Ato marca o lançamento do "Memorial Cambahyba" em Campos
As terras da extinta Usina Cambahyba, em Campos, ficaram marcadas, nesta quarta-feira (6), pela emoção e lançamento das ações para a criação do “Memorial Cambahyba, Ditadura Nunca Mais, Memória, Verdade e Justiça”, dando início da caminhada dos 60 anos do golpe militar de 1964. O ato contou com a presença de familiares de vítimas que morreram, despareceram ou foram presas na ditadura, além do ex-ministro dos Direitos Humanos e atual chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia do mesmo Ministério, Nilmário Miranda, e do coordenador geral de Memória e Verdade e Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Hamilton Pereira, conhecido pelo pseudônimo de Pedro Tierra, poeta e também vítima da ditadura.
Entre outras ações desta quarta, os participantes realizaram uma caminhada do acampamento do Movimento Sem Terra (MST) Cícero Guedes até os fornos da usina, onde, no parque industrial, será criado o Memorial. No entanto, a área edificada ainda está em processo de tombamento histórico para posterior desapropriação. De forma simbólica, no local, foi plantada uma muda de Pau-Brasil. A Usina Cambahyba é apontada em investigações pela utilização de seus fornos para incinerar corpos de, pelo menos, 12 presos políticos durante a ditadura militar. Alguns familiares destas vítimas deram seus depoimentos, recitaram poemas e seguiram a marcha até as ruínas.
Um destes parentes é Eduardo Prestes, neto de João Massena Melo, ex-vereador preso e torturado durante a ditadura. Massena é dado como desaparecido desde o dia 3 abril de 1974 e as investigações apontam que o corpo dele foi um dos incinerados na Cambahyba.
— Sou neto de João Massena e de Luís Carlos Prestes, dois militantes combativos que enfrentaram a ditadura militar em busca de liberdade e de participação política em nossa sociedade. João Massena foi sequestrado e assassinado pelo Estado brasileiro, e em 2024 se completam 50 anos do seu desaparecimento sem que o Estado tenha dado conta do que aconteceu e nem investigado (...) Nossas perguntas continuam as mesmas, onde estão os corpos dos nossos familiares? Quando poderemos enterrar esses corpos? Quem vai responder pelo assassinato e ocultação desses corpos? O que pedimos é algo muito simples. Retorno. O retorno da Comissão da Investigação sobre os crimes da ditadura, com a conclusão dos trabalhos e indiciamento dos responsáveis. Gostaríamos de contar outra história para as próximas gerações e poder afirmar que, finalmente, todos os arquivos foram abertos e que os culpados foram identificados, enquanto isso não ocorrer, a dor e a sensação de impunidade seguirão como um alerta para todos os crimes cometidos pelo estado ontem, hoje e amanhã — declarou Eduardo Prestes.
Outra vítima dos fornos, segundo as investigações, foi Fernando Santa Cruz, pai do ex-presidente da OAB Felipe Santa Cruz, cuja morte chegou a ser ironizada pelo ex-presidente do Brasil Jair Bolsonaro em 2019. Irmãos de Fernando estiveram no ato desta quarta e falaram da importância da criação do Memorial. "Nós estamos vivendo hoje um fato histórico da maior importância para todos nós que lutamos pela democracia, pela liberdade. Queremos que o forno da usina se torne o local da memória da verdade, da justiça, da reparação, da reforma agrária (...) que vai homenagear todos aqueles que foram mortos aqui na usina. Não somente os doze heróis do povo brasileiro, mas também os camponeses que foram assassinados", disse Marcelo Santa Cruz.
Com a presença de diversas organizações da sociedade civil, o ato contou também com movimentos estudantis, líderes de partidos políticos e representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, do Incra, do Instituto Federal Fluminense (IFF), da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), além da Diocese de Campos, entre outras autoridades.
— A gente tem que trabalhar para que as coisas não se esqueçam e para que nunca mais aconteçam. Aqui é um caso típico, que são famílias de desaparecidos (...) Não é um dia de ficar cultivando o sofrimento, é um dia de renovar a esperança de que o nosso país não merece ser um país dividido por religião, por ódio político, ódio religioso. Isso não é o Brasil. Nós queremos um Brasil que todos se respeitam, independente de quem votou (...) Esse que é o desafio nosso. Hoje é uma celebração para rememorar um fato extremamente vergonhoso para o Brasil, mas também apontar esperança para a frente — afirmou o representante do Ministério dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda.
A deputada estadual Marina do MTS (PT) também participou do evento. Ela é autora de um projeto de lei, junto com o presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o campista Rodrigo Bacellar (União), que "tem por finalidade tombar, por interesse histórico do Estado do Rio de Janeiro, conforme previsto no inciso XVI do Art. 98, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o parque industrial que faz parte da Companhia Usina Cambahyba" (veja o projeto aqui).
— Hoje é um dia que marca a história da luta pela terra e da reforma agrária aqui na região. Um evento com os representantes do Governo Federal, do Ministério dos Direitos Humanos, inclusive, o primeiro ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, está aqui e foi um dos organizadores. Está aqui com as famílias que lutaram e resistiram por mais de 20 anos pela terra aqui, nessa região, nessas terras que são do MST, está aqui junto com os representantes das famílias das pessoas que foram incineradas aqui nesses fornos. Isso marca um momento muito importante para a região, que é do resgate da memória, das lutas, das resistências da classe trabalhadora. É o momento de valorização das lutas atuais e é também assumir um compromisso com as lutas futuras. Por verdade, memória e justiça, ditadura nunca mais e pela reforma agrária, produção de comida e alimentos aqui nesse local — disse a deputada Marina.
Segundo o coordenador geral de Memória e Verdade e Apoio à CEMDP, Hamilton Pereira, é a partir da aprovação do projeto proposto na Alerj, que serão dados os próximos passos para a desapropriação do parque industrial da usina, necessária à construção do Memorial. "Depois de tombado pela Alerj, entra um outro processo, que é de restauração dessas edificações com acompanhamento técnico para que lá na frente isso se torne um espaço de memória com objetivo educativo, cultural, etc", destacou.
Em junho deste ano, a Justiça Federal de Campos condenou o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Espírito Santo, Cláudio Antônio Guerra, a sete anos de prisão, em regime semiaberto, pelo crime de ocultação de cadáver no período da ditadura. Cláudio foi investigado com base em seu próprio livro “Memórias de Uma Guerra Suja”, no qual confessou ter recolhido os corpos de 12 pessoas e os levado para serem incinerados entre 1973 e 1975 na antiga Usina Cambahyba.
A ação penal ajuizada pelo Ministério Público Federal está relacionada ao desaparecimento dos militantes políticos Ana Rosa Kucinski Silva, Armando Teixeira Frutuoso, David Capistrano da Costa, Eduardo Collier Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luís Inácio Maranhão Filho, Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto e Wilson Silva.
Ocupada por cerca de 300 famílias do MST, as terras da Usina Cambahyba foram desapropriadas e hoje abrigam o futuro assentamento Cícero Guedes.
Fotos: Rodrigo Silveira
Vídeos: Rodrigo Gonçalves