Arthur Soffiati - O nosso semiárido
Matheus Berriel - Atualizado em 04/05/2022 18:37
Um projeto de lei dos irmãos Garotinho considerando as regiões Norte-Noroeste Fluminense como semiáridas e, portanto, merecedoras de auxílio do Governo Federal, foi transformado em lei na Câmara dos Deputados. Agora, deverá ser apreciado pelo Senado e encaminhado ao presidente para sanção ou não.
O primeiro aspecto a chamar a atenção (pelo menos a minha) é que tal projeto beneficia os produtores rurais de ambas as regiões. O chefe do clã Garotinho, quando se elegeu prefeito de Campos pela primeira vez, declarou guerra à cana e ao gado de um modo geral, pretendendo defender os direitos do povo humilhado havia séculos pelos ruralistas. Com o advento dos royalties do petróleo, ele pôde governar sem a classe dominante, até então manipuladora dos executivos e legislativos municipais, segundo ele. Formou-se, então, uma fila de pessoas que desejavam merecer atenção do poder público. Os usineiros continuavam na frente.
Os prefeitos eleitos depois do patriarca Garotinho se lambuzaram nos royalties. Esses recursos quase findaram, e Campos e região não resolveram seus problemas básicos. Eu diria até que os aprofundaram. Agora, os filhos do patriarca aproximam-se dos plantadores, usineiros e pecuaristas com o projeto de lei do semiárido. Mais ainda: o atual prefeito, filho mais velho do velho Garotinho, convida um usineiro para ser seu vice-prefeito e se elege. A aliança rompida está sendo soldada novamente.
O segundo aspecto interessante nasce de um desconhecimento verdadeiro ou preguiçoso e oportunista. Existem seis ou sete biomas no Brasil. Bioma é um grande sistema natural com características singulares: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal Matogrossense, Campos do Sul e Zona Costeira. De todos, o mais seco é a Caatinga, entendida pelos especialistas como uma savana estépica. A Caatinga é um bioma semiárido natural. Antes da chegada dos europeus, ela já apresentava déficit hídrico. A colonização desse ambiente por uma economia de mercado agravou a sua aridez.
A escassez hídrica do Cerrado, a savana da América do Sul, comporta o fogo espontâneo em sua dinâmica ecológica. Mas o bioma do Cerrado era bem mais úmido até o advento do agronegócio. Os Campos do Sul, uma estepe úmida, já foram muito adulterados pelo agronegócio. No verão de 2021-22, eles padeceram de intensa estiagem. O mesmo aconteceu com o Pantanal Matogrossense, a maior área úmida do mundo. Seria inconcebível imaginar um incêndio de grandes proporções naquele universo líquido. Mas aconteceu em 2020, apesar da invasão progressiva do boi bombeiro em seus domínios.
O que aconteceu com a Mata Atlântica foi um descalabro. Ela se estendia do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte com ramificações para o interior do Brasil. O desmatamento secular foi brutal. Restaram dela apenas 10% espalhados em tufos. Foi, quiçá, o maior desmatamento do mundo. Iniciado já no século XVI, esse desmatamento deve ter lançado um volume ainda não mensurado de gás carbônico. Há um atenuante, porém, para tão grande destruição: não existia, antes do século XX, conhecimento científico que relacionasse florestas a equilíbrio climático. Tanto o aquecimento natural do Holoceno favoreceu o desenvolvimento de ambientes florestais quanto estes regularam as chuvas e estiagens. Porém, já eram conhecidas, desde o século XVIII, as relações entre desmatamento, redução da oferta de água e erosão. Várias advertências foram feitas por vozes solitárias.
Agora, chegou a vez da Amazônia. A diferença é que, hoje, conhecemos bastante bem a relação floresta tropical-clima. O argumento do governo Bolsonaro de que a Europa arrasou com suas florestas e que, portanto, não pode cobrar nada ao Brasil, é capcioso. A Europa tinha florestas temperadas, que não cumprem o mesmo papel das florestas tropicais. Além do mais, foram erradicadas num tempo em que desmatar era sinal de progresso.
Mudanças climáticas, desmatamento, represamento de rios e urbanização acelerada e excessiva explicam as chuvas torrenciais e as secas no Sudeste. E as regiões Norte-Noroeste Fluminense? Estariam ambas num reduto semiárido natural? Não. Elas se situam nos biomas Mata Atlântica e Costeiro. A água era abundante em ambas. Foram o desmatamento e a drenagem excessiva de lagoas que as tornaram semiáridas. Euclides da Cunha, em “Os sertões”, mostra como se faz um deserto e como se reverte um deserto em área úmida e fértil. O Norte-Noroeste Fluminense não precisa de uma lei que o beneficie como zona semiárida. As duas regiões quase se tornaram desertas. Cabe agora reverter esse deserto e transformá-lo novamente em úmido e fértil. A lei aprovada na Câmara dos Deputados poderia socorrer pequenos produtores em anos áridos, mas deveria, acima de tudo, fornecer recursos para o reflorestamento de áreas críticas e para a recriação de lagoas indispensáveis à reservação de água. Do jeito que está, é mais uma lei para preguiçosos, favorecendo desvios para outros fins.

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