principal desse justiçamento, o ex-juiz Sérgio Moro comprovou qualquer suspeita de interesse pessoal quando aceita ser ministro do candidato favorecido por suas decisões jurídicas, muitas delas reconhecidamente parciais por tribunais superiores.
Mesmo preso, Lula impôs suas vontades ao PT e insistiu em sua candidatura até o último momento, em 2018. Escolhendo o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, para ser seu “vice”, chegaram ao segundo turno com enorme rejeição e acabaram por levar ao poder um representante fiel das piores faces da política — em qualquer parte do mundo. Em outro caso único em sua história, o Brasil tinha na presidência um político de extrema–direita, mesmo em comparação aos presidentes militares da sangrenta ditadura que o país atravessou. Ditadura que Bolsonaro chama, até hoje, de “salvação do Brasil” contra o comunismo.
Estamos há menos de um ano das próximas eleições e as opções que melhor se colocam em todas as pesquisas são as mesmas de 2018. Lula lidera em todos os cenários pesquisados, seguido de Bolsonaro. Apesar de aparecer com uma margem próxima a 20% e uma rejeição acima de 50%, um candidato que tenha a máquina e o Diário Oficial da União nas mãos nunca pode ser desprezado, ou considerado fora do segundo turno. Mesmo disputando as maiores rejeições, os dois candidatos favoritos ainda são Lula e Bolsonaro.
A terceira (e a quarta) via
Ciro Gomes (PDT) é o melhor posicionado depois da polarização posta. Com algo em torno de 10% das intenções de voto, o pedetista tenta novamente ser uma opção entre polos que precisam um do outro para continuarem como protagonistas, mas que representam “mais do mesmo”. Como estratégia, sabendo que dificilmente será uma opção da direita brasileira, principalmente dos mais radicalizados, Ciro ataca Lula frontalmente.
Nas primeiras semanas deste outubro de 2021 o debate entre os presidenciáveis se acirrou. Nas redes sociais Ciro disse que o PT "é hoje um deserto de lideranças" e que o "egocentrismo político sempre foi e continua sendo a característica mais marcante" do ex-presidente Lula. E foi além: disse que Lula teria sido “um dos principais responsáveis pela queda de Dilma". A ex-presidente reagiu chamando Ciro de mentiroso e que ele estaria “mergulhando no fundo do poço”. Por sua vez, em entrevista para uma rádio do interior do Mato Grosso do Sul, que foi transmitida pelo YouTube, Lula chamou Ciro de ignorante e de agir assim por “problema no cérebro”, em decorrência de sequelas do Covid.
"Eles só reagiram violentamente contra mim porque eu coloquei o dedo em duas feridas, duas vergonhas que eles tentam esconder: a corrupção do governo Lula e a incompetência do governo Dilma", continuou Ciro.
O episódio mostrou que o PT não está preparado para responder as principais críticas que certamente recairão sobre uma possível campanha petista à presidência. Por mais que a narrativa de inocência de Lula esteja corretamente baseada na parcialidade dos processos que sofreu, e da falta de provas para condená-lo, os governos do PT tiveram uma enxurrada de casos de corrupção, com muitos partidários sendo réus confessos e pela montanha de dinheiro devolvido. A operação Lava-Jato foi corrompida por vaidade e interesses políticos, mas, por si só, não isenta a necessidade que Lula e o PT têm de dar explicações ao país, principalmente quando se pretende voltar ao poder.
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Em números das pesquisas atuais, Ciro representaria a chamada “terceira via”, com maior potencial de crescimento e percentual atual mais robusto. Uma quarta via estaria na centro-direita e na direita democrática, representada pelo PSDB. Caso a fusão do DEM e PSL seja uma realidade para as próximas eleições, será um bloco político poderoso e habituado ao fisiologismo que poderá interferir nas decisões de candidatura no bloco direitista. O PSDB realizou prévias recentes e tem em Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, sua promessa mais promissora.
O passado dominará o pleito de 2022
O bode deverá permanecer na sala por três questões principais: a cooptação de grupos políticos responsáveis pelo início do processo de impeachment; a manutenção de eleitorado considerável que se identifica com o presidente, com sua forma de ser e sua agenda; e a fragilidade demonstrada por instituições e pelos freios e contrapesos da democracia brasileira, que não estavam preparados para um presidente que abandonasse a civilidade de maneira tão direta.
Considerando que o cenário permaneça, paripasso os atores políticos atuais mantenham-se como opção eleitoral, e atendo-se a proximidade temporal do próximo pleito, teremos um segundo turno entre a esquerda lulopetista e a extrema-direita bolsonarista. As duas opções propõe que voltemos a um passado idealizado e ultrapassado.
O lulopetismo até o momento não apresentou proposta além da ideia de “colocar o pobre no orçamento”. Embora seja uma premissa essencial a qualquer país com níveis de desigualdade como o Brasil, não há clareza sobre a forma; o PT aposta na figura messiânica de Lula, como se ela bastasse, e assim que assumir a presidência novamente todos os problemas estariam resolvidos. Essa “figura messiânica” é alimentada por uma parte da esquerda brasileira que ficou presa nos anos 1930. Com direito ao uso do lema “o petróleo é nosso” e a visão anacrônica de que o chão de fábrica e os sindicatos possuem a capacidade de mobilização necessária para alterar as regras do jogo. Lula acena diretamente a essa parte a esquerda a falar em regulação da imprensa. Além da esquerda dos anos 30, outra parte, a “esquerda cirandeira”, teima em importar da Europa e dos Estados Unidos movimentos de luta racial e social, desprezando a realidade financeira e educacional e social do brasileiro médio. Caindo em um identitarismo sem efetividade, pouco fala para além dos muros universitários.
Lula permanece na ideia do Brasil que deu certo em 2014 — com a pujança financeira trazida pelas commodities — volte a se materializar com sua vitória. Caminhando apenas em terreno seguro, deixa um vazio de comunicação com a grande imprensa, empresariado, classe média e com os chamados “nem-nem” (que rejeitam as duas figuras que estão na frente das pesquisas). Com o episódio recente do bate-boca virtual com Ciro Gomes, mostrou que ainda não está preparado para responder a questões espinhosas e não tem explicação sobre os diversos casos de corrupção de seus governos.
Bolsonaro propõe uma volta ao passado bem mais radical. Embora mantenha a ilusão de estar saudoso aos anos 1960 e 70, especificamente aos governos militares, a proposta real do bolsonarismo é o retorno ao Brasil profundo, ao Brasil dos séculos XVIII e XIX; um país desindustrializado, exclusivamente agrícola e escravocrata. Sonha em voltar a uma sociedade onde o homem trabalha e a mulher cuida da casa e dos filhos, e não pode se expressar. Se puder, também não ir votar.
As outras vias que se apresentam eleitoralmente, tampouco trazem propostas modernas. Ciro fala em Plano Nacional de Desenvolvimento, no estado indutor da economia, beirando a um populismo brizolista e desenvolvimentista no estilo JK. Os liberais — assim chamados, mas que não são em essência, sequer são keynesianos —, estão presos nos anos 1990, no capitalismo selvagem dos yuppies, e em um neoliberalismo que não funciona em realidades práticas e em bases minimamente responsáveis socialmente.
As opções políticas que se colocam em oposição à polarização posta usam como plataforma a negação; “nem Lula, nem Bolsonaro”. Ou como alternativa para impedir a chagada ao poder das duas opções à frente das pesquisas. Ao se colocarem nessa posição não apresentam soluções críveis; são contra “tudo que está aí”, mas não apresentam claramente o que ficaria no lugar. E isso se reflete na baixa aceitação do eleitorado.
O bode foi colocado na sala por várias mãos. Por liberais que acreditaram em Paulo Guedes, por justiceiros de classe média que apostaram em Moro, por homens de meia-idade que creram em fake-news espalhadas por WhatsApp, por extremistas que acreditaram na ameaça comunista, e pelo ódio — de todo tipo. Depois de toda bagunça e mau cheiro que deixou, retirar o bode parece resolver o problema. Mas a sala será exatamente a mesma de 2014 e 2018.
É preciso vencer a antipolítica
Em junho de 2013, atos de rua que tinham incialmente como pauta o aumento de tarifas no transporte coletivo em São Paulo acabaram por tomar as ruas em mais de 500 cidades brasileiras. Chamado de “Levante popular de 2013”, ou “Insurreição de 2013”, ou mesmo de “Primavera Árabe Brasileira”, o movimento de grandes proporções ganhou repercussão mundial e pautas difusas, e fez surgir movimentos como “Vem pra Rua” e o Movimento Brasil Livre (MBL); até hoje atuantes e com representantes eleitos. Os movimentos de 2013 ficaram esvaziados quando atos violentos começaram a fazer parte das ruas, e os manifestantes foram chamados de “baderneiros”.
Dilma Rousseff, no poder à época, representava uma governante de esquerda que como tal deveria incentivar e aprofundar movimentos de rua, mas foi alvo constante dos manifestantes. Verificando o perfil dos grupos que melhor souberam entender o momento, e que “ocuparam” as ruas, chega-se à conclusão de que a direita foi a principal beneficiada, e ali teria aprendido a manejar as ruas a seu favor.
Os anos seguintes, como já trazido aqui, foram marcados por acontecimentos políticos que desestabilizaram a democracia brasileira. E provocaram no eleitorado um profundo descontentamento, levando a um movimento de antipolítica e uma grave crise de representatividade. Como reflexo, nas eleições municipais de 2016 os votos inválidos nada menos que superaram todos os válidos em 5 das 50 maiores cidades do país. E em outras 13 só estiveram abaixo do primeiro colocado. Na capital fluminense, o percentual de brancos e nulos cresceu 35% em relação a 2012. Em São Paulo, 30%. A tendência foi acompanhada por outras capitais. São Paulo e Rio, Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Campo Grande, Cuiabá, Curitiba e Porto Alegre tiveram mais não-votos do que votos válidos. Em todos os casos, os índices superam consideravelmente os registrados em 2012.
Em 2018, quase 30 milhões de eleitores não compareceram às urnas no primeiro domingo de votação. O nível de abstenção de 20,3% foi o mais alto desde as eleições de 1998.
Quando o eleitorado não se sente representado por nenhuma das opções do jogo democrático, a tendência é que grupos busquem ocupar esse vácuo, normalmente pela via de líderes carismáticos, populistas, demagogos ou extremistas. Uma sociedade despolitizada acaba por ser um terreno fértil para o recrudescimento de ideais totalitários. A chegada ao cargo máximo da República por um político com perfil de Bolsonaro não acontece sem um cenário de forte de
antipolítica. A democracia deve ser sempre um “lugar de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos”, como definiu a filósofa política alemã Hannah Arendt. Quando se nega a política como único instrumento possível de manutenção do sistema democrático, e as multiplicidades são vistas como obstáculos, os fenômenos recentes como “Doria”, “Witzel” e “Bolsonaro” acontecem.
A alternativa à antipolítica é a política real; não a radicalização ideológica. Não se responde a insatisfação popular com os políticos impondo ideologias como certas ou únicas. Seja de direita ou de esquerda. Apesar dos números das pesquisas apontarem duas visões antagônicas, não há polarização real no país. Bolsonaro é um claro representante da extrema-direita. Defende abertamente alternativas reacionárias, age com preconceito e negação da ciência e de evoluções sociais, quer controlar a cultura e educação, tem um governo extremamente militarizado, ameaça a democracia de golpes totalitários, e usa a violência como estratégia de poder. Porém, Lula não é de extrema-esquerda. Seus dois governos promoveram alguma mobilidade social — mesmo que fictícia e provisória —, mas atuaram claramente na socialdemocracia. Não foram alteradas as estruturas do sistema financeiro nacional, não estatizou procurando controlar os meios de produção, não taxou grandes fortunas e dividendos, e não propôs intervenções diretas em cultura e educação. Portanto, não são dois polos extremados opostos.
Sem Bolsonaro, a política brasileira estaria lidando no campo democrático, onde a alternância de ideias e a multiplicidade de rostos são bem-vindas. Partindo dessa premissa, as forças políticas que rejeitam o extremismo deveriam ter como norte único não continuar aceitando o rompimento com a legalidade, com as regras de convivência, e com os ordenamentos não escritos — com o antidemocrático, em resumo. Quando se rejeita a participação em movimentos de rua que pediam o impeachment de Bolsonaro por terem em sua composição grupos políticos que não se concorda totalmente, como fez o PT ao negar presença em atos com o MBL, se coloca de lado a possiblidade de convivência democrática. Principalmente quando se usa como alegação o fato desses grupos terem participado de rupturas democráticas passadas, como no “golpe” de 2016, e em ato contínuo buscam-se coalizões com políticos diretamente responsáveis por essas rupturas.
A política real se pratica na diferença e na aceitação da alternância de poder. Mesmo o PT sendo o partido brasileiro com maior organização, e com a base eleitoral mais sólida e orgânica, ele insiste na antipolítica e na despolitização ao impor aos seus militantes uma espécie de soberba injustificada, e se colocando como o único caminho possível contra a ameaça democrática em curso.
Para retirar o bode da sala com segurança, e manter a capacidade real de reestruturação do ambiente, é preciso vencer a antipolítica e voltar ao diálogo e formar alianças democráticas com os que pensam diferente. Ou até de forma oposta. Uma “Frente Ampla” não seria uma opção ou mera vontade partidária. Estaria na posição de obrigação democrática. Porém, seguiremos para 2022 com as mesmas opções de 2014; e com as mesmas vaidades suicidas.