A praça, a cultura, o poder e a religião em Campos
10/07/2021 10:01 - Atualizado em 10/07/2021 10:07
Parque Alberto Sampaio na contemporaneidade, relações de poder, abandono e potencial cultural
Parque Alberto Sampaio na contemporaneidade, relações de poder, abandono e potencial cultural / João Pimentel
Um largo, um terreiro ou um rossio — hoje o que chamamos de “praça” — sempre foi um espaço de interação. Mesmo quando ainda era chamada assim — de rossio, um terreno roçado — a praça cumpria o papel de convivência entre os diferentes; onde a diversidade convivia em relativa harmonia. Nos espaços públicos de uma cidade a população pode manifestar sua territorialidade e ocupar física e socialmente. Neles, os fiéis podem demonstrar sua fé, os poderosos, seu poder, e os pobres, sua pobreza. Expostas, estão, as potencialidades e as mazelas.
Em Campos, não se pode falar em praça pública (como toda praça é de fato) sem que sejamos apresentados à imagem mental da Praça do Santíssimo Salvador, localizada no coração da cidade, à margem do Rio Paraíba do Sul, de “mágica torrente" — apesar de haverem outras tantas praças e logradouros de importância vital para a formação da cidade (uma em especial, que ainda trataremos aqui). Na Campos colonial, a Praça São Salvador, como foi chamada desde 1867, cumpria esse papel emancipador, sendo um espaço polivalente e palco de muitas manifestações dos costumes e hábitos dos primeiros campistas que se reconheceram organizados como uma cidade.
Praça do Santíssimo Salvador, esquina da Rua 21 de Abril
Praça do Santíssimo Salvador, esquina da Rua 21 de Abril / Amicampos
Conforme crescia a importância do território para o Império, “a” Praça da Vila de São Salvador — passa a ser Campos, recebendo o status de ‘cidade’ em 1835, apesar de ser uma de fato muito antes disso — também era cada vez mais proeminente. Os edifícios que foram erguidos fronteiriços a ela, públicos e residenciais, davam ainda mais centralidade aquele espaço público, como polo da vida social e também eixo de crescimento urbano. Ao seu redor, estavam a Igreja Mãe dos Homens, a Santa Casa de Misericórdia, alguns solares residenciais, a Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho. Exercendo sua função na plenitude, concedida pelo seu próprio contexto histórico, a Praça do Santíssimo Salvador era o lugar de articulação entre os diversos estratos da sociedade.
A cultura e a cidade
A cidade é algo mais do que um “amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde e telefones”. Para definirmos uma cidade é preciso entender seu modo, sua cultura, seus costumes, tradições e suas determinações históricas e também contemporâneas. A cidade é produto de sua realidade material e, principalmente, do que as pessoas que nela vivem querem fazer dela, que ultrapassa — em muito — a frieza de um simples amontoado de instituições administrativas, de tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários públicos.
Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo e uma construção artificial. Ela é fruto de sua cultura, história e memória. Daí a importância vital da educação patrimonial ou de definirmos a data de nascimento da urbe, de uma Vila, pois remonta ao real início desses processos. Ora, se estamos com o entendimento da cidade como organismo vivo, o que faríamos, enquanto indivíduos, caso fosse apagada nossa memória? Saberíamos quem somos? Saberíamos para onde ir?
A praça e a Igreja: comemorações 368ª Festa do Santíssimo Salvador - Diocese de Campos
A praça e a Igreja: comemorações 368ª Festa do Santíssimo Salvador - Diocese de Campos
A religião e o poder
Não é uma exclusividade de Campos dos Goytacazes o fato de que muitas praças públicas terem surgido como adro (espaço livre à frente do edifício) de uma Igreja. A Praça São Salvador é um fiel exemplo disto, onde a igreja que hoje conhecemos como Catedral, antiga Igreja Matriz, figura como motivo primeiro de existência da praça. Segundo relatos de Júlio Feydit (intelectual, político e industrial campista), havia uma primeira igreja, mas que se encontrava deteriorada, e decidiu-se por reconstruí-la, onde “o povo julgou mais acertado mudar ou fazer a nova matriz em lugar mais alto”. Assim foi construída, em 1745, a Catedral, onde está hoje.
Campos crescia vertiginosamente naquele século, e a ocupação de seus espaços urbanos tomavam diferentes rumos, mudavam de nome e de finalidade. Com o fim da escravidão e industrialização crescente pelo beneficamente da cana-de–açúcar, a cidade foi sendo levada à modernidade. Os “tempos modernos” transformara também as relações sociais. Uma nova burguesia urbana composta por profissionais liberais, intelectuais, comerciantes, investidores e servidores públicos, sufocava a então poderosa elite aristocrática, muito ligada ao poder da Igreja Católica e de grandes proprietários rurais.
