Um largo, um terreiro ou um rossio — hoje o que chamamos de “praça” — sempre foi um espaço de interação. Mesmo quando ainda era chamada assim — de rossio, um terreno roçado — a praça cumpria o papel de convivência entre os diferentes; onde a diversidade convivia em relativa harmonia. Nos espaços públicos de uma cidade a população pode manifestar sua territorialidade e ocupar física e socialmente. Neles, os fiéis podem demonstrar sua fé, os poderosos, seu poder, e os pobres, sua pobreza. Expostas, estão, as potencialidades e as mazelas.
Em Campos, não se pode falar em praça pública (como toda praça é de fato) sem que sejamos apresentados à imagem mental da Praça do Santíssimo Salvador, localizada no coração da cidade, à margem do Rio Paraíba do Sul, de “mágica torrente" — apesar de haverem outras tantas praças e logradouros de importância vital para a formação da cidade (uma em especial, que ainda trataremos aqui). Na Campos colonial, a Praça São Salvador, como foi chamada desde 1867, cumpria esse papel emancipador, sendo um espaço polivalente e palco de muitas manifestações dos costumes e hábitos dos primeiros campistas que se reconheceram organizados como uma cidade.
Conforme crescia a importância do território para o Império, “a” Praça da Vila de São Salvador — passa a ser Campos, recebendo o status de ‘cidade’ em 1835, apesar de ser uma de fato muito antes disso — também era cada vez mais proeminente. Os edifícios que foram erguidos fronteiriços a ela, públicos e residenciais, davam ainda mais centralidade aquele espaço público, como polo da vida social e também eixo de crescimento urbano. Ao seu redor, estavam a Igreja Mãe dos Homens, a Santa Casa de Misericórdia, alguns solares residenciais, a Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho. Exercendo sua função na plenitude, concedida pelo seu próprio contexto histórico, a Praça do Santíssimo Salvador era o lugar de articulação entre os diversos estratos da sociedade.
A cultura e a cidade
A cidade é algo mais do que um “amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde e telefones”. Para definirmos uma cidade é preciso entender seu modo, sua cultura, seus costumes, tradições e suas determinações históricas e também contemporâneas. A cidade é produto de sua realidade material e, principalmente, do que as pessoas que nela vivem querem fazer dela, que ultrapassa — em muito — a frieza de um simples amontoado de instituições administrativas, de tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários públicos.
Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo e uma construção artificial. Ela é fruto de sua cultura, história e memória. Daí a importância vital da educação patrimonial ou de definirmos a data de nascimento da urbe, de uma Vila, pois remonta ao real início desses processos. Ora, se estamos com o entendimento da cidade como organismo vivo, o que faríamos, enquanto indivíduos, caso fosse apagada nossa memória? Saberíamos quem somos? Saberíamos para onde ir?
A religião e o poder
Não é uma exclusividade de Campos dos Goytacazes o fato de que muitas praças públicas terem surgido como adro (espaço livre à frente do edifício) de uma Igreja. A Praça São Salvador é um fiel exemplo disto, onde a igreja que hoje conhecemos como Catedral, antiga Igreja Matriz, figura como motivo primeiro de existência da praça. Segundo relatos de Júlio Feydit (intelectual, político e industrial campista), havia uma primeira igreja, mas que se encontrava deteriorada, e decidiu-se por reconstruí-la, onde “o povo julgou mais acertado mudar ou fazer a nova matriz em lugar mais alto”. Assim foi construída, em 1745, a Catedral, onde está hoje.
Campos crescia vertiginosamente naquele século, e a ocupação de seus espaços urbanos tomavam diferentes rumos, mudavam de nome e de finalidade. Com o fim da escravidão e industrialização crescente pelo beneficamente da cana-de–açúcar, a cidade foi sendo levada à modernidade. Os “tempos modernos” transformara também as relações sociais. Uma nova burguesia urbana composta por profissionais liberais, intelectuais, comerciantes, investidores e servidores públicos, sufocava a então poderosa elite aristocrática, muito ligada ao poder da Igreja Católica e de grandes proprietários rurais.
