Aluysio Abreu Barbosa
18/11/2017 19:30 - Atualizado em 21/11/2017 14:37
“A ocupação de praças, ruas ou dos, assim chamados, espaços públicos, tem sido historicamente uma forma de dar visibilidade — e por que não dizer, legitimidade — às demandas políticas, sejam de qualquer natureza, capazes de mobilizar coletividades. O que tem nos intrigado nos últimos tempos são os novos contornos que as mobilizações coletivas estão adquirindo. Dito de outro modo, ainda estamos tentando compreender, em minha opinião, sem muito sucesso, as novas dimensões performáticas e organizativas destas mobilizações. O caso brasileiro, embora não seja único, é paradigmático neste sentido” — resume o antropólogo José Colaço, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos, o objeto sobre o qual esta série de matérias se debruçou nos quatro últimos domingos.
Na tentativa de entender o papel das manifestações de rua no período da redemocratização brasileira, na chamada “Nova República”, a série começou ainda na Ditadura Militar (1964/85). Mais precisamente no movimento das “Diretas Já”, de 1984, iniciadas ainda no ano anterior. Publicada em 29 de outubro deste ano, na Folha da Manhã e no blog “Opiniões”, a primeira matéria avançou até os protestos dos “caras pintadas” que definiram o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
A segunda matéria, publicada em 5 de novembro, se estendeu da posse de Itamar Franco (1930/2011), em 92, até as “Jornadas de Junho” de 2013. Neste recorte de 21 anos da história do Brasil, só em 1994 se daria o controle da hiperinflação legada pelos militares aos civis. Foi a partir do Plano Real, que elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso (PSDB) presidente, sucedido pelos dois governos de Luiz Inácio Lula da Sila (PT), fenômenos de popularidade, e do primeiro de Dilma Rousseff (PT).
Publicada em 12 de novembro, a terceira matéria da série começou nos primeiros protestos contra Dilma, nas arquibancadas da Copa do Mundo de 2014, passando por decisões econômicas equivocadas e sua reeleição numa disputa figadal, que dividiu o país marcado pelas revelações da corrupção sistêmica feitas pela Lava Jato. Estas condicionantes, mais a tentativa de Dilma de dar uma guinada de 180º na sua política econômica, que não impediu o país de mergulhar na recessão, se refletiram nas manifestações de rua de 2015. Tanto em defesa do governo, quanto, mais numerosas, pelo impeachment da presidente, cujo pedido foi aceito pelo então presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), em 2 de dezembro daquele ano.
— Os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. É preciso tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que têm a rua por cenário. Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc. A despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos — explica o sociólogo e cientista político George Gomes Coutinho, também professor da UFF-Campos.
A manifestação desse “interesse comum e compartilhado” continuaria a escrever a história do Brasil nas ruas de 2016. Se as últimas manifestações de 2015, que levaram 90 mil pessoas às ruas em 16 de dezembro, foram as maiores daquele ano em apoio ao governo federal, a resposta do ano seguinte seria contundente.
Em 13 de março de 2016, pelo impeachment da presidente e em apoio à Lava Jato, se deram os maiores protestos de rua na história do Brasil. O ato superou as “Diretas Já”, em 1984, e as manifestações de 15 de março de 2015, primeiro grande protesto popular contra Dilma. Menos de um ano depois, mais de 3,3 milhões de pessoas saíram às ruas de pelo menos 256 cidades de todos os Estados brasileiros, segundo os cálculos da Polícias Militares. Como em 2015, eram mobilizadas através das redes sociais por grupos como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e Revoltados Online, que se diziam “apartidários”.
