
Foi como uma epifania. A partir daquilo, tudo se tornou possível. E o casal até então morno começou a experimentar seus limites.
Durante meses praticaram em casa. Xingamentos cada vez mais baixos, agressões estúpidas, vilezas das mais mesquinhas. Houve dia em que ele a amordaçou e a trancou no banheiro. Houve dia em que ela o acordou com um choque elétrico. Houve também dia em que ele a asfixiou até a margem da morte. E houve ainda dia em que ela bateu de propósito com o carro dele.
Mas eles logo perceberam que aquela forma de arte, como qualquer outra, precisa de público. E combinaram a estreia para a festa de Natal.
Esperaram que todos tivessem chegado com aquele ar de como é bom estarmos juntos. Enquanto bebericavam os primeiros goles, inventaram um motivo qualquer para começar uma discussão. Elevaram o tom gradativamente até o ponto daquele mal-estar ser considerado suficiente para arruinar o encontro festivo de uma família tradicional e educada em meio aos mais nobres valores. Mas havia mais.
Os dois a essa altura gritavam ensandecidos. Vibravam com a fúria. Empunhando um candelabro, ela corria de um lado para outro. Ele se desvencilhava de todos que tentavam contê-lo. Muitos choravam. Crianças eram protegidas entre pernas adultas. Os mais velhos confirmavam suas suspeitas sobre a falência moral das novas gerações.
Quando ela tentou feri-lo com uma faca de cozinha, ele a empurrou sobre e mesa da ceia. Ela se ergueu entre travessas e pratos, com comida e vinho escorrendo pela roupa, e o amaldiçoou pela sua existência. Discursou impropérios que deveriam atingi-lo em sua honra de macho, esfregando-se vulgarmente enquanto dizia que, com ele, jamais sentira prazer.
Ele saltou sobre a mesa e a atingiu com um bofetão. Ela rolou sobre cadeiras e foi parar sob um aparador. Ele caminhou pela ceia e chutou para longe um chester. Ela não mais se mexia. E muitos acreditaram que aquele era o ponto final.
Mas ele desceu e se atirou sobre ela, que desmaiara. Apoiado sobre os joelhos, tendo o corpo dela entre as pernas, levantou o braço para mais um golpe. Acabou imobilizado por dois marmanjos da família que resolveram intervir de modo mais contundente. Ela foi reanimada por outras mulheres que naquele momento viram alguma segurança para se aproximar.
Estavam exaustos e satisfeitos. Era hora de parar. Não chegaram a precisar de cuidados médicos. Também não era caso de polícia. Tão distinta família jamais se exporia dessa forma. A vizinhança, em nome da boa imagem do condomínio, também se manteve em silêncio sobre o caso. Nem mesmo o síndico foi importunado.
Ele e ela foram levados para casas diferentes e tiveram que suportar a ansiedade de trocar confidências sobre o sucesso do espetáculo, o que só puderam fazer no dia seguinte, após uma diplomática troca de telefonemas entre os parentes envolvidos. Todos procuraram estar seguros de que uma tragédia não ocorreria se o casal se mantivesse como tal.
Depois daquela festa desfeita, se amaram por décadas até o dia em que morreram juntos, em um acidente de carro, quando seguiam para mais uma lua de mel no litoral. A polícia não suspeitou de sabotagem. O mesmo não pode ser dito dos demais integrantes da austera família.
* Jornalista, professor e escritor. Membro da Academia Campista de Letras. Conto integrante da coletânea “Eu transaria com mortos” (E-papers).
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