Quem está de ressaca da folia, mas pronto para voltar à festa, precisa agradecer a Heitor Villa-Lobos (1887–1959). Não fosse pelo maestro, o Carnaval não seria o mesmo. Foi quando o compositor das Bachianas Brasileiras trocou a batuta pela caneta, dirigindo o Departamento de Música da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, que os cordões carnavalescos saíram da marginalidade, transformando a festa e o samba em símbolos da identidade nacional.
Essa é uma das histórias lembradas no recém-lançado “Uma História do Samba: As Origens”, primeiro volume de uma trilogia do jornalista Lira Neto, autor da série Getúlio.
— Para ser aceito, o samba passa por um processo de branqueamento, de desafricanização. Os cordões carnavalescos, por exemplo, haviam sido banidos da paisagem urbana pelas autoridades policiais e sanitárias, considerados sujos e malvados. Quando Villa-Lobos, em 1939, sob o patrocínio do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), faz o resgate, é uma recriação absolutamente anódina, desprovida do potencial de insubmissão original — explica o autor.
O livro de Lira Neto repassa os personagens e as paisagens que ajudaram a formar o samba, desde a última década do século 19 até os anos 1930. Inicialmente considerado malvisto pela elite carioca, por conta de sua origem humilde e negra, o gênero musical se desenvolve a partir de gênios populares como Zé Espinguela, Hilário Jovino, Ismael Silva, Sinhô, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Bide e Armando Marçal.
— Muita gente me pergunta por que, depois de escrever sobre Getúlio, passei a pesquisar o samba. O que uma coisa tem a ver com a outra? Absolutamente tudo. Esta pesquisa é quase uma derivação da outra, pois, ao mergulhar na vida do Getúlio, no contexto da época, mergulhei também no universo cultural, e é nesse instante que o samba se afirma como gênero hegemônico no Brasil depois de uma situação inicial de marginalidade — explica Lira Neto.
Para recontar a vida de músicos e compositores que marcaram a história do samba, o jornalista repassou jornais e revistas da época, mas também contou com uma fonte alternativa de pesquisa: inquéritos policiais. A partir de 1890, uma lei permitia que qualquer desempregado vagando pela cidade pudesse ser detido por vadiagem. Era um artifício para criminalizar populações marginalizadas, principalmente ex-escravos e descendentes que não conseguiam se enquadrar no mercado de trabalho.
— Há uma rica documentação policial sobre esses personagens. A partir dela, há boas pistas para decifrar como era o cotidiano dessas pessoas, mas com a ressalva de que tudo é anotado a partir desse olhar policialesco. Foi preciso ler esses documentos com determinados filtros — observou Lira Neto.
Desde o título, que opta por “uma história”, em vez de “a história”, o livro carrega um tom de despretensão. Apesar de ser reverente às personalidades que apresenta, Lira Neto não se perde em elogios, nem tenta ser analítico ou conclusivo. Como bom jornalista, descobre e conta boas histórias, oferecendo mais uma peça para entender como se formou o mosaico da atual cultura brasileira.
Histórias das primeiras batucadas
Morro da Providência
Nos anos 1930, o Rio de Janeiro passava por um processo de transformação urbana, baseada em ideias higienistas e, muitas vezes, preconceituosas. Morros como o da Providência, estiveram na mira da administração municipal para desocupação e destruição de casas. Mas era de lugares assim que partiam os primeiros cordões carnavalescos, reunidos para dançar e celebrar, mas também “pra brigar, pra ser preso, pra apanhar, pra bater”, conforme Cartola (1908 – 1980) conta em depoimento anotado em Uma História do Samba. Depois de passarem anos banidos por sua violência, os blocos voltaram a circular no final nos anos 1930, mas sob controle do Estado.
Oito Batutas
Com Pixinguinha na flauta e Donga no violão, os Oito Batutas foram um dos maiores sucessos da música brasileira nos anos 1920, excursionando também para fora do país. Mas o início do grupo não foi tão afortunado. Personalidades da imprensa local consideraram ¿um escândalo¿ a presença de um conjunto com metade de seus integrantes negros tocando no Palais, cinema carioca que se promovia como “a mais luxuosa casa da América do Sul”. Na foto, os batutas aparecem caracterizados com indumentária regionalista, que foi abandonada depois de sua turnê pela Europa. Ao voltar ao Brasil, adotaram o sóbrio visual dos músicos de jazz.
Ismael Silva
Ismael Silva era um dos bambambãs do bairro Estácio que “imporiam um novo rumo à música popular brasileira”, como descreve Lira Neto. Junto a uma “turma da pesada”, o compositor de Nem É Bom Falar e outros clássicos fundou a Deixa Falar, uma das primeiras escolas de samba da história. Mas foi por pouco que não viu o desfile inaugural da agremiação. Autuado por vadiagem em outubro de 1928, precisou às pressas arrumar uma ocupação para não ir para o xilindró, trabalhando como servente de um escritório de advocacia.
— A lei da vadiagem foi criada apenas dois anos depois da abolição (da escravatura). Pressupor que, em um período tão curto de tempo, essas pessoas conseguiriam se qualificar para concorrer no mercado de trabalho é completamente absurdo. Todas elas estavam à margem da sociedade e do mercado de trabalho. Muitos dos personagens descritos no livro recorriam a expedientes como a navalha, a briga, o roubo, o punguismo e o jogo para sobreviver — explica Lira Neto.
Lamartine Babo
Conhecido por marchinhas carnavalescas como O Teu Cabelo Não Nega, Lamartine Babo foi um dos compositores mais conhecidos da época de ouro do samba e também está presente no livro sobre as origens do gênero musical. Lira Neto escreve sobre a amizade entre Babo e Noel Rosa: “Foi identificação ao primeiro gole. Juntos, protagonizaram centenas de farras pelo bairro e compuseram em parceria”. Entre outras composições, o autor cita a marcha A. B. Surdo, uma “avacalhação ao chamado movimento modernista, vanguarda artística fundada pelo poeta italiano Felippo Tommaso Marinetti”, com o refrão “É modernismo, menina / Pois não é marcha / Nem aqui nem lá na China”.
(A.N.)