Folha Letras - Ponto de equilíbrio
- Atualizado em 23/04/2025 13:29
Divulgação
Vitor Menezes*
O copo cruzou o céu da sala dando cambalhotas e atirando uísque em diferentes direções. O fundo de vidro espesso o acertou nos lábios, um pouco abaixo da narina esquerda, e foi imediata a profusão de sangue sobre a boca e o queixo. As mãos levadas ao rosto também ficaram vermelhas.

Foi como uma epifania. A partir daquilo, tudo se tornou possível. E o casal até então morno começou a experimentar seus limites.

Durante meses praticaram em casa. Xingamentos cada vez mais baixos, agressões estúpidas, vilezas das mais mesquinhas. Houve dia em que ele a amordaçou e a trancou no banheiro. Houve dia em que ela o acordou com um choque elétrico. Houve também dia em que ele a asfixiou até a margem da morte. E houve ainda dia em que ela bateu de propósito com o carro dele.

Mas eles logo perceberam que aquela forma de arte, como qualquer outra, precisa de público. E combinaram a estreia para a festa de Natal.

Esperaram que todos tivessem chegado com aquele ar de como é bom estarmos juntos. Enquanto bebericavam os primeiros goles, inventaram um motivo qualquer para começar uma discussão. Elevaram o tom gradativamente até o ponto daquele mal-estar ser considerado suficiente para arruinar o encontro festivo de uma família tradicional e educada em meio aos mais nobres valores. Mas havia mais.
Quando a atenção de todos foi suficientemente atraída, ele esticou o braço direito sobre o presépio, alçou com mão firme o menino Jesus e o atirou em direção a ela. A peça espatifou um grande espelho que se esticava do chão ao teto. Restos do Santíssimo se misturaram aos estilhaços no tapete.

Os dois a essa altura gritavam ensandecidos. Vibravam com a fúria. Empunhando um candelabro, ela corria de um lado para outro. Ele se desvencilhava de todos que tentavam contê-lo. Muitos choravam. Crianças eram protegidas entre pernas adultas. Os mais velhos confirmavam suas suspeitas sobre a falência moral das novas gerações.

Quando ela tentou feri-lo com uma faca de cozinha, ele a empurrou sobre e mesa da ceia. Ela se ergueu entre travessas e pratos, com comida e vinho escorrendo pela roupa, e o amaldiçoou pela sua existência. Discursou impropérios que deveriam atingi-lo em sua honra de macho, esfregando-se vulgarmente enquanto dizia que, com ele, jamais sentira prazer.

Ele saltou sobre a mesa e a atingiu com um bofetão. Ela rolou sobre cadeiras e foi parar sob um aparador. Ele caminhou pela ceia e chutou para longe um chester. Ela não mais se mexia. E muitos acreditaram que aquele era o ponto final.

Mas ele desceu e se atirou sobre ela, que desmaiara. Apoiado sobre os joelhos, tendo o corpo dela entre as pernas, levantou o braço para mais um golpe. Acabou imobilizado por dois marmanjos da família que resolveram intervir de modo mais contundente. Ela foi reanimada por outras mulheres que naquele momento viram alguma segurança para se aproximar.

Estavam exaustos e satisfeitos. Era hora de parar. Não chegaram a precisar de cuidados médicos. Também não era caso de polícia. Tão distinta família jamais se exporia dessa forma. A vizinhança, em nome da boa imagem do condomínio, também se manteve em silêncio sobre o caso. Nem mesmo o síndico foi importunado.

Ele e ela foram levados para casas diferentes e tiveram que suportar a ansiedade de trocar confidências sobre o sucesso do espetáculo, o que só puderam fazer no dia seguinte, após uma diplomática troca de telefonemas entre os parentes envolvidos. Todos procuraram estar seguros de que uma tragédia não ocorreria se o casal se mantivesse como tal.

Depois daquela festa desfeita, se amaram por décadas até o dia em que morreram juntos, em um acidente de carro, quando seguiam para mais uma lua de mel no litoral. A polícia não suspeitou de sabotagem. O mesmo não pode ser dito dos demais integrantes da austera família.

* Jornalista, professor e escritor. Membro da Academia Campista de Letras. Conto integrante da coletânea “Eu transaria com mortos” (E-papers).

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

    Mais lidas
    Serviço Próprio de Inspeção de Equipamentos da Bacia de Campos recebe suspensão

    A medida foi tomada após o acidente ocorrido na Plataforma PCH-1, em conformidade com a legislação vigente

    Aniversário de Francimara com festa marcada por celebração com amigos, familiares e autoridades

    Festa foi realizada nesse sábado no Sítio DuJuca, em Guaxindiba, para celebrar os 47 anos da ex-prefeita de SFI

    Homem morre e mulher fica ferida em acidente na Estrada do Carvão, em Campos

    O carro em que as vítimas estavam bateu em um poste, na madrugada desta sexta-feira; mulher foi socorrida em estado grave para o HFM

    Representantes do Siprosep realizam protesto em frente à Prefeitura de Campos

    Entre as pautas do sindicato, está o pedido do reajuste salarial anual dos servidores, segundo ofício