Ainda assim, os partidos de oposição, como PSDB, DEM, PPS e SD voltaram a convocar seus filiados ao ato, como fizeram em 2015. No entanto, ao tentarem participar pessoalmente do protesto da av. Paulista, o senador mineiro Aécio Neves e o governador paulista Geraldo Alckmin, ambos tucanos e ex-candidatos a presidente, foram hostilizados. Ambos foram chamados de “oportunistas” pelos populares. Já citado na Lava Jato, o mineiro teve que ouvir os gritos de uma manifestante: “Fora Aécio! Fora vagabundo! Você é lixo também!”.
Visivelmente intimidados pela reação popular, os líderes do PSDB declinaram ao convite do MBL para discursarem no carro de som. Epicentro do movimento pelo impeachment de Dilma, a av. Paulista recebeu naquele 13 de março cerca de 500 mil manifestantes, segundo o instituto Datafolha, presença elevada a 1,4 milhão na contabilidade da PM de São Paulo, subordinada ao governo Alckmin.
Como nas “Jornadas de Junho”, quando o movimento “Cabruncos Livres” colocou cerca de 4 mil pessoas nas ruas de Campos em 20 de junho de 2013, o município também participou, dois anos depois, do movimento pelo impeachment de Dilma. Em 13 de junho de 2015, cerca de 1,5 mil campistas, segundo cálculos da PM, se concentraram na praça São Salvador, de onde saíram em passeata pela av. Alberto Torres à Câmara Municipal. Na região, também foram registradas manifestações, contabilizadas às centenas, em Macaé, Cabo Frio e Itaperuna.
— As ruas foram retomadas pelos conservadores e, embora novos movimentos progressistas e democráticos tenham surgido ou se reorganizado e estejam também nas ruas, essas estão esvaziadas de representação das esquerdas e dos mais progressistas, já que o desmonte dos sindicatos, organizações e movimentos populares não passou pela reconstrução, atualização e reunificação necessárias para confrontar as tendências conservadoras que sempre existiram, mas que não encontravam espaços e ecos nas instituições da República para suas reivindicações — analisa o sociólogo José Luis Vianna da Cruz, professor da UFF-Campos e da Cândido Mendes.
Dilma passou aquele 13 de junho no Palácio Alvorada. Não apareceu em público, nem fez pronunciamento, se limitando a emitir uma nota “A liberdade de manifestação é própria das democracias e por todos deve ser respeitada”. No final do dia, uma reunião de cúpula do PMDB passou a tratar a queda da presidente como “inevitável”. A decisão foi trabalhar nos bastidores, a partir dali, para acelerar o processo de impeachment na Câmara.
O impacto das manifestações levou o PT, como os ex-aliados de chapa, a também tentar agir nos bastidores. Na noite do dia 15 de março e manhã do 16, Dilma e Lula se reuniram pessoalmente para acertar a nomeação do segundo a ministro da Casa Civil. Na tarde daquele dia foi feito o anúncio oficial. O objetivo era que o ex-presidente ganhasse foro privilegiado para fugir do julgamento do juiz federal Sérgio Moro, na Lava Jato, passando a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Moro respondeu liberando o sigilo de várias gravações de Lula autorizadas pela Justiça, inclusive a feita por volta das 13h30 daquele mesmo dia 16, na qual Dilma ligou ao celular de um segurança do ex-presidente, para dizer a este, em aparente obstrução de justiça: “Seguinte, eu tô mandando o ‘Bessias’ junto com o papel pra gente ter ele, e só usa em caso de necessidade que é o termo de posse, tá?”.
Embora Moro tenha sido criticado por não ter autoridade, enquanto juiz de primeira instância, para liberar a gravação de uma presidente em exercício, a viralização rápida do áudio pelas redes sociais incendiou o país. Contra Dilma e a nomeação de Lula, os protestos se espalharam pelas ruas brasileiras, diariamente, entre 16 e 21 de março. Entre eles, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) conseguiu organizar no dia 18 a maior manifestação em apoio ao governo, desde que os movimentos de rua eclodiram em 2015.
