“Cabeleireiro é morto a tiros em salão enquanto atendia clientes”. “Transexual é morto a tiros em Porto Alegre”. As manchetes estão reproduzidas na página “Homofobia Mata”, ligada ao Grupo Gay da Bahia (GGB), que cataloga casos de homicídios que têm como alvo a comunidade LGBT em todo o país e traz também dois casos ocorridos em Campos com menos de 20 dias de intervalo. As vítimas foram duas travestis com 17 e 23 anos, ambos em Guarus, no Jardim Carioca e Parque Guarus, respectivamente. A Polícia Civil informou que ainda não sabe a motivação do crime mais recente, ocorrido na última segunda-feira. De acordo com os policiais, no caso da travesti de 17 anos, o suspeito de cometer o crime, um adolescente de 16 anos, teria contado que a motivação seria um suposto furto da vítima à casa de sua avó. Nos dois casos não há como afirmar que a homofobia tenha sido um fator estimulador dos crimes, mas a situação traz à luz os vários tipos de violência sofridos pela comunidade LGBT, principalmente transexuais e travestis.
Segundo dados do último relatório do GGB, divulgado em fevereiro deste ano, 318 assassinatos à LGBTs foram registrados no Brasil em 2015, 99 deles no Sudeste, região que ocupa o segundo lugar no ranking nacional, perdendo apenas para o Nordeste. Destes, 52% vitimou gays, 37% travestis, 16% lésbicas e 10% bissexuais. A pesquisa também revela que 7% dos crimes tiveram como vítimas heterossexuais confundidos com gays.
Professor de História, mestre em Sociologia Política e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rafael França é autor do livro “As aparências enganam: a arte de fazer-se travesti”, onde apresenta uma pesquisa de campo com travestis profissionais do sexo em Campos. Ele explica que essa é apenas uma das muitas formas de violência impostas à comunidade LGBT.
— Quando eu lancei esse trabalho, as pessoas queriam perguntar como era o programa, se é verdade que a maior parte dos clientes são casados, se eles são passivos delas. O foco não é esse. É uma curiosidade perversa. Ninguém quer saber do porque a travesti foi expulsa da escola, porque ela não tem acesso ao mercado de trabalho. Isso não é preocupação. A preocupação é como ela faz sexo — disse o sociólogo, acrescentando ainda que a associação de travestis a prostituição também é uma forma de violência, reflexo do preconceito.
Profissional do sexo, Thayanne Mendonça, de 18 anos, lembrou que há menos de duas semanas, um grupo de jovens passou em várias bicicletas, no ponto onde atuam, e depois retornaram com pedras. Ela conta que, neste dia, tiveram receio, mas não se acovardaram.
A estudante de pedagogia, Érickah Goméz, de 28 anos, assumiu sua identidade de gênero aos 20 anos e também não sofre impasses dentro de casa ou na faculdade, onde não conseguiu trocar o nome na lista de chamada, mas contou com bom senso de colegas e professores. Um dos episódios mais marcantes da sua vida ela guarda como vitória.
— Fui a uma casa de shows em São João da Barra e a segurança não quis me revistar. Eu expliquei, mas ela se recusou e disse que meu lugar era do outro lado, na revista masculina. O dono da casa veio e falou para me pedir desculpas e que me revistasse porque ali minha identidade de gênero seria respeitada — lembrou-se.
Diferenças entre gênero e sexualidade
Fael Borges, artista, militante LGBT, formando em direito e estagiário do Núcleo de Gênero Diversidade e Sexualidade (Nugeds) do campus Centro do Instituto Federal Fluminense (IFF), afirma que as diferenças entre gênero e sexualidade, uma vez desentendidas, provocam o afastamento do respeito às diferenças inerentes ao ser humano.
— Orientação sexual é a forma como você se relaciona com o outro. Você pode ser heterossexual, bissexual ou homossexual. A identidade de gênero é a forma como você se apresenta para a sociedade. Uma mulher cisgênera, nasceu biologicamente menina e se apresenta menina na sociedade. Um menino cisgênero nasceu menino e se apresenta menino. Agora dentro desse globo tem os transgêneros, que nasceram biologicamente com um sexo, mas se apresentam como outro à sociedade, como a travesti que nasceu menino e se apresenta em uma identidade feminina, mas aí são essas feminilidades possíveis. Como a Simone de Beauvoir, que é uma grande autora do século XX, umas das mais famosas nessa questão de gênero, que diz que há várias formas de você ser mulher e de ser homem. É uma construção — orientou o artista e militante, que organiza ações dentro do IFF, por meio de oficinas, apoio a eventos e recentemente apoiou a Semana de Diversidade.
Falta de informação dá origem ao preconceito
A origem do preconceito, que acaba gerando os mais diversos tipos de violência que tem como alvo os LGBTs pode ser a falta de informação e a consequente falta de discussão na sociedade. Para Rafael França, isso estabelece uma espécie de pacto de silêncio onde questões pertinentes à comunidade são abandonadas. O debate sobre o assunto é vetado das salas de aula, sob a justificativa de que a educação é assunto familiar e que mencionar pode influenciar na “decisão”, como se fosse escolha, sobre a sexualidade de crianças e adolescentes.
— Isso é leviano, porque isso não tem fundamentação alguma, não tem nada que sustente um argumento desse, mas as pessoas que têm esses discursos, que geralmente são líderes políticos, muitas vezes ligados à religião, falam disso com maneira de tocar as pessoas como se falar de sexualidade fosse fazer alguém a virar “veado”, “sapatão” ou travesti e não é isso. As pessoas se constroem dessa forma, não tem nem consciência quanto a isso, se nasceu ou se virou. Eu acho que a gente tem que mudar essa pergunta. A pergunta é: porque essas pessoas não têm direito? Não é porque a mulher é mulher, é porque a mulher é estuprada na rua e o homem não. Tem uma desigualdade de gênero. O gênero contribui para a gente pensar essas coisas. Essas desigualdades que são historicamente construídas, mas são naturalizadas e consideradas normais. ‘Isso sempre foi assim’, ‘é assim mesmo’ e isso é usado para falar da mulher, dos LGBTs de uma forma geral é usado para falar dos indígenas, dos negros — comentou, acrescentando que o Plano Nacional de Educação retirou a questão de gênero e sexualidade da pauta, sendo seguidos por governos estaduais e municipais.