Amicampos
A cidade fazia escolhas para uma nova formulação urbana, por definições estéticas, por necessidades e por desejos de grandeza. As reconfigurações do espaço público foram muitas. Desrespeito ao patrimônio material, sendo igualmente numeroso, acontecia em nome de uma modernidade trazida de fora, alienante.
A despeito da pouca compreensão preservacionista, a Praça continuava um ponto de centralidade, abrigando em seu entorno animados cafés onde a tradicional — e a nova — burguesia se encontrava. Tal como em suas xícaras servidas aos clientes, a efervescência do Café High-Life também estava nos negócios. Por ali, circulavam usineiros, industriais, fazendeiros e os mais diversos tipos de negociantes. As conversas fluíam da cotação do açúcar até as disputas políticas — locais e nacionais (campistas estiveram nos mais altos cargos da República). Tudo perceptível e quase palpável em um simples passeio pela Praça e seus adendos.
A vida acontecia nas tardes na Confeitaria Americana, idas ao Teatro Orion, Lyra de Apollo e Biblioteca Municipal e nos pontos de bonde. A centralidade da Praça São Salvador era ainda reforçada por instituições como Associação Comercial, Repartição dos Telégrafos, Câmara Municipal e Banco do Brasil.
A contemporaneidade: ainda discutimos uma praça
Praças e ruas são elementos fundamentais do espaço público, e os usos que lhes são atribuídos interferem diretamente no que chamamos atualmente de “planejamento urbano” e de “ocupação do solo”. Sim, ainda são espaços de poder — religioso e político. Em Campos, alguns ordenamentos já consolidados impõem os limites e determinam condições para que a “ocupação” aconteça de forma ordenada. O Plano Diretor e a Lei Orgânica Municipal são construções legislativas essenciais para essa compreensão. Em relação ao patrimônio histórico, a Lei 8487 de 2013 cria um Conselho (Coppam) com poderes para protegê-lo.
Com idades distantes por mais de um século, a Praça São Salvador e o Parque Alberto Sampaio tem em comum o fato de serem, por muitas vezes, objetos de intervenções do poder público.
Jardim de Alah, quando o verde ainda predominava
Jardim de Alah, quando o verde ainda predominava / Campos em Fotos
A Praça foi alterada em 1893, em 1940 (quando recebeu pavimentação com pedras portuguesas, retirando dois enormes tabuleiros gramados, considerados “deselegantes e impróprios”), em 1980 (com árvores, bancos de madeira e um calçadão em mosaico português) e nos anos 2000 quando foi enfim descaracterizada por completo. Buscando-se “ares de Praça de São Marcos em Veneza e a pirâmide de vidro como a do Louvre”, conseguiu-se, na verdade, diminuir consideravelmente sua área verde e a transformá-la em um forno de mármore escorregadio.
O Parque, construído em 1988, homenageia Alberto Sampaio, campista referência mundial em botânica, além de médico homeopata, geógrafo e sociólogo, morto em 1946. O local, antes conhecido como Jardim de Alah, era muito arborizado e repleto de simbolismos. Recebeu do poder público abandono por mais de 20 anos, além de um camelódromo improvisado, um estacionamento e um viaduto. Em tentativa de intervenção mais recente, propôs-se que o lugar passasse a ser chamado de “Praça da Bíblia”, como um dos acordos para cessão do espaço público a uma associação de evangélicos.
Para reforçar o atabalhoamento da proposta de intervenção, Alberto Sampaio divide as ali homenagens com o saudoso diretor teatral Antônio Roberto de Góes Cavalcanti, o Kapi, que dá nome a um anfiteatro incrustado no Parque. O espaço público impôs, então, sua história e seu caráter “vivo” — embora ainda possa perder a batalha para o poder e a religião.
Campos é uma cidade histórica; e como a maioria assim considerada visualiza na área central sua origem, exposta em edificações e compreendida pelas vivências sociais. A ocupação de praças sempre teve relação com o poder, mesmo quando ainda eram chamadas de Ágoras, na Grécia Antiga, onde os assuntos da pólis eram discutidos. No Brasil, Estado e Religião são separados desde 1890. A laicidade é uma garantia constitucional. Uma praça é um espaço de cultura, poder e religião. Mas, acima tudo de cidadania. De todos, portanto.
Panfelto original da peça
Panfelto original da peça "Arena conta Zumbi", com direção de Kapi, inaugurava o anfiteatro do Parque Alberto Sampaio
 
 
 
 
 
 

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    Edmundo Siqueira

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