Nos cálculos das PMs, 275 mil pessoas saíram às ruas em 55 cidades de todos os Estados brasileiros para defender a manutenção do governo. Foi a primeira vez que Lula participou, chegando a discursar na av. Paulista: “Eu entrei pra ajudar a presidenta Dilma, porque precisamos restabelecer a paz e a esperança e provar que esse país é maior que qualquer coisa no planeta Terra”. Mas no mesmo 18 de março, o ministro do STF Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro, cargo que havia tomado posse no dia anterior.
Das ruas ao jogo jogado na Câmara Federal, foi também no mesmo 17 de março no qual Lula assumiu por um dia a Casa Civil, que Eduardo Cunha emplacou dois aliados na presidência e na relatoria da comissão que analisaria o pedido impeachment de Dilma: respectivamente, os deputados Rogério Rosso (PSD/DF) e Jovair Arantes (PTB/GO). Entre 17 e 20 de março, uma pesquisa Ibope, encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), registrou que apenas 10% da população aprovava o governo federal.
Na Câmara, após defesa e acusação da presidente apresentarem seus argumentos, Jovair apresentou um relatório recomendando a abertura do processo de impeachment em 6 de abril. Cinco dias depois, o relatório foi aprovado na comissão, por 38 votos a 27. No dia 16, protestos de rua contra e a favor de Dilma foram registrados em pelo menos oito Estados. Na votação de 17 de março, numa sessão que durou 9h47 foi aprovado o envio do processo de impeachment ao Senado.
O placar foi de 367 deputados favoráveis (eram necessários o mínimo de 342), contra 137 contrários, com sete abstenções e dois ausentes. Entre estes, a deputada federal Clarissa Garotinho (então no PR), cuja ausência na votação foi negociada com o PT federal por seu pai, o ex-governador Anthony Garotinho (PR), em troca da “venda do futuro” de Campos com a Caixa Econômica Federal (CEF), assinada em 12 de maio de 2016, no apagar das luzes do governo Dilma.
Mas a aprovação do impeachment na Câmara teve momentos pitorescos. Em meio a todo tipo de endossos pessoais aos votos anunciados ao microfone pelos deputados, Jair Bolsonaro (PSC/RJ) foi mais longe. Primeiro saudou o responsável pelo dia: “Tem um nome que entrará para a história nesta data, pela forma como conduziu os trabalhos nesta Casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha!”. Após ser vaiado, respondeu: “Perderam em 64. Perderam agora em 2016”. E continuou suas homenagens: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932/2015), o pavor de Dilma Rousseff (...) o meu voto é sim”.
O coronel em questão foi chefe do aparelho repressivo do DOI-Codi do II Exército, de São Paulo, entre 1970 e 74, quando foram registrados, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 45 mortes e desaparecimentos forçados de presos políticos. Entre eles, Dilma não chegou a desaparecer, mas foi torturada. Ustra era acusado diretamente por 502 casos de tortura. E foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado pelo crime de tortura, em 2008, pelo juízo da 23ª Vara Cível de São Paulo.
Em 1º de maio de 2016, dia do Trabalhador, houve manifestações sindicais pelo país, contra e a favor do governo federal. No Centro de São Paulo, num evento da CUT, Dilma fez promessas: “Nós estamos autorizando um reajuste no Bolsa Família que resultará em um aumento médio de 9%”. Sobre o processo de impeachment, ela advertiu: “Se praticam esses absurdos contra mim, o que vão praticar contra o povo trabalhador, contra as pessoas mais anônimas desse país?”. No mesmo dia, na praça Campo de Bagatelle, na zona norte de São Paulo, a Força Sindical usou seu tradicional evento para mostrar apoio ao impeachment.
