Foi uma semana difícil. Em nota emitida na última quarta-feira (6) a prefeitura de Campos dos Goytacazes — cidade definida como a “capital do intelectualismo fluminense” pelo escritor Horácio Souza em seu livro Cyclo Aureo: Historia do 1º Centenario de Campos, de 1935 — decidiu suspender o contrato de todos estagiários e profissionais contratados sob o regime de RPA (Recibo de Pagamento a Autônomos) do município. A decisão caiu com uma bomba em muitas famílias campistas. Duas delas, sentidas com extrema preocupação por intelectuais, professores, historiadores e gente ligada à cultura em Campos: as famílias do Museu e do Arquivo Público. A cidade perde, com uma “canetada”, a equipe, as ações e a continuidade do brilhante trabalho dessas duas famílias.
Desde a primeira abordagem do assunto (confira aqui), o blog procurou a prefeitura, abrindo espaço para que se manifestasse, através de porta-voz, sobre o caso. Em resposta, a assessoria de comunicação informou que já havia emito nota (íntegra aqui) e que ninguém iria comentar. Na nota, a prefeitura oferece suas justificativas para a suspensão dos contratos.
Em 1834, Campos já tinha um jornal circulando. ‘O Campista’, sob a direção do médico Francisco José Alypio foi a gênese do histórico ‘Monitor Campista’, que nascia em 1846 com sua logomarca em letras góticas, sendo o terceiro fundado no Brasil. A planície Goytacá já demonstrava que seria um berço não só fluminense como nacional, de intelectualidade e cultura. Como alguns exemplos dessa efervescência jornalística e literária campistas, está o jornalista e poeta romântico José Alexandre Teixeira de Melo, o também jornalista e escritor abolicionista José do Patrocínio, o presidente da República nascido em Campos, Nilo Peçanha, além do romancista e contista José Cândido de Carvalho.
O Palácio da Cultura e Casa de Cultura Villa Maria
Campos já havia perdido uma importante “família” na cultura. O Palácio da Cultura idealizado pelo prefeito Rockefeller de Lima na década de 1970, nos moldes do concretismo. Essa família começou quando a Biblioteca Nilo Peçanha já não comportava o acervo e o fluxo de leitores, levando a construção de um monumento arquitetônico voltado para a arte em sua concepção mais ampla. O prédio que seguia as tendências vanguardistas europeias e do movimento modernista e concretista brasileiro em uma área de aproximadamente 9.560 m². O paisagista Roberto Burle Marx foi convidado para projetar o jardim. O Palácio tronou-se tão incrível que foi considerado pela Associação Brasileira de Engenharia como a obra mais importante no Brasil do ano de 1973. Apesar de idealizado por Rockefeller, foi inaugurado pelo prefeito seguinte, Zezé Barbosa, avô do atual prefeito Rafael Diniz. Porém, mesmo com tanta ebulição cultural não foi suficiente para sustentar o ideal e manter o Palácio da Cultura em atividade.
Outro exemplo da preocupação de campistas com arte, educação e cultura, o que hoje conhecemos como a Casa de Cultura Villa Maria foi construída em 1918, como um presente de para Maria Queiroz de Oliveira, D. Finazinha. Na ausência de herdeiros, ela deixa a Casa em testamento para a primeira universidade que viesse a instalar-se na cidade. Com a criação da Universidade Estadual Norte Fluminense - UENF, no ano de 1993, a Villa Maria passa a integrar seu patrimônio. Como um de seus filhos, a Fonoteca da Villa foi idealizada pelo antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro, que dá nome à Uenf, inspirada na Fonoteca do Memorial da América Latina, Darcy almejava para o projeto em Campos mesclar lazer, estudo e pesquisa.
A Villa ainda resiste. Recebe eventos culturais e permanece erguida em um dos locais mais altos e históricos da planície, de onde D. Finazinha estaria em uma de suas janelas olhando com tristeza o fechamento do Museu de Campos e do Arquivo Público.
Muitas outras ações e instituições poderiam ser citadas, como exemplo o importante Museu Olavo Cardoso, que é um misto de museu-casa da cidade. Instalado na antiga residência de Olavo Cardoso, proeminente usineiro e filantropo campista.
