* Arthur Soffiati
26/12/2019 17:25 - Atualizado em 08/01/2020 13:58
Região é uma convenção. Ela é mais resultado de um processo histórico que um território com características geológicas, botânicas, faunísticas, econômicas, culturais e políticas similares. Não é necessariamente uma ecorregião, como aquela que existe entre os rios Macaé e Itapemirim, estendendo-se para a zona serrana. No século XVII, quando começou a colonização contínua da planície de Campos e dos tabuleiros que a circundam, não havia região Norte-Noroeste Fluminense. O governo colonial português criou, pouco a pouco, o distrito dos Campos dos Goitacás, que depois se incorporou à Capitania do Rio de Janeiro, tendo por ouvidoria a Capitania do Espírito Santo durante 90 anos. No Brasil Imperial, após a independência política, as capitanias passaram a ser denominadas de províncias. A região, que teve por núcleos originais as localidades de Campos, Macaé e São João da Barra, alargou-se com a conquista progressiva da zona serrana, até então temida pelos colonos de origem europeia por medo à natureza e aos povos indígenas. A colonização da serra começou no último quartel do século XVIII, mas apenas ganhou força no século XIX. Só recentemente formaram-se as Regiões Norte e Noroeste Fluminenses.
É no contexto de uma grande região, ainda pouco povoada por colonos de origem europeia e pouco urbanizada, que se situa Amelia Gomes de Azevedo, pioneira entre as escritoras que nascerão nela e sobre ela escreverão não necessariamente. Era filha de Jacintho Antonio de Azevedo Mattos, um imigrante açoriano que se instalou em terras pertencentes a Campos e transferidas para Itaperuna em 1890. Sua fazenda chamava-se Monte Himalaya e se localizava no 15º distrito de Campos, que se desenvolveu às margens do rio Itabapoana. Com a criação de novos municípios, a serra do Himalaia, que deu nome à fazenda, ficou no limite de Itaperuna e Bom Jesus do Itabapoana. Não que ela tenha sido removida. As fronteiras convencionadas é que mudaram.
A renda de Jacintho permitiu que ele matriculasse a filha Amelia no Colégio Brasileiro, que se situava em Laranjeiras, elegante bairro do Rio de Janeiro. As visitas ao lar eram raras, porque o trajeto era percorrido com dificuldade. Saía-se da fazenda a cavalo até São João da Barra, onde um vapor conduzia a moça ao Rio de Janeiro. No colégio, ela aprendeu francês, como era comum na época.
Amelia logo revelou pendores para a escrita. Ela escrevia tanto em português como em francês. Vários textos seus foram premiados na França e na Bélgica. Com a morte de seu pai, em 1893, a filha assume o comando da fazenda com sua mãe. A Estrada de Ferro Carangola já cortava o Noroeste Fluminense, região que se constituiria apenas no final do século XX. O desmatamento avançava rapidamente para abastecer principalmente as modernas usinas e engenhos centrais com lenha. A escravidão já havia sido abolida. A mão de obra barata de imigrantes ocupava o lugar dos escravos.
Amelia continuou a escrever, algo difícil de conciliar com a administração de uma fazenda. Em 1994, ela reuniu textos seus em “Rumorejos do Monte Himalaya”, prefaciado pelo então conhecido político, escritor e professor Affonso Celso de Figueiredo Júnior. O raríssimo livro foi reeditado pela Editora Essentia, do Instituto Federal Fluminense, como 5º volume da série “Memórias Fluminenses”, por meio da qual já chegaram ao público interessado “Cyclo Aureo — Historia do 1º Centenario de Campos”, de Horacio Sousa; “Itinerario da Freguezia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à gruta das Minas do Castello”, de Manoel Basilio; “Estudos agrícolas”, de João José Carneiro da Silva; e “História do descobrimento e povoação da cidade de São João da Barra e dos Campos dos Goytacazes, etc.” (porque o título é muito grande, típico dos livros antigos), de Fernando José Martins.
Os textos de Manoel Basílio e de Amelia Gomes de Azevedo são raríssimos, mesmo em bibliotecas especializadas. Em boa hora, Paula Aparecida Martins Borges e Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina organizaram “Rumorejos...” com o máximo esmero. Primeiro, a publicação demanda pesquisa. Segundo, cabe a opção de atualizar o texto ou mantê-lo como foi publicado. Os livros da série “Memórias Fluminenses” são editados com a linguagem da época. Terceiro, o trabalho demanda pesquisas paralelas para situar autor e livro em sua época.