Em 9 de maio de 2016, houve uma tentativa de reviravolta no processo da Câmara. Depois de Cunha ter sido afastado do seu mandato, em decisão de 5 de maio, do ministro do STF Teori Zavascki (1948/2017), o presidente interino da Casa, Waldir Maranhão (PP/MA), acolheu um pedido do advogado geral da União José Eduardo Cardozo e quis anular o encaminhamento do impeachment ao Senado. Presidente deste, Renan Calheiros (PMDB/AL) deu seguimento ao processo e ignorou Maranhão, que revogou sua decisão na noite do mesmo dia.
Em 10 de maio, dia nacional de paralisação a favor de Dilma, novos protestos atingiram rodovias, avenidas e o sistema de transporte público em 21 Estados e no Distrito Federal. Dois dias depois, no mesmo 12 de maio em que a “venda do futuro” de Campos foi assinada pelos Garotinho com a Caixa, o parecer do relator, senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), parceiro de Aécio, foi aprovado por 55 votos e 22, abrindo formalmente o processo de impeachment da presidente. Dilma foi afastada pelo prazo de 180 dias e seu vice, Michel Temer (PMDB/SP), assumiu o poder. O legado, registrado em abril, eram 11,4 milhões de desempregados.
Em 10 de junho, Temer enfrentou seu primeiro protesto nacional em 24 Estados e em Brasília. Na av. Paulista, Lula discursou: “Temer, você é um constitucionalista, sabe que não agiu correto assumindo a presidência interinamente. Permita que o povo retome o poder e participe das eleições em 2018”. Em 31 de julho, com as manifestações de rua perdendo força, foram registrados atos contra a presidente afastada em 20 Estados e no Distrito Federal, assim como contra o presidente interino, em 15 Estados e em Brasília.
Em 29 de agosto, Dilma foi ao Senado se defender pessoalmente. Ela negou ter cometido crimes de responsabilidade e se disse vítima de um “golpe de Estado”, cuja autoria atribuiu a Cunha. Falou também que só o povo pode afastar um presidente pelo que chamou de “conjunto da obra”, já que o presidencialismo não prevê a destituição do presidente quando este perde a maioria no Congresso. Ela asseverou que não estava em jogo o seu mandato, mas sim as conquistas sociais dos últimos 13 anos de governo PT.
Em 31 de agosto, o plenário do Senado condenou Dilma à perda definitiva do cargo por 61 votos a 20, sob a acusação de crime de responsabilidade fiscal. Uma segunda votação foi feita para decidir se ela perderia seus direitos políticos, com placar de 42 votos favoráveis e 36 contra. Como houve três abstenções e seriam necessários 54 votos a favor, ela ainda poderia se candidatar a cargos públicos. Hoje, ela é pré-candidata ao Senado pelo PT de Minas Gerais.
— As grandes manifestações pelo impeachment de Dilma combatiam também a corrupção. Dilma caiu, a corrupção continuou com Temer, até mostrando aspectos mais agudos. No entanto, o movimento de rua, o maior do Brasil, se calou. Creio que o cansaço venceu — analisa o professor Arthur Soffiati, professor da UFF-Campos.
— As ruas costumam se adequar aos pleitos eleitorais, seguindo o leito das candidaturas. Em 2018, duas novidades produzirão efeitos sobre as ruas e os resultados eleitorais. A primeira deles é a polarização entre dois extremos ideológicos, sem a mediação eficiente dos partidos. No campo neopopulista-nacionalista, a crise do PT vai dar proeminência às ruas, assim como, na extrema direita, com índices ainda menores de mediação partidária. A segunda é a fragmentação do centro e sua perda de credibilidade em função do apoio emprestado a Temer. No Rio de Janeiro, onde essa polarização se deu no pleito de 2016, a vitória foi dos conservadores, com decisiva rejeição ideológica aos postulados da esquerda na esteira da deposição de Dilma. Não está certo que isso vá se repetir, no caso de Lula, em relação às condenações por corrupção na Lava Jato, haja visto o naufrágio ético da coalizão pós-impeachment — projeta o cientista político Hamilton Garcia de Lima, professor da Uenf.