Encerramento das atividades do Museu e do Arquivo
Mesmo com a promessa de que tudo voltará ao normal após a crise sanitária do Coronavírus, a preocupação de que muito se perderá com o esvaziamento no Museu e no Arquivo tem fundamento. A exemplo do Palácio da Cultura, que até o momento permanece sem exercer sua nobre função na nobre Avenida Pelinca, essas duas instituições correm sério risco. Os prédios históricos que as abrigam — o Museu no Solar Visconde de Araruama e o Arquivo no Solar do Colégio — perigosamente podem ficar cobertos por tapumes e faixas de interdição.
Criado pela Lei nº 7.060 de 18 de maio de 2001, o Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho atua como um dos principais arquivos municipais do país na guarda e preservação de documentos históricos, além de permitir o acesso ao público e desenvolver pesquisas de relevado valor. É preciso ressaltar que “o Arquivo é o que existe dentro dele, ou seja, seu acervo – os documentos, e as vidas que lá estão – as pessoas. Esses profissionais são especiais, pois desenvolvem um trabalho extremamente técnico e qualificado. Há pessoas ali que há 19 anos trabalham com restauração, algo absolutamente delicado e raro”, lembra Rafaela Machado, diretora do órgão.
No Museu Histórico é possível fazer uma viagem por toda a trajetória da cidade. Inaugurado em 29 de junho de 2012 e instalado no Solar do Visconde de Araruama depois de um longo período de reformas, já recebeu cerca de 150 mil visitantes desde sua inauguração. Assim como o Arquivo, o Museu vinha mantendo as atividades on-line a “sistemática realização de exposição temporárias, com temas históricos relacionados à nossa cidade, como forma de atrair o público ao Museu. Agora com a pandemia nossa reinvenção com ações ligadas ao Museu Virtual, falando sobre nosso acervo, através de vídeos, fotos. As lives (bate-papos), em parceria com a Secretaria de Educação e com a Uenf”. Ressalta Graziela Escocard, diretora do Museu.
Intelectuais, professores e historiadores ligados à cultura de Campos se manifestam
Ex-diretor do Arquivo, Carlos Freitas, endossou campanha em favor das instituições criada pelo CAHIS UFF, Centro Acadêmico de História da Universidade Federal Fluminense, onde pede que todos os “estudantes de iniciação científica, recém-formado, mestrando, doutorando, professor doutor que fez ou faz uso do acervo documental e de memória do Arquivo ou do Museu em suas pesquisas, poste um vídeo em suas redes sociais em defesa da memória da cidade e do país”.
Jornalista e presidente da Associação de Imprensa Campista (AIC), Wellington Cordeiro, nome sempre ligado à ações culturais relevantes na cidade, também vê com preocupação o fechamento. Diz que é mais uma “demonstração de desimportância que é dada à Cultura”.
— O Arquivo Público Municipal e o Museu de Campos são instituições necessárias para dar sentido de pertencimento à população campista, preservando nossa memória e apresentando nossa história. Para além de seus acervos, estão as pessoas que sempre cumpriram com zelo essa digna incumbência. Sem essas pessoas comprometidas, não sobra nada. Espero que após esse período de isolamento, esses profissionais sejam revalorizados em suas funções e, não apenas descartados. É de se destacar que mesmo durante a pandemia, esses espaços culturais se reinventaram e não paralisaram. Veremos se ao término do isolamento, essa equipe que sempre foi muito dedicada, estará de volta. Essa é mais uma demonstração de desimportância que é dada à Cultura.
Reitor da Uenf, Raul Palacio, cita a importância das instituições e comenta sobre a fragilidade imposta pela equipe ser formada exclusivamente pelo regime de RPA. Palacio avalia que em uma eventual volta às atividades, deve ser discutida a realização de concurso público ou relocação de servidores para compor os quadros das instituições.
— Lamentar que tenham sido fechadas essas duas instituições de pesquisa e também de cultura. Em um momento em que mais estamos precisando de pesquisa e cultura. Além disso, eu queria chamar atenção para a fragilidade de como essas instituições funcionam. Se for real que elas funcionam com RPA ou algum tipo de funcionário não fixo, na realidade torna muito frágil a situação dessas intuições que são extremamente importantes. A grande verdade é que deveríamos ter funcionário público concursado o qual teria resguardado o funcionamento dessas instituições. Então, além do fechamento é importante chamar a atenção na fragilidade do ponto de vista de contratação de pessoal que essas instituições funcionam. É importante que na reabertura possa se contratar profissionais através de concurso público, em função da importância que ambas as instituições têm.