Amelia escrevia de forma rebuscada, utilizando-se de palavras que, muitas delas, caíram em desuso. Suas ideias também estão datadas. O bom historiador deve evitar o anacronismo de exigir de um autor ideias entendidas hoje como politicamente corretas. Sobre o negro, escravizado por quase quatro século no Brasil, e sua substituição pela mão de obra livre, ela escreve: “Na maioria das fazendas, o sistema adotado pelos proprietários rurais: famílias que trabalham e que, no fim do ano, dão ao proprietário a metade dos lucros que tiveram com a venda de seu café. A colonização europeia está espalhada por toda a parte; ela substituiu a escravidão que um decreto do governo fez desparecer subitamente. Mesmo que possa parecer que os proprietários rurais tenham ficado descontentes com a mudança, não ocorreu assim, pois eles têm mais tranquilidade e liberdade do que na época da escravidão, na qual suas vidas estavam frequentemente nas mãos dos escravos, essas massas brutas com maus instintos. Apenas a transição foi difícil, provocando a ruina de fortunas pouco sólidas”. Ela escrevia para europeus.
O impacto causado com o fim da escravidão é minimizado por ela. Podia-se entender essa compreensão como progressista para a época, assim como a defesa que ela fazia do trabalho praticado por imigrantes chineses. Não se tratava de um trabalho totalmente livre, mas de parceria bastante desigual. Para a época, representava um avanço apreciável para os liberais. No século seguinte, Alberto Ribeiro Lamego defenderá a importação de trabalhadores japoneses para o cultivo de pérolas numa espécie de bivalve bastante comum na baixada: a “Anodonta perlifera”.
“Rumorejos do Monte Himalaya” resultou de uma coletânea de textos em português e originalmente em francês que a autora publicou em “Gazeta de Itaperuna” e “Monitor Campista”, principalmente. Os textos em francês foram quase todos premiados na França e na Bélgica. O contexto ambiental em que ela redige seus textos revela a transição de um meio nativo, sendo destruído pela lavoura do café particularmente e pela pecuária, para um ambiente antrópico. Ela exalta, de forma romântica, uma natureza que está sendo devastada.
No texto “Três dias no Monte Himalaia”, provavelmente resultante de uma visita ao lar, ela faz referência ao pelo sedoso do tigre feroz (era comum denominar a onça de tigre ainda no século XIX); à estrada assombreada pelas árvores da floresta; “à solidão das selvas”, à harmonia da natureza; a florestas imponentes; goiabeiras com seus frutos apetitosos; água límpida; solo fértil; cursos d’água em fundo de vales; buquês carregados de laranjais; bananeiras, palmito nativo, sabiá, coqueiros e ameixeiras. Ao mesmo tempo, ela escreve sobre plantação de café; maquinaria necessária para o trabalho industrial do estabelecimento e casas dos colonos portugueses.
Cristóvão Colombo é, para ela, o símbolo da superioridade do cristianismo e do ocidente. Eis uma passagem que ela escreve sobre o navegador: “A fé triunfou, o cristianismo se expandiu e esta vitória, anunciada pelas trombetas, foi o sinal que disse ao grande navegador que ele ia enfim poder partir para descobrir novas terras e o caminho que, sobre as ondas azuis, da Europa às Índias, transportaria o veleiro”. E recorrendo a versos de Théophile de Gautier sobre Corneille: “A cabeça no céu e os pés na lama/Caminhava a passos lentos uma figura estranha”, ela resume o papel civilizador de Colombo. O céu é o mundo superior cristão e europeu. A lama são as terras incultas a serem conquistadas. Na América, Colombo tinha os pés na lama, mas a cabeça continuava no céu cristão e europeu.
Mas, antes do europeu, o ser humano está acima do animal: “O homem distingue-se do bruto pela alma. Quanto mais cultivada a alma, mais distante ficará do animal”. Ela ouve ao longe o troar dos canhões da guerra franco-prussiana, que parece condenar.
Que se saiba, Amelia é a primeira escritora regional. Esperamos agora a edição de “Mercedes”, romance ambientado por ela em Barra do Furado.