A cidade fazia escolhas para uma nova formulação urbana, por definições estéticas, por necessidades e por desejos de grandeza. As reconfigurações do espaço público foram muitas. Desrespeito ao patrimônio material, sendo igualmente numeroso, acontecia em nome de uma modernidade trazida de fora, alienante.
A despeito da pouca compreensão preservacionista, a Praça continuava um ponto de centralidade, abrigando em seu entorno animados cafés onde a tradicional — e a nova — burguesia se encontrava. Tal como em suas xícaras servidas aos clientes, a efervescência do Café High-Life também estava nos negócios. Por ali, circulavam usineiros, industriais, fazendeiros e os mais diversos tipos de negociantes. As conversas fluíam da cotação do açúcar até as disputas políticas — locais e nacionais (campistas estiveram nos mais altos cargos da República). Tudo perceptível e quase palpável em um simples passeio pela Praça e seus adendos.
A vida acontecia nas tardes na Confeitaria Americana, idas ao Teatro Orion, Lyra de Apollo e Biblioteca Municipal e nos pontos de bonde. A centralidade da Praça São Salvador era ainda reforçada por instituições como Associação Comercial, Repartição dos Telégrafos, Câmara Municipal e Banco do Brasil.
A contemporaneidade: ainda discutimos uma praça
Praças e ruas são elementos fundamentais do espaço público, e os usos que lhes são atribuídos interferem diretamente no que chamamos atualmente de “planejamento urbano” e de “ocupação do solo”. Sim, ainda são espaços de poder — religioso e político. Em Campos, alguns ordenamentos já consolidados impõem os limites e determinam condições para que a “ocupação” aconteça de forma ordenada. O Plano Diretor e a Lei Orgânica Municipal são construções legislativas essenciais para essa compreensão. Em relação ao patrimônio histórico, a Lei 8487 de 2013 cria um Conselho (Coppam) com poderes para protegê-lo.
Com idades distantes por mais de um século, a Praça São Salvador e o Parque Alberto Sampaio tem em comum o fato de serem, por muitas vezes, objetos de intervenções do poder público.
A Praça foi alterada em 1893, em 1940 (quando recebeu pavimentação com pedras portuguesas, retirando dois enormes tabuleiros gramados, considerados “deselegantes e impróprios”), em 1980 (com árvores, bancos de madeira e um calçadão em mosaico português) e nos anos 2000 quando foi enfim descaracterizada por completo. Buscando-se “ares de Praça de São Marcos em Veneza e a pirâmide de vidro como a do Louvre”, conseguiu-se, na verdade, diminuir consideravelmente sua área verde e a transformá-la em um forno de mármore escorregadio.
O Parque, construído em 1988, homenageia Alberto Sampaio, campista referência mundial em botânica, além de médico homeopata, geógrafo e sociólogo, morto em 1946. O local, antes conhecido como Jardim de Alah, era muito arborizado e repleto de simbolismos. Recebeu do poder público abandono por mais de 20 anos, além de um camelódromo improvisado, um estacionamento e um viaduto. Em tentativa de intervenção mais recente, propôs-se que o lugar passasse a ser chamado de “Praça da Bíblia”, como um dos acordos para cessão do espaço público a uma associação de evangélicos.
Para reforçar o atabalhoamento da proposta de intervenção, Alberto Sampaio divide as ali homenagens com o saudoso diretor teatral Antônio Roberto de Góes Cavalcanti, o Kapi, que dá nome a um anfiteatro incrustado no Parque. O espaço público impôs, então, sua história e seu caráter “vivo” — embora ainda possa perder a batalha para o poder e a religião.
Campos é uma cidade histórica; e como a maioria assim considerada visualiza na área central sua origem, exposta em edificações e compreendida pelas vivências sociais. A ocupação de praças sempre teve relação com o poder, mesmo quando ainda eram chamadas de Ágoras, na Grécia Antiga, onde os assuntos da pólis eram discutidos. No Brasil, Estado e Religião são separados desde 1890. A laicidade é uma garantia constitucional. Uma praça é um espaço de cultura, poder e religião. Mas, acima tudo de cidadania. De todos, portanto.