O professor, advogado, historiador e escritor Hélio Coelho, ex-presidente da Academia Campista de Letras (ACL), nome de grande relevância na cultura da cidade, emitiu uma Carta Aberta sobre o caso. Helinho, como é conhecido carinhosamente no meio cultural, autorizou a reprodução de parte de seu documento aqui:
— Graziela Escocard Ribeiro e Rafaela Machado, suas Diretoras e equipe, mesmo com prédios fechados, faziam de tudo para que o Sol da Cultura e do conhecimento entrasse no simbolismo dos Solares e afastasse o bolor do obscurantismo irradiando saber e conhecimento para dentro de nossas casas, amenizando as tensões de nosso recolhimento e isolamento. Senhor Prefeito, saúde é muito mais do que ausência de doença no corpo! O senhor seu pai foi um dos mais brilhantes educadores e intelectuais desta Terra, um amante zeloso e cuidador refinado da Cultura e tenho certeza de que em conjunto com a ilustre Professora que é a Senhora sua Mãe, tenho certeza de que lhe transmitiram esses e outros valores, razão do meu espanto e indignação ao tomar conhecimento do que Vossa Excelência acaba de fazer com essas duas grandes instituições e seus zelosos, necessários e reduzidos servidores. Cultura faz bem à alma, alimenta o espírito, fortalece identidades, preserva e dá sentidos à memória, revigora o corpo e a vontade de viver! É uma das dimensões da saúde plena a que todo cidadão tem direito.
O Professor Eugênio Soares, pesquisador do Laboratório de História Regional e Patrimônio (UFF) e do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e Conexões Atlânticas (LACES/UFES), autor dos livros “Vivendo em tempos de tirania : a Vila de São Salvador dos Campos dos Goytacazes, tão perto do Rio de Janeiro, tão longe do Espírito Santo (1808-1832)” e “A visita do Imperador”, lembra que os sucessivos governos em Campos deram pouco valor ao conhecimento histórico e que o Arquivo e o Museu cumprem um importante papel nessa tomada de consciência, sendo os guardiões e promotores de nossa memória e história.
— Às vezes, tenho a impressão de que a amnésia coletiva e o esquecimento são um projeto deliberado de sucessivos governos municipais (executivo e legislativo) das últimas décadas. Com raras exceções, a exemplo da boa gestão do médico Edson Batista na Câmara Municipal, as autoridades políticas locais não dão o menor valor a produção do conhecimento histórico, memorialístico e patrimonial. Elas agem como se o presente não trouxesse consigo o passado e as virtualidades do futuro, como se as estruturas que condicionam as nossas vidas surgissem apenas de um aqui agora arbitrário. Nestes termos, vivem sonâmbulos na superfície do eterno presente, pois mal lêem o que é produzido pelos pesquisadores locais (UFF, IFF, UENF, ISEPAM) sobre a relação passado/presente da região. Entendam, o Arquivo Público Municipal e o Museu Histórico cumprem um importante papel nessa tomada de consciência, são os guardiões e promotores de nossa Memória e História. Eu sei que a medida da prefeitura atingiu a vários setores. Sou solidário com todos aqueles que foram lançados à própria sorte nesse momento de pandemia. Porém, é triste perceber que as duas instituições (Arquivo e Museu) sequer possuem um número suficiente de funcionários para tocarem o trabalho adiante quando esse horror terminar. Isso mostra o desprestígio que a sensibilidade e a inteligência gozam em nossa cidade.
Antônio Carlos Jucá, doutor em história pela UFF, diretor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que ação da prefeitura "demonstra uma enorme miopia, e a grande prejudicada será a população campista".
— A suspensão das atividades do Museu e do Arquivo histórico de Campos são um verdadeiro desastre para a história nacional. Campos possui um rico acervo, já utilizado por inúmeros historiadores para melhor compreender tanto a história local quanto a nacional. Com a criação de cursos de história na UENF e, mais recentemente, na UFF, a procura por esses acervos cresceu. É preciso lembrar que as equipes que trabalham nessas instituições são altamente especializadas. Dissolvê-las significa uma enorme perda de conhecimento essencial para o seu funcionamento, tanto nesse momento quanto depois que a pandemia acabar. Demonstra uma enorme miopia, e a grande prejudicada será a população campista.