As tradições são construídas essencialmente pela comunicação oral de fatos, de lendas, ritos, e costumes. Para além de transmitir conhecimento, elas demonstram as condições materiais que viviam uma sociedade em tempos passados. A região que hoje Campos está inserida— denominada em meados do século XVI de Capitania de São Tomé — é celeiro de muitas tradições.
A história de Campos dos Goytacazes confunde-se com a colonização do país, se consolidando como uma Vila importante do Império Português em terras brasileiras. Já possuía, em 1677, Casa de Câmara, de Cadeia e alguns engenhos de açúcar — na verdade eram engenhocas familiares, sobretudo para uma produção de alimentação do gado. O forte naquele momento é o pecuária, de onde vieram duas importantes tradições: o laço e a sela campistas. O modo de laçar se desenvolveu ao longo do tempo pela falta de cercas e currais na região, levando a captura do gado que ficava livre na restinga — o chamado “boi do vento”. Quem capturasse, era dono do animal. O que levou ao modo único de laçar desenvolvido nesse ambiente.
A tradição da sela campista veio da oralidade, do conhecimento transmitido por seleiros e historiadores, mas também pelas condições da terra. Campos se constituía como “uma extensa planície aluvionar, permeada de rios, córregos, lagoas e charcos”, como informa a historiadora e arqueóloga Simonne Teixeira, professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). — A ‘sela campista’ tinha características que a tornam especialmente adequadas ao tipo de terreno da região — complementa Simonne.
Características que também são objeto de estudo da historiadora Sylvia Paes, que fala sobre a importância da sela na história de Campos e o início da pecuária na região.
— As terras ocupadas muito perto do mar, muito alagadas, cheias de rios, riachos e pântanos. Como seria possível plantar a cana no meio de tanta água? A saída então foi a criação de gado, que era deixado solto, ao vento, daí se falar naquela época “gado de vento”, quase não era preciso pessoas para cuidar do rebanho. A sela, com parte traseira um pouco mais inclinada e a da frente sem cabeça alta, propiciando mais segurança e conforto é acompanhada do arreio campista e do freio campista, todos esses elementos foram com o tempo adaptados as necessidades do homem dos campos de formação recente e de alagadiços da Baixada Campista e hoje são reconhecidos internacionalmente — explica Sylvia.
A sela campista e a Cavalhada
A pesquisadora e autora do livro “A Cavalhada de Santo Amaro: Uma Tradição da Baixada Campista”, traz as ligações embrionárias da sela com outra importante tradição goytacá: a Cavalhada, dramatização da batalha entre mouros e cristãos, referência à reconquista de território na península Ibérica, após 800 anos de dominação moura, tradição que chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses. A típica sela campista é utilizada até hoje nas festividades de Santo Amaro. Gisele traz, nas palavras de Seu Joel, Capitão Mouro, as características únicas da sela campista:
— A diferença da sela campista para a comum é que ela não tem ‘cabeça’. Ela é lisa na frente. Com as boinas. Isso é para a proteção, no joelho tem essas boinas. Ela dá firmeza para o cavaleiro. Ela tem uma proteção do joelho. Você já viu essa sela desforrada? Essa aba do lado protege o joelho do cavaleiro — conta o Capitão da Cavalhada.
Gisele reforça que “a proteção deste patrimônio (sela campista) é fundamental para contribuir na salvaguarda da Cavalhada de Santo Amaro" e destaca os “modos de fazer desse relevante patrimônio imaterial”, que segundo a pesquisadora são “saberes passados de geração em geração, fazendo com que a sela tenha características peculiares”.
Os esforços atuais para manter essas tradições
Para que a sela e o laço campistas se tornem oficialmente patrimônios culturais de Campos e região, duas instituições devem ser provocadas. Câmara de Vereadores e Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Campos (Coppam) possuem a legitimidade para esse reconhecimento. A sela campista também ocupa lugar de destaque no Museu Histórico de Campos. Com dois exemplares expostos no segundo andar do prédio que abriga o Museu — Solar Visconde de Araruama — a tradição está acessível aos campistas.
— Ter um exemplo da sela campista no Museu é uma forma de materializar, esse importante patrimônio imaterial, que é o "modo de fazer" a sela, sendo utilizado como objeto de representatividade da identidade local. As selas feminina e masculina se encontram na sala do século XVIII, na qual mencionamos a primeira produção econômica da região que foi o gado. E a utilização da sela e suas características — comenta Graziela Escocard, coordenadora do Museu Histórico.
O Museu pretende ser palco de uma reunião entre pesquisadores e seleiros da região. Para manter uma tradição viva, as instituições públicas que cuidam da memória, história e cultura devem estar atentas para que o conhecimento seja perpetuado e institucionalizado como elemento de formação de um povo. Graziela pretende com a reunião, levar esse traço da cultura popular para o “conhecimento do grande público”.
— Gostaria de adentrar mais no assunto da sela campista, oferecendo uma reunião no Museu Histórico de Campos com pesquisadores e os seleiros da região. É assim tornar esse ofício quase que desconhecido e extinto para conhecimento do grande público — diz Graziela.
Sela e laço únicos de uma região são elementos históricos importantes para conhecer as tradições e as condições de vida e produção dos habitantes que transformaram aos moldes da época, a planície de terras alagadiças em uma organização política-administrativa elevada à categoria de cidade em 1835. Ao Coppam, Câmara e sociedade civil cabem a análise e reconhecimento desses fatos, ritos e costumes, para que tradições não se percam e deixem de gerar identidade e entendimento das origens da sociedade no Norte Fluminense — em suas grandiosidades